11 Março 2021
“A questão fundamental do pensamento antinatalista secular é, em seu cerne, uma questão religiosa: nossa vida, em última análise, é realmente um dom? Em meio à dor e ao desespero da vida, todos nós, seculares e crentes, ponderamos esta questão, assim como Jó fez em seu momento de grande provação. Em nossa doutrina de creatio ex nihilo, ou criação do nada, os cristãos afirmam que Deus criou livremente, da bondade de Deus e para compartilhar essa bondade, e então tudo que Deus criou foi 'muito bom' (Gn 1,31). Esta é uma verdade difícil de ver às vezes. Mas o dom da fé permite-nos confiar que a vida continua a ser um dom e que o bom Doador redimirá o nosso sofrimento, se não aqui, então na vida futura”, escreve Roberto J. De La Noval, doutorando em Teologia na Universidade de Notre Dame em artigo publicado por America, 09-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Em 2019, um empresário na Índia chamado de Raphael Samuel protocolou um processo contra seus próprios pais. O que o demandante reclamava? Seus pais o trouxeram para esse mundo sem seu consenso. A pura imensidão do sofrimento da vida, argumentou Samuel, faz da decisão dos seus pais de trazer uma criança para este mundo nada menos que uma imposição cruel, equivalente a sequestro ou escravidão. Embora Samuel não esperasse que seu caso fosse muito longe (seus pais eram advogados), seu objetivo foi cumprido simplesmente por espalhar a consciência da cosmovisão subjacente a esse traje simbólico: a filosofia conhecida como antinatalismo.
Resumidamente, antinatalistas creem que a experiência da vida para humanos é repleta de sofrimento, que a vida apenas não vale a pena ser vivida. Segundo essa filosofia, a única coisa moral para nós é pararmos de nos reproduzir, para cessar a não solicitada e imerecida dor sobre os seres vulneráveis que invocamos à existência. Ao aprender sobre o antinatalismo, a maioria das pessoas expressa uma divertida crença – poderia alguém realmente se entreter com essa visão de mundo? Se nós refletirmos sobre nossas próprias vidas, nós podemos nos tornar mais simpáticos a essa posição. Quem, depois de tudo, não teve momentos de grandes angústias e tristezas que levavam a pensar que seria melhor não ter nascido?
Sentimentos antinatalistas, de fato, podem ser encontrados ao longo da história, e eles aparecem até nas Escrituras. Tanto Jeremias quanto Jó praguejam contra os dias em que nasceram, e o autor de Eclesiastes – quando considera o eterno fato de humanos oprimindo outros humanos – julga que alguém que nunca nasceu para ver todo esse mal é melhor que o opressor e o oprimido (4, 3). A novidade do antinatalismo, no entanto, não está nos sentimentos e ideias que expressa, mas na mais recente expansão filosófica (como no trabalho de David Benatar) e seu crescimento como um movimento.
Mas como chegamos aqui? O instinto para a vida é tão forte que um fenômeno como o antiantalismo requer algumas explicações. Dois importantes fios tecem juntos esse nó ético, e somente desemaranhando-os podemos ver a lógica interna do antinatalismo. O primeiro é a centralidade do consenso. Como Samuel insistiu, seus pais o trouxeram ao mundo sem sua permissão. Claro, tal pré-requisito é uma definição impossível, mas o ponto pode ser formulado de uma forma que é geralmente reconhecida como legítima: é imoral infligir sofrimento aos outros sem o seu consenso.
Se for esse o caso, o que é mais imoral do que sobrecarregar uma pessoa com uma vida inteira de sofrimento, com a fragilidade e a abertura ao trauma que constituem a individualidade humana? O problema que os antinatalistas identificam aqui é o que os filósofos chamam de “lançamento” da existência, a vertigem existencial que experimentamos por sermos criaturas e não deuses.
O segundo fio é a mais nova abertura da cultura ocidental para a realidade do sofrimento imerecido. Durante grande parte da história da igreja, o sofrimento foi entendido como o resultado direto da vontade de Deus, seja como uma punição pelos pecados originais ou pessoais, ou como uma participação redentora no mistério dos próprios sofrimentos de Cristo. Hoje, a maioria das pessoas, incluindo crentes religiosos, são menos propensas a atribuir a origem de seus sofrimentos à punição direta de Deus. E nem é preciso dizer que aqueles que estão fora da família da fé não localizarão sua dor na cruz de Cristo. Ainda assim, a questão é que ocorreu uma mudança (isso é especialmente verdadeiro com a adoção da teologia da libertação pela Igreja como uma parte legítima de seu depósito de fé). Como resultado, desejamos aliviar o sofrimento tanto quanto possível e consideramos sua imensidão uma afronta à dignidade humana.
Aqueles que se engajam regularmente em debates em torno do aborto e da eutanásia reconhecerão imediatamente esses dois fios e sua potente força cultural. O que é único sobre o antinatalismo é como ele os une em uma visão de mundo coerente. Pode-se até chamar essa cosmovisão de religiosa, enquanto mantém sua própria ética e escatologia: o imperativo moral de cessar a reprodução para uma escatologia sem pessoas, um literal “depois da vida”.
O antinatalismo encapsula perfeitamente a falta de sentido que tantos de nossos contemporâneos sentem quando confessam a natureza “casual” de nosso universo e o fato aleatório e bruto de sua própria existência. Não há Deus e ninguém pediu para estar aqui; mas agora que estamos, devemos lidar com nosso sofrimento, e não menos do que o próprio conhecimento de nossa própria mortalidade e da falta de sentido da vida. Qualquer prazer passageiro que a vida ofereça – afinal, tudo o que amamos morre – representa pouco mais do que um conforto menor e perturbador em face da enormidade de nossa situação.
Os católicos fariam bem em compreender este novo movimento, pois o antinatalismo questiona o próprio fundamento do ensino social católico: a dignidade infinita e o valor da vida humana. Isso não quer dizer que os antinatalistas sejam misantropos em sua essência. Ao contrário, é discutível que alguma visão da dignidade da vida consciente anima seu desejo de libertar os humanos do fardo infligido a eles pela existência. No entanto, para os antinatalistas, o valor da vida humana tem seus limites: levada ao ponto do sofrimento extremo, quaisquer valores privados que possamos encontrar na vida se dissipam à medida que a existência se torna um mero palco para tormento físico e psíquico.
Para oferecer uma resposta adequada a essa visão de mundo, os católicos teriam que desafiar os dois elementos centrais do antinatalismo: a ideia de que o consentimento é exclusivamente determinante na avaliação moral do sofrimento infligido não intencionalmente e a compreensão do sofrimento como intrinsecamente irredimível. Esta última visão está intimamente ligada à ausência de uma crença em Deus ou na vida após a morte.
Não é meu interesse, entretanto, seguir essas linhas de pensamento. Em vez disso, quero destacar um ponto de encontro entre o pensamento antinatalista e o pensamento cristão, pois, em sua insistência de que algumas formas de sofrimento podem roubar o valor da vida humana, os antinatalistas ecoam uma ideia que, talvez surpreendentemente, surge dentro da própria tradição cristã. Não tenho em mente os sentimentos antinatalistas bíblicos citados acima, que dão voz ao desânimo humano diante do vasto sofrimento da vida terrena, mas, em vez disso, uma ideia conectada com a teologia cristã da vida após a morte e o significado do sofrimento aí. É aqui, com base na escatologia, que o antinatalismo e a fé cristã podem convergir surpreendentemente, mesmo ainda que a escatologia cristã tenha recursos para resolver pelo menos algumas das preocupações dos antinatalistas sobre a imensidão do sofrimento.
Ao encorajar os primeiros crentes a manter a fé diante da perseguição, São Paulo escreveu que os sofrimentos do tempo presente não devem ser comparados com a alegria que nos espera (Rm 8,18). O autor da Carta aos Hebreus escreveu algo semelhante, desta vez falando do próprio abraço de dor de Jesus: “Em troca da alegria que lhe era proposta, ele se submeteu à cruz, desprezando a vergonha” (12, 2). E o próprio Jesus poderia falar dos sofrimentos que viriam a seus discípulos depois de sua partida, semelhantes às dores de uma mulher no parto, que esquece sua angústia com o amanhecer da alegria materna (Jo 16,21).
O que há em comum em todos esses textos é a ideia de que o significado do sofrimento não pode ser totalmente apreendido sem a experiência do sofrimento. Somente a felicidade que vem depois da dor poderia nos permitir chegar a um acordo com nosso sofrimento e fazer sua tristeza parecer desaparecer na presença de nosso objeto desejado. Sete anos não foram nada para o patriarca Jacó, que trabalhou para sua amada Raquel, e nenhum de nós agora lamenta o dia em que nossos pais nos levaram ao consultório médico para garantir nossa imunidade contra o sarampo.
No entanto, se os sofrimentos do tempo presente são sempre contextualizados pelo que vem depois deles, o problema que o antinatalismo apresenta torna-se mais incômodo em vista da compreensão cristã tradicional da vida após a morte. A igreja tradicionalmente ensina que a vida da era por vir verá a raça humana dividida em duas: aqueles que entram no reino de Deus e aqueles que permanecem nas trevas exteriores. Embora a especulação sobre a proporção dos redimidos para os perdidos tenha se alterado no curso da história da igreja – com as últimas décadas vendo um aumento no “universalismo esperançoso” inspirado pela teologia de Hans Urs von Balthasar e do Papa Bento XVI – o ensino da Igreja ainda afirma que o inferno eterno é uma possibilidade real para as almas humanas. Se aceitarmos que nossa avaliação do significado do sofrimento e da moralidade de infligi-lo depende da futura redenção desse sofrimento, então as preocupações antinatalistas parecem duplamente urgentes à luz da possibilidade de um inferno eterno.
Considere o problema da perspectiva antinatalista. Deus, por sua vontade soberana, nos chamou à existência para que tivéssemos a chance de conhecê-lo e amá-lo. Nesta vida, enfrentaremos tragédias e tristezas, muitas não merecidas, além de uma série de tentações morais. Na permanência terrena da humanidade, alguns alcançarão o final feliz que Deus deseja, enquanto outros não. Para o último grupo, sua recompensa não é apenas a perda da vida temporal; eles também enfrentarão uma eternidade de separação de Deus no sofrimento mais extremo imaginável (não precisamos entreter interpretações literalistas das passagens do fogo do inferno para entender que essa condição continua a ser a pior possível para a pessoa humana). Portanto, não é injusto da parte de Deus infligir existência a eles se ele sabe, desde toda a eternidade, que este será o seu resultado final?
Essa linha exata de raciocínio aparece nas obras de Isaac de Nínive, um bispo e teólogo sírio do século VII, celebrado como santo em várias comunhões cristãs, incluindo a Igreja Católica Caldeia. Em suas Homilias Ascéticas, Isaac escreveu o seguinte: “Não é a maneira do Criador compassivo criar seres racionais a fim de entregá-los impiedosamente à aflição sem fim em punição por coisas que Ele sabia mesmo antes de serem moldadas, sabendo como eles viriam quando Ele os criasse – e a quem, não obstante, Ele criou”.
Confiando que a graça divina revelada em Cristo levaria à eventual reconciliação de todas as criaturas com Deus, Isaac discerniu as implicações preocupantes de acreditar que Deus poderia criar almas eternas com a possibilidade de que elas pudessem ser perdidas por uma eternidade de sofrimento. Nenhum criador compassivo – nenhum pai, como Jesus nos instrui a chamar nosso Deus – poderia aceitar tal destino para seus filhos. De fato, como o teólogo ortodoxo oriental David Bentley Hart argumenta em seu livro recente, “That All Shall Be Saved” (“Todos devem ser salvos”, em tradução livre), seria melhor que nenhum pai terreno se reproduzisse se a perdição eterna para nossos filhos fosse uma possibilidade genuína. Torna-se difícil ser consistentemente pró-vida quando o futuro dessa vida parece ser não apenas temporário, mas um sofrimento permanente e irremediável.
A questão fundamental do pensamento antinatalista secular é, em seu cerne, uma questão religiosa: nossa vida, em última análise, é realmente um dom? Em meio à dor e ao desespero da vida, todos nós, seculares e crentes, ponderamos esta questão, assim como Jó fez em seu momento de grande provação. Em nossa doutrina de creatio ex nihilo, ou criação do nada, os cristãos afirmam que Deus criou livremente, da bondade de Deus e para compartilhar essa bondade, e então tudo que Deus criou foi “muito bom” (Gn 1,31). Esta é uma verdade difícil de ver às vezes – quando nossos corpos desmoronam quando o coração humano se volta contra seu vizinho ou quando a própria igreja de Deus se torna um instrumento de abuso contra os filhos de Deus. Mas o dom da fé permite-nos confiar que a vida continua a ser um dom e que o bom Doador redimirá o nosso sofrimento, se não aqui, então na vida futura.
Para aqueles que carecem desta fé, é uma resposta natural desejar erradicar o sofrimento erradicando a vida. A fé religiosa provê um antídoto contra essas medidas desesperadas. Como se aponta na “Evangelium Vitae”, uma agenda religiosa fornece um “entendimento positivo do mistério do sofrimento” e então nos liberta das necessidades de controle sobre todo o sofrimento e das graves injúrias à dignidade humana no processo. Mas esse entendimento positivo do sofrimento reside na tensão com a possibilidade de perder a eternidade, como Santo Isaac de Nínive nos recorda. Se algum destino final de alguma alma de fato prova ser a separação permanente de Deus, a lógica antinatalista se torna muito convincente.
Como todas as doutrinas, os ensinos católicos sobre inferno e sobre o propósito de punição tiveram desenvolvimento significativo ao decorrer dos séculos, mais especialmente no Concílio Vaticano II, na “Spe Salvi” do Papa Bento XVI e na recente proclamação do Papa Francisco de que a pena de morte é inadmissível. Resta saber se essas mudanças levarão, com o tempo, a uma afirmação mais confiante de que Deus criou todos os seus filhos com o destino da redenção eterna. Mas, nesse ínterim, a filosofia antinatalista lança um desafio aos católicos e seu compromisso pró-vida: pode a verdade da dignidade intrínseca da vida humana ser conciliada de forma coerente com a perspectiva de sofrimento interminável?
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É errado trazer crianças para um mundo quebrado? O caso teológico contra o crescimento do movimento antinatalista - Instituto Humanitas Unisinos - IHU