15 Dezembro 2020
Em dezembro de 2018, por ocasião dos 50 anos da edição do AI-5, publiquei no jornal O Imparcial, de São Luís do Maranhão, o artigo que transcrevo.
O Supremo às vésperas do AI-5
Haroldo Saboia(*)
12 de dezembro de 1968. Uma tarde inesquecível no plenário do Supremo Tribunal Federal. O mundo jurídico da Nova Capital assistia, com incontido entusiasmo, a posse, como presidente e vice-presidente da Casa, dos mineiros Gonçalves de Oliveira e Vitor Nunes Leal, derradeiros ministros da Corte nomeados pelo presidente Juscelino Kubitschek, em 1960.
Jovem repórter – um “foca”, em seus 18 anos - da sucursal de O Estado de São Paulo, fazia a cobertura do Ministério da Educação e da Universidade de Brasília naqueles dias efervescentes e, em dezembro, cobria as férias do jornalista responsável pelo Judiciário.
Não poderia jamais imaginar que assistiria a uma sessão histórica da Suprema Corte do meu país.
Pouco antes da sessão solene, o Supremo já surpreendera o país ao ousar estender a Vladimir Palmeira, José Dirceu, Luís Travassos e Antônio Ribas o habeas corpus que concedera no dia anterior, 11 de dezembro, a Franklin Martins e outros quatro líderes estudantis, todos presos em Ibiúna (SP), no proibido Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em outubro.
Após as saudações do presidente, Luis Gallotti, e do Procurador-Geral da República, Décio Miranda, é concedida a palavra ao lendário Heráclito Fontoura de Sobral Pinto, como representante do Conselho Federal da OAB. As palavras daquele advogado, no vigor de seus 75 anos (afinal, ele viveria ainda mais de duas décadas, falecendo aos 98, em 1991) impõem um absoluto silêncio.
“O advogado é um colaborador dos Juízes, dos Tribunais. Nessa qualidade, ele traz para uns e para outros a verdade, na esperança de obter Justiça”, inicia.
“Assim, todas as vezes que um Juiz toma posse, os advogados não podem se desinteressar deste ato porque o magistrado é um trabalhador de boa fé, um trabalhador da normalidade contra a simulação, contra a violência e contra, sobretudo, o dolo”, prossegue.
Sobral Pinto condena, nas entrelinhas, a arbitrariedade cometida pelo Regime Militar ao ampliar composição do STF, de 11 para 16 membros, com o propósito de diluir o peso dos ministros nomeados pelos presidentes civis, Juscelino e Jango, eleitos sob a égide a Constituição de 1946.
Entre os presentes, representando o general Costa e Silva, chefe do Executivo, o Ministro da Justiça, Gama e Silva, aliado dos setores mais radicais do regime militar; dois governadores eleitos em 1965, Negrão de Lima, do Rio, e Israel Pinheiro, de Minas Gerais; muitos advogados, jornalistas, funcionários, alguns senadores. Nenhum deputado!
“Nesta hora, cabe ao advogado dizer a estas personalidades, que representam o Poder Judiciário, quão imensa é a sua responsabilidade, quão perigosa é a sua função, porque, equivocadamente, muito depende de sua atuação, de sua lucidez e de sua energia, a atuação de todo o colegiado”. E segue Sobral Pinto:
“Mas, não podemos ignorar que nos encontramos num momento de imensa dificuldade para a Nação, em que poderes da força querem arrancar dos poderes legítimos, como o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, querem arrancar, repito, daqueles que desempenham a função de legisladores e a de Juízes, decisões que não correspondem aos interesses da Nação ou as imposições da Justiça”.
Grande tribuno, o velho Sobral exorta Goncalves de Oliveira e Vitor Nunes Leal - autor do notável “Coronelismo, enxada e voto” - a seguirem o exemplo do presidente da Casa, quando do Golpe de 64. Cita o ministro Álvaro Ribeiro da Costa, que “soube defender o prestígio do Supremo Tribunal Federal, quando a petulância militar quis se opor à decisão proferida por este Tribunal”.
Gama e Silva, ministro linha dura da Justiça, não esconde o seu desconforto, enquanto os velhos pessedistas mineiros, matreiros, por momentos, saboreiam aqueles breves momentos de confraternização democrática. De repente, chegava o então deputado pelo Rio Grande do Sul Paulo Brossad (MDB/RS), que discretamente cochicha algo ao governador Israel Pinheiro.
Israel, rápido e sorrateiro, escreve um bilhete e o envia, pelas mãos de um contínuo, a Sobral Pinto, ainda na tribuna:
“... recebo uma informação jubilosa de que a Câmara dos Deputados acaba de recusar a licença para processar o deputado Marcio Moreira Alves, por 216 votos contra 141”.
“Aí o Supremo veio abaixo! Foi a maior ovação”, contaria Sobral pelo resto de sua vida e, em especial, dez anos depois em célebre entrevista ao Pasquim.
216 votos em defesa do mandato de Márcio Moreira Alves! Entre eles, o de meu pai, Pires de Saboia, então deputado conservador da Arena maranhense.
A festa durou pouco! Um dia depois, reunidos na sala do Evandro Carlos de Andrade, na Sucursal do Estadão, em Brasília, ouvíamos todos, da redação, a leitura do tenebroso texto do AI–5, que conferia poderes absurdos ao General Costa e Silva.
O Congresso Nacional é posto em recesso. Dezenas de parlamentares cassados, milhares de presos por todo o país.
No dia 14, em Goiânia, o próprio Sobral Pinto é preso e logo transferido para os quartéis de Brasília.
Em 16 de janeiro, são compulsoriamente aposentados pelo AI-5, os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Dois dias depois, Antonio Gonçalves de Oliveira renuncia à Presidência do Supremo, em solidariedade aos colegas afastados. Em seguida, pede aposentadoria. Sua atitude é seguida pelo ministro Lafayette de Andrade.
O AI-5 deixou um longo e tenebroso rastro de mortes, torturas, prisões, banimentos e toda a sorte de violência à cidadania. Mas toda a poeira de violência que sacudiu não conseguiu apagar o exemplo de coragem e de compromisso com as liberdades de advogados como Sobral Pinto e de juízes como Gonçalves de Oliveira e Vitor Nunes Leal.
Juízes que, como Oliveira, Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva e muitos e muitos outros, escreveram capítulos de resistência na história da Suprema Corte brasileira, que, antes e depois daquele 12 de dezembro de 1968, vivera períodos por demais controvertidos.
50 anos depois, que este 12 de dezembro de 2018 nos fortaleça na luta pela defesa e consolidação do Estado democrático de Direito.
(*) Haroldo Saboia – repórter em 68 e constituinte de 1988.
180.000 mortos pela Covid-19.
Podia ter sido eu. Mas foi a mãe, o pai, o filho, a filha, a esposa e o marido de muita gente.
E a comoção social é nenhuma.
Enquanto isso...
Idade mídia
Por que não?
Crianças não economizam sonhos.
Querem uma boa medida do que é vencer na vida para além dessas bobagens de dinheiro, fama, poder ou títulos? Se você já ouviu Marina Silva dissertar só para você, no telefone, com calma, durante uns 10 minutos inteiros, sobre o problema político-filosófico do cuidado com as palavras, você venceu na vida. Égua, que vontade de ter gravado aquele trem!
Apenas com sua dicção (independente do conteúdo do que dizia, que era seu interesse por análise do discurso e semiologia, coisas que estudamos nas Faculdades de Letras e que não são bem linguística nem literatura), Marina me fez dar-me conta de que eu, que não falo exatamente devagar, estava falando duas vezes mais rápido ao telefone. O motivo logo ficou claro para mim: era o desejo de não desperdiçar o tempo dela, não enrolar.
Nessas situações em que há uma diferença de estatura muito grande entre as duas pessoas que estão se falando pela primeira vez, não tem jeito, há certas coisas que só a pessoa maior pode fazer. Já fui o menorzinho nessa conversa zilhões de vezes, e sempre gosto de observar como age a pessoa maior.
No caso de Marina, o gesto vinha com uma sabedoria raras vezes vista. Em vez de contemplar minha pressa, ela desacelerou sua dicção – que já é, normalmente, mais pausada que a minha – e passou a falar do seu interesse por lexicologia, pelo problema das palavras. Eu disse a ela que um dos motivos que me levou a apoiá-la publicamente várias vezes era o seu cuidado com as palavras, que é raro entre gente que mente toda hora. Enfim, conto sem vergonha nem orgulho que desabei a chorar de lágrimas e soluços depois desse telefonema.
O choro não era tristeza, exatamente, nem a alegria ou o orgulho de ter falado com ela, mas – descobri só depois, pensando –, uma espécie de resignação ante essa catástrofe quase trágica: a condição de ter tido, três vezes, a oportunidade de eleger essa mulher para nos governar, e por três vezes e mil razões, a fortuna não nos ter acontecido.
"Nunca o indivíduo esteve tão completamente entregue a uma coletividade cega, e nunca os homens foram mais incapazes, não só de submeter suas ações a seus pensamentos, mas até de pensar. [...] De tal modo são evidentes a impotência e a angústia de todos os homens diante da máquina social, que se transformou em uma máquina de partir corações, de esmagar os espíritos, uma máquina de fabricar insconsciência, tolice, corrupção, desfibramento e sobretudo vertigem."
(Simone Weil - 'Esboço da Vida Social Contemporânea' - Texto: Reflexões Sobre as Causas da Liberdade & da Opressão Social [1936] - In: "A Condição Operária & Outros Estudos Sobre a Opressão")
Atualizando os números. Nos prints, as curvas e, em destaque, o pico recente.
EUA: 300.000 mortos.
Brasil: 180.000 mortos.
Apenas nas terras de Trump e Bolsonaro, uma Florianópolis inteira foi varrida do mapa. Já imaginou isso? Uma Floripa inteira morta?
Os EUA adentram um inverno que promete ser o pior desde a Grande Depressão. Pela primeira vez em quase um século, o país tem filas de pão, sopão, fome na rua. Há um presidente convocando insurreição contra o resultado de eleições organizadas sob seu próprio governo, e nas ruas já há gente sendo agredida, espancada, esfaqueada.
No Brasil, o verão não se anuncia melhor. O governo falsifica assinaturas de profissionais da saúde em um plano de vacinação fake e o minúsculo presidente entope a Anvisa de obscurantistas, fomenta guerra política com o vírus e aumenta a resistência da população à vacinação, produzindo mais e mais mortes, que reativam todo o ciclo do bate-bumbo extremista.
Vai piorar bastante ainda antes de melhorar.
Temer e a coruja de Minerva
É conhecido o dito de Hegel, segundo o qual o sentido da história só se revela como ela acaba. A analogia é com a coruja de Minerva, que só se levanta quando cai a noite. Se Temer se juntar a Bolsonaro, ficará clara a continuidade entre os dois governos, entendidos como produtos da mesma reação à "revolução judiciarista" que queria desalojar o PT do governo à força e "purificar" o país da "velha política".
A "velha política" era aliada dos governos petistas. A "revolução Judiciarista" se direcionou contra ambas. A "velha política", já com o caldo do retorno conservador, se desprendeu do PT declinante de Dilma e o derrubou, através de Temer, antes que a Lava Jark a exterminasse. O objetivo era tomar o governo diretamente e usá-lo para sobreviver, enfrentando, desarmando e reaparelhando o judiciário, ministério público, receita federal e polícia federal.
Bolsonaro é a "velha política", com a diferença da lealdade histórica ao reacionarismo do regime militar, que o faria simplesmente um resquício da "velhissima política", no que ela tinha de mais truculenta e homicida. Há algo mais "velha política" que fazer dela puro meio de vida para si e sua família, metendo nos cargos de livre nomeação a filharada, e tentar protegê-los da corrupção que os sustenta por tráfico de influência?
Bolsonaro só se elegeu porque, no contexto de terra arrasada da "revolução judiciarista" desmoralizada por Temer, conseguiu simular ser seu próprio contrário - "a nova política", um produto do lavajatismo e do liberalismo econômico -, pescando eleitores muito além da extrema direita. Não só conseguiu "simular", como encontrou para sua farsa eleitoral a curiosa "ingenuidade oportunista" de Sérgio Moro e Paulo Guedes, que no governo não exercem outras funções, que as de iludir os patetas do judiciarismo e do neoliberalismo.
Uma vez vitorioso, Bolsonaro assume cada vez mais a sua pauta verdadeira, puramente reacionária e familiar. Rasga a fantasia lavajatista, radicaliza o aparelhamento dos órgãos judiciários e fazendários responsáveis pelo combate à corrupção; tenta dar um golpe de Estado e, diante do fracasso, se reaproxima de seus velhos camaradas da "velha política", para evitar um impeachment.
Em síntese, Bolsonaro nunca teria foi a "conclusão lógica" da "revolução Judiciarista". Foi agente de uma contrarrevolução, destinada a manter "a velha política" num ambiente de direita radical, para sobreviver. Um Temer reacionário, autoritário e analfabeto, mas com votos. Recorrendo à ditadura, se necessário. Porque, onde há autoritarismo, há plena garantia de impunidade para os seus. E impunidade não é um dos motes do atual governo?
Parece estranho, mas nessa interpretação, aos olhos da "velha política" que o apoia, Bolsonaro seria somente a restauração da boa e velha ordem, do tempo de Lula, com a diferença do sinal ideológico invertido. A "velha e boa política" que o centrão teria no tempo do PT, sem o PT. E até que ponto o próprio Bolsonaro não se percebe assim? Como um bizarro Lula de extrema-direita? Para o centrão, não faz diferença.
Por isso rogo ao ex-presidente: vai Temer, substituir o Araújo. Meta a mão nessa cumbuca. E nos torne, cristalino, em um lance único, o sentido político e ideológico da história contemporânea do Brasil. Veja aqui.
Pela primeira vez na história, uma acusação contra um governante brasileiro passa a ser formalmente analisada pelo Tribunal Penal Internacional. Ainda veremos Bolsonaro no banco dos réus em Haia. Por genocídio. E ainda terá acusações de ecocídio pela frente.
Peguei um pedaço de granito que tenho aqui na área de serviço e perguntei a ele por que apareceu inflação no Brasil em meio à pandemia, que, mais previsivelmente, deveria acirrar a recessão e talvez gerar até alguma deflação.
O pedaço de granito me respondeu que o motivo era óbvio: o dólar nas alturas (ou seja, o real nas profundezas), responsabilidade direta da incompetência governamental (o Guedes, por exemplo, disse, no ano passado, que o dólar só chegaria a R$ 5 se ele fizesse muita besteira... pois fez), gera inflação por si mesmo, porque muito produto manufaturado comercializado aqui vem da China e/ou está indexado em dólar.
Além disso, o real desvalorizado favorece a venda das commodities brasileiras para o exterior - o que, por sua vez, gera escassez no mercado interno e, portanto, preços mais altos. Caso exemplar, disse o pedaço de granito, é o da soja. Como ficou bem barata para os compradores internacionais, sumiu do mercado interno. Com o pouco que sobrou, faz-se o óleo de soja que está sendo vendido a R$ 10 - antes, encontrava-se até por R$ 4.
O pedaço de granito ainda acrescentou que, desde a Roma antiga, existe um mecanismo fácil para evitar essas oscilações bruscas que geram inflação: são os chamados "estoques reguladores", uma boa quantidade de alimentos, sobretudo cereais, que o Estado armazena para que a escassez não tenha os efeitos que teve. O que fez o governo calhorda de Bolsonaro, completando uma sequência de cafajestices que vem de 2014 - com a paralisia provocada pelo Congresso - e explodiu depois do golpe ultraneoliberal de 2015-2016? Acabou com os estoques reguladores. Em suma, abriu o espaço para a inflação voltar com tudo.
Para um pedaço de granito, achei a explicação bem boa, fácil de entender. Só fiquei com uma dúvida: se até as pedras compreendem que a inflação atual é decorrência direta da incompetência governamental, por que a imprensa insiste em comprar a versão liberal (isto é, demofóbica, paupericlasta) segundo a qual o grande culpado seria o auxílio emergencial? Será que querem usar o fantasma da inflação para limar ainda mais direitos dos trabalhadores?
(Aliás, viram a matéria absolutamente ridícula da Folha de acordo com a qual o auxílio emergencial estaria servindo para as pessoas comprarem automóveis e aquecer a indústria automobilística? Só espero que, na próxima semana, não digam que as pessoas estão comprando iates e jatinhos com suas fortunas de R$ 600.)
“Um milhão de garrafas de vinho deixarão de ser produzidas no RS pq o veneno 2,4-D (usado na soja, mas que por má aplicação deriva pra outras culturas agrícolas) contaminou as plantações de uva. Só nesta área, o prejuízo do agrotóxico é R$ 200 milhões”.
No final de mais um dia
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