28 Janeiro 2021
"Industrialização depende de projeto estratégico e soberania — caminho contrário ao que Bolsonaro e Paulo Guedes estão trilhando. Brasil aproxima-se do desemprego e da fome. Algumas considerações sobre como se arma uma bomba-relógio".
A análise é de José Álvaro de Lima Cardoso, economista, doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina, supervisor técnico do escritório regional do DIEESE em Santa Catarina, em artigo publicado por OutrasPalavras, 27-01-2021.
Recentemente a montadora Ford anunciou que encerrará a produção de veículos no Brasil em 2021. Apenas o Centro de Desenvolvimento de Produto, na Bahia, o Campo de Provas e sua sede regional, ambos em São Paulo, permanecerão funcionando. A decisão deve implicar no fechamento de cerca de 5.000 postos de trabalho. Uma segunda notícia importante para a análise da economia brasileira foi a de que o Banco do Brasil irá fechar no país 361 unidades, sendo 112 agências, 7 escritórios e 242 postos de atendimento. Ao mesmo tempo o banco lançou dois planos de “demissão voluntária”, com estimativa de desligamento de 5 mil trabalhadores da ativa. Segundo o BB, o fechamento das unidades vai resultar em uma redução de gastos de R$ 353 milhões neste ano e R$ 2,7 bilhões até 2025.
São notícias que traduzem o clima do Brasil nesses tempos de fúria e que dão o tom de uma análise de cenários para 2021. As duas informações sintetizam elementos muito atuais como: desmonte do Estado, desemprego e precarização, desemprego industrial, desindustrialização, aumento da exploração dos trabalhadores, desmonte das estatais, privatização, reprimarização da pauta exportadora. Bolsonaro e Paulo Guedes praticamente aplaudiram o anúncio da Ford. Além de não atribuírem nenhuma importância à indústria, o emprego numa montadora é a antítese do que os dois membros do governo imaginam em termos de mercado de trabalho. No seu imaginário o emprego deve ter salário miserável, informal, de baixa qualidade.
Emprego industrial depende de projeto estratégico de futuro. Produção e competitividade industrial pressupõem um mínimo de soberania e não uma perspectiva subalterna no cenário internacional, que é o que o governo busca, na prática. Não tenhamos dúvidas: o fechamento de unidades do BB e o desligamento de funcionários, faz parte do ajuste do banco para a privatização. Se o governo irá conseguir privatizar no curto prazo, é outra história. Mas é evidente que as ações anunciadas no dia 11 visam preparar a empresa para entregar de bandeja ao setor privado. Os grandes grupos que detém condições para adquirir empresas públicas querem uma estrutura enxuta, com menos empregados, e elevado nível de exploração dos trabalhadores.
Os dados do Ministério da Economia mostram que, em dois anos de governo, Bolsonaro vendeu nove estatais enquanto que, entre 2017 e 2018, Temer (outro funcionário do imperialismo) conseguiu passar adiante 19. Para 2021, estão previstas nove privatizações, com destaque para Correios e Eletrobras. Para alívio dos brasileiros, por várias razões, nos dois primeiros anos o governo não conseguiu avançar significativamente na agenda das privatizações. As dificuldades do governo ficaram bem evidentes no processo do BB. A proposta do Banco do Brasil de fechar 112 agências e desligar 5 mil funcionários abriu uma crise no governo e levou Bolsonaro a demitir o presidente do banco, pelo desgaste provocado com o anúncio, num momento delicado, em que cresce rapidamente a repugnância ao presidente ilegítimo.
A taxa de desocupação do país no 3° trimestre de 2020 foi de 14,6%, a mais alta da série histórica iniciada em 2012. O contingente de ocupados reduziu para 82,5 milhões de pessoas, e o nível de ocupação foi de 47,1%. O número de pessoas com carteira assinada caiu 2,6% no terceiro trimestre frente ao anterior, com perda de 790 mil postos. A taxa de informalidade, de 38,4%, representa 31,6 milhões de pessoas. Para reduzir pelo menos um pouco a taxa de desemprego e absorver a juventude que ingressa no mercado o país precisaria gerar muitos milhões de empregos neste ano.
Em novembro de 2020, segundo o IBGE, a produção industrial aumentou 1,2%, e frente ao mesmo período do ano anterior, novembro expandiu 2,8%. Porém, no acumulado jan/nov a perda da produção industrial é de -5,5%. A categoria Bens Intermediários, que forma o núcleo do sistema industrial, está a dois meses praticamente estagnada. Bens intermediários são bens manufaturados ou matérias-primas empregados na produção de outros bens intermediários ou de produtos finais. Por exemplo, bobina de aço, que é produzida pelas siderúrgicas, que é considerada um bem intermediário na fabricação de um automóvel. Já há notícias de falta de muitos insumos que este macrossetor produz. Conforme a Confederação Nacional da Indústria (CNI), os níveis de estoque estão reduzidos em 93% na maioria dos ramos industriais, o que traz riscos de ruptura nas cadeias de fornecimento, podendo levar a pressões de custos.
Com o fim da Renda Emergencial, com a evolução do desemprego e o conjunto de trapalhadas na vacinação da população contra a Covid-19, a situação da indústria pode se agravar de forma inusitada. O que pode garantir a industrialização de um país é a solidez do mercado de massas, ou seja, da capacidade da população consumir, articuladas com políticas tecnológicas e de inovação. A partir do golpe, o mercado interno vem sendo sistematicamente destruído pelo desemprego, empobrecimento da população, precarização do trabalho, aprofundamento da desindustrialização, etc. Todo esse processo, que foi amplamente aprofundado com Bolsonaro, afeta diretamente a produção industrial interna.
Não existe investimentos em inovação sem firme e proativa coordenação estatal. Desde 2016, a partir do golpe que alçou Temer à presidência, o orçamento de Ciência e Tecnologia, tão fundamental para a indústria e para o país, foi simplesmente liquidado. É uma firme determinação dos golpistas impedir que o Brasil invista em ciência e tecnologia. Afinal, neocolônia não precisa nem de ciência e nem de indústria. Segundo o Boletim da Associação dos Engenheiros da Petrobrás (AEPET), no ranking de complexidade econômica nas exportações, depois do Brasil ter ocupado a 25ª posição em 1995, os dados mais recentes, de 2018, mostram que o país está na 49º posição.
As previsões para o PIB em 2021 estão estimadas em torno dos 3%, percentual que está muito assentado num resultado em boa parte estatístico, ou seja, no fato de que, em 2020, a economia afundou. O número definitivo ainda não está calculado, mas sabe-se que a retração do PIB no ano passado foi de, pelo menos, 4,5%.
O desmonte da economia brasileira, causado pelo golpe, levou a que em apenas 3 anos, a porcentagem da população afetada pela insegurança alimentar moderada e aguda tenha aumentado em 13%. Segundo o IBGE, em 2016, o número de pessoas que ingeriam menos calorias do que o necessário para uma vida saudável era de 37,5 milhões no Brasil, e saltou para 43,1 milhões em 2019. Ou seja, o Brasil tem mais de 20% de sua população em insegurança alimentar (mesmo sendo o país o segundo maior produtor agrícola do mundo). A insegurança alimentar grave, em que as pessoas relataram chegar a passar fome, atingiu 4,6% dos domicílios brasileiros, o equivalente a 3,1 milhões de lares, em 2017-2018. Esse percentual significa que 10,3 milhões de pessoas residem em domicílios nessa situação. É um número impressionante, equivalente a 3 vezes a população do vizinho Uruguai.
O detalhe é que essas informações de aumento da insegurança alimentar são relativas a um período anterior a 2020, ou seja, de antes da pandemia. Estamos em janeiro de 2021, no qual o Auxílio Emergencial acabou e, portanto, mais de 60 milhões de brasileiros estão sem aquela renda. Ou seja, nenhum auxílio, num contexto no qual a taxa de desemprego explodiu.
O número de famílias em extrema pobreza cadastradas no CadÚnico (Cadastro Único para programas sociais do governo federal) superou a casa de 14 milhões e alcançou o maior número desde o final de 2014. Segundo dados do Ministério da Cidadania, esse total de famílias equivale a cerca de 39,9 milhões de pessoas na miséria no Brasil. São consideradas famílias de baixa renda aquelas que têm renda de até R$ 89 por pessoa (renda per capita). Aqui não estamos tratando de pobres, mas de miseráveis.
Nessa bomba-relógio, atuam simultaneamente: a) políticas do golpe; b) crise econômica mundial; c) efeitos da pandemia, na vigência do pior governo da história. Uma retomada da miséria nessa velocidade é efeito direto do golpe de 2016, combinado com a crise econômica estrutural. De parte do governo não se vê um plano, uma estratégia, para enfrentar crise dessa magnitude. Pode ser que tirem um coelho da cartola. Mas até o momento não se vê nada sendo providenciado. Me refiro aqui à estratégia de política econômica, não da estratégia de repressão, para eventuais revoltas da população. Esta, certamente as forças armadas e auxiliares já têm montada.
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Conjuntura nacional em tempos de fúria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU