15 Dezembro 2020
Há 40 anos ocorria uma das mais ricas experiências de greve operária do período final da ditadura, num momento de emergência da luta de classes proletária no Brasil. O que chama a atenção nessa greve e faz dela, de fato, uma greve histórica, com ensinamentos que permanecem atuais para as novas gerações, são as formas conscientes de auto-organização, que resultam numa experiência avançada de autogestão da luta. Abaixo publicamos uma longa passagem retirada do 1º capítulo de Reflexões sobre o socialismo (São Paulo: Moderna, 1986), de Maurício Tragtemberg, intitulado A autogestão das lutas operárias.
Maurício Tragtemberg (1929-1998) foi um importante intelectual marxista, professor da FGV, da PUC-SP e da Unicamp.
Nessa passagem, destacamos três aspectos com subtítulos que são nossos e não constam no livro.
Primeiro, a compreensão teórica do significado revolucionário da experiência de autonomia proletária nas lutas de classe.
Segundo, o relato da greve, seus motivos e suas reivindicações.
Terceiro, as características dos Comitês de Luta (CL) dos operários da Fiat Xerém/RJ.
Para Tragtemberg, é na experiência concreta da luta, quando fundada por relações diretas, horizontais e não-hierárquicas, que está dada a possibilidade de novas relações sociais; e poderíamos acrescentar: as únicas que podem dissolver as relações mercantis, que são relações indiretas e alienadas.
Em junho de 1981, alguns meses após a greve, o Comitê de Greve publicou um livreto contando a história da greve, suas reivindicações, suas formas de organização e seu aprendizado. As fotos que publicamos nesse artigo as retiramos dele, assim como também nele se encontram as características dos Comitês de Luta que M. Tragtemberg cita ao final dessa parte que publicamos de seu texto.
A reprodução do texto de Maurício Tragtemberg é organizada por Emiliano Aquino, publicada por Revista A Comuna - Revista de Crítica Social, 10-12-2020.
O problema do socialismo coloca-se ante a existência real da luta de classes entre exploradores e explorados, entre opressores e oprimidos. Socialismo implica auto-organização, associação, autogestão operária.
A autogestão não é um objetivo da sociedade capitalista, seja na forma do capitalismo privado, seja na forma livre-concorrencial, monopolista ou estatal. Ela significa que o proletariado e os assalariados em geral gerem por si mesmos suas lutas, através das quais se conscientizam de que podem administrar a produção e criar formas novas de organização do trabalho. Em suma, que podem colocar em prática a “democracia operária”.
O predomínio da autogestão nos campos econômicos, social e político manifesta-se sempre que os trabalhadores aparecem como sujeitos revolucionários. São os períodos de ascensão dos movimentos de massas que tomaram forma na Comuna de Paris de 1871, na Revolução Russa de 1917, na Guerra Civil Espanhola de 1936, nas rebeliões de 1918 na Hungria e na criação do sindicato Solidariedade (1978) na Polônia.
A causa motriz desses movimentos sociais foi a luta contra a exploração, fosse praticada pelo capital privado fosse pelo capitalismo de Estado.
O caráter anticapitalista e socialista da luta operária não se mostra simplesmente nas reivindicações colocadas em pauta, mas também no fato de o proletariado, no processo da luta, criar “organizações horizontais”, igualitárias – comitês de greve, comissões de fábrica, conselhos operários.
O que corrói o capitalismo é a criação dessas organizações, pois elas negam o verticalismo dos organismos existentes, seja o Estado, o partido ou o sindicato. Estes são despojados de sua finalidade de controle da mão-de-obra através da ação direta dos trabalhadores.
Por mediação das instituições criadas no processo político-social, a classe operária possui a autogestão das suas lutas, ficando, portanto, decisão e a execução em mãos dos trabalhadores.
Assim, socialismo é entendido aqui como o regime onde a autogestão operária extingue o Estado como órgão separado e acima da sociedade, elimina o administrador dirigente da empresa em nome do capital e, ao mesmo tempo, elimina o intermediário político, isto é, o “político profissional”.
Por sua ação direta, os trabalhadores têm condição de desencadear um processo de greve, ocupar o local de trabalho e reorganizar o processo de produção no mesmo nível das relações que estabelecem entre si no processo de luta.
É nesse sentido que eles unificam a luta econômica e a luta política, estruturando a produção e abolindo as hierarquias existentes na fábrica e a divisão tradicional do trabalho.
A articulação dessas formas de luta operária que unificam pensamento e ação representa a prática da proposta socialista. Pode-se dizer que a luta operária é revolucionária pelas formas de auto-organização que cria, igualitárias, coletivas, onde as relações de hierarquia verticais, a submissão ou a dependência estão excluídas.
Criando instituições autogeridas por meio de sua práxis, a classe operária abre espaços onde as novas formas econômicas podem se realizar. Nesse sentido é inegável a contribuição de Marx para uma maior conscientização da importância da auto-organização dos trabalhadores como meio e fim, visando um projeto socialista.
No século passado, a autogestão das lutas operárias apresentou-se sob a forma de organização de associações operárias, as quais, por meio das greves, faziam-se ouvir e reagiam à exploração do trabalho e à extinção do próprio salariato como forma predominante de remuneração.
A necessidade de lutar pela abolição do salariato é que criou essas associações, que rapidamente tomaram a forma de uma associação permanente de luta. Por meio de sua prática, a associação pretendia construir uma existência social comum e, ao mesmo tempo, eliminar a concorrência que o capital estabelece entre os trabalhadores, substituindo-a pela união da classe.
A recomposição do modo de vida operário e a supressão da concorrência entre si e da divisão da classe em profissões (categorias) eram as razões de ser das associação operárias. E foram as greves e os vários processos de luta de classe que trouxeram à tona a prática dessas associações, tornando-se estas não somente a realidade antagônica ao sistema capitalista mas também o prenúncio da transformação deste.
A associação cria as precondições de união dos trabalhadores, porém a divisão de trabalho no interior das empresas e sua articulação nos vários ramos da produção social e econômica constituem seu maior obstáculo.
Embora a reivindicação de aumentos salariais seja considerada inerente à classe operária em sua totalidade, ela não elimina a hierarquização dos salários, dividindo os trabalhadores. A abolição do sistema de opressão e de exploração do salariato pressupõe a unificação dos operários, a qual elimina a concorrência mantida entre eles. Para Marx, isso se daria por meio da criação de um fundo comum de subsistência pela recomposição coletiva da vida, compartilhando-se a alegria inerente à luta associada dos trabalhadores.
Marx descobre que a associação nascida no processo das lutas, continuando após seu término – sempre passageiro -, representa a perspectiva revolucionária que leva à ruptura das formas burguesas de trabalho assalariado. A ruptura não é algo para ser deixado para um futuro remoto, mas inicia-se dentro da própria associação.
A associação constitui o espaço de luta operária contra a burguesia, daí a importância de se manter esse movimento como real e autônomo. Ele provoca a crise das instituições dominantes e do salariato, defrontando-se com o Estado capitalista ou com o “Estado socialista”, nova denominação do capitalismo de Estado.
Uma luta da classe operária inicia-se em razão de interesses imediatos, desdobrando-se, em seguida, numa luta revolucionária de desenvolvimento da associação no sentido de uma sociedade sem classes. Conclusivamente, em Marx não há lugar para as “teorias de transição ao socialismo” dominantes na URSS, Leste Europeu e alguns países africanos hoje em dia.
O embrião de uma associação emerge do processo de luta de classes e, depois, dá lugar à constituição de uma associação operária de luta e de existência comum, sem hierarquia e sem dirigentes ou dirigidos. Terminada a luta, a associação tem continuidade, reunindo-se às outras associações existentes. Esse processo realiza uma socialização proletária do poder, da vida e do trabalho. Opõe-se à “socialização” capitalista, realizada a partir das cúpulas dirigentes, centralizadora e alienante do trabalhador dos processos decisórios.
Assim, para Marx, desenvolver a associação – tenha ela esse nome ou comissão de fábrica, comitê de greve, conselho operário é fazer da luta através dessa associação uma luta para a associação.
Fonte: Arquivo
Qualquer projeto envolvendo o trabalhador é criativo, na medida em que cria entidades ou estruturas igualitárias através do processo de luta. A ação direta dos trabalhadores substitui os intermediários – os políticos profissionais – e a suprema autoridade é a assembleia, que tem poderes não só para nomear os que querem representá-los, mas também para destituí-los.
Porém a luta autônoma dos trabalhadores geralmente enfrenta o patronato e a burocracia sindical. Exemplo disso foi a luta dos trabalhadores da Renault, na França, considerada pelo patronato e pelos aparelhos sindicais como uma provocação, um complô contra as organizações operárias!
Já é público e notório que ser vítima da polícia patronal, lutar contra o fascismo na fábrica (o autoritarismo das gerências), é fomentar um complô contra a CGT (Central Geral dos Trabalhadores). Contra a autonomia operária, a direção da CGT tornou-se cúmplice consciente e sistemática das iniciativas fascistas do patronato. É a definição marxista de social-fascismo. É suficiente que o proprietário nº 1 não seja o mesmo da Renault, mas sim a direção da CGT, para que a Renault seja os estaleiros navais de Gdansk e a França se transforme na Polônia. Quem não viu a ‘milícia’ polonesa atirando sobre os trabalhadores de Gdansk, a polícia sindical da CGT agitando o espectro do complô, não viu coisa alguma do quadro francês. (Philippe Olivier, in Les Temps Modernes: Nouveau fascisme, nouvelle démocratie, nº 310, 1972, p. 12.)
Os trabalhadores da Renault tinham criado um comitê de luta com base nos delegados das diversas seções da empresa, firmando-se no combate à estrutura hierárquica e disciplinadora dominante. Esse comitê cresce rapidamente devido à intervenção policial, originando um movimento de massa sem precedente, na Renault, contra a hierarquia capitalista. A maior participação foi de trabalhadores jovens, que tomaram a frente do processo de luta. Os temas mais discutidos na empresa referiam-se à hierarquia interna, à ação autônoma dos seus trabalhadores e à punição de chefes autoritários.
A ação do comitê de luta enfrentou diretamente a burocracia sindical representada pela CGT, segundo a qual os operários não podiam pensar ou agir sem sua autorização, pois ela pretendia ser o representante único dos trabalhadores. Assim, a CGT considerava provocação qualquer iniciativa autônoma das massas trabalhadoras que desse liberdade à inteligência operária, colocando em xeque a hierarquia capitalista. Os operários somente podem conquistar sua consciência de classe por meio da contestação direta do sistema que os isola e divide. Possuir uma inteligência independente, questionar a linha de montagem ou o delegado sindical – que aceita essa linha como natural significa uma provocação à CGT, pois esta defende a “unidade natural” do pessoal, isto é, a hierarquia que o capital estabelece internamente na fábrica.
Então fica fácil entender o outro aspecto da questão: a união entre Marchais, líder do PCF (o PCF é hegemônico na CGT), e Jaruzelski, primeiro-ministro da Polônia. Defender uma estrutura empresarial que perpetue a hierarquia capitalista sob direção de uma classe patronal do “Estado público” é defender uma sociedade igual à polonesa ou à russa. A polícia sindical desempenha idêntico papel ao da polícia estatal na Polônia, que atirou contra os operários quando estes contestaram a hierarquia nos estaleiros navais. A única diferença é que a polícia sindical não é polícia do Estado, porém tem condições de sê-lo.
A ação autônoma das massas operárias não reside na sua independência formal ante a burocracia sindical. A autonomia é uma prática diversa do sindicalismo burocrático; no caso francês, por exemplo, responde a aspirações coletivas dos jovens e dos trabalhadores emigrantes, na condição de párias sociais. Da mesma forma, a sabotagem de equipamentos torna-se uma forma de resistência ao capital e ao autoritarismo fabril. Daí a exigência dos trabalhadores de eles próprios cronometrarem o ritmo de seu trabalho e de reivindicarem a rotação nos postos de trabalho para eliminar a desigualdade de remuneração.
A auto-organização operária no local de trabalho e a democratização das relações de trabalho constituem a base de qualquer democracia no plano da sociedade global, pois a existência do despotismo fabril com a democracia formal além dos muros da fábrica é uma profunda contradição.
Em cada reivindicação, refira-se a acidentes de trabalho delatores no local do trabalho, racismo, o mais importante é a reivindicação ‘do respeito ao trabalhador’. Eles devem dirigir o processo de trabalho para que a fábrica se democratize; isso pode ser imposto pela auto-organização da mão-de-obra. (P. Olivier, op. cit., p. 53-4.)
Outra luta fundamentada na auto-organização no local de trabalho contra o patronato, o Estado e a burocracia sindical foi a greve da Fiat-Diesel em Xerém (Estado do Rio de Janeiro), que durou 42 dias.
Quando a Fiat assumiu o controle acionário da antiga Fábrica Nacional de Motores (FNM), passou a haver inúmeras demissões, implicando redução do número de operários e alta rotatividade da mão-de-obra. Nesse contexto, a rotatividade da mão-de-obra constitui um meio de controle do trabalhador pelo capital.
A cada quatro anos as grandes empresas trocam seu quadro funcional, mas a Fiat-Diesel trocou em muito menos tempo. De 13 250 trabalhadores, a Fiat conservou menos de três mil operários; em seis anos e quatro meses (de setembro de 1974 a dezembro de 1980), ela demitiu mais de 10 mil operários.
A produção reduziu-se devido à transferência da fabricação do Alfa-Romeo para Betim (MG), sendo que a empresa utilizou os escandalosos benefícios governamentais e depois parou de produzir o carro.
Essa empresa também utilizou a rotatividade para perseguir, desmoralizar e demitir os operários que não se sujeitaram às suas ordens. Assim, a 24 de dezembro de 1980, foram demitidos dezenas de operários, representantes da Comissão Interna de Empregados e até mesmo um membro da CIPA (Comissão Interna para Prevenção de Acidentes), que tem sua estabilidade garantida por lei.
Fonte: Arquivo
Em resposta, 1 100 operários decidem pela greve, reivindicando um ano de garantia no emprego e o retorno dos 250 demitidos. Criam um Comitê de Luta (CL) independente, fundado nos seguintes princípios:
“a) Democracia operária: Submissão da minoria à maioria, inclusive da ‘vanguarda’. A minoria tem o direito de se manifestar;
b) Autonomia e independência: Os comitês de luta atuam no sindicato dirigido por pelegos (agentes patronais vinculados ao Estado), mas em hipótese alguma devem permitir ser atrelados à estrutura do sindicato oficialista. No comitê se manifesta a total autoridade do peão: ‘Quem manda é o peão’. Portanto, o CL é apartidário, sem obedecer a qualquer organismo superior ou a qualquer partido;
c) Direção coletiva e combate às hierarquias: Os CL não devem se subordinar a instâncias superiores e muito menos criar instâncias inferiores. Devem permanentemente lutar para que haja o máximo de divisão de tarefas, de informações para todos. Assim se criam condições para o exercício da direção coletiva. É um risco muito perigoso um pequeno grupo de ativistas controlar ou decidir pelo grupo;
d) Respeito à individualidade: Os CL devem respeitar a capacidade individual de cada ativista. Para um bom desempenho da ação do comitê devem-se utilizar as capacidades individuais daqueles que reúnem melhores condições de levar as posições do comitê e da massa. Porém isso não pode significar concentração de poder ou de informação nas mãos dessas pessoas. À medida que se democratizam ao máximo as informações, mais condições teremos de exercer a democracia operária;
e) Ação clandestina: É fundamental para uma boa ação e desempenho do CL o seu funcionamento sem que os patrões saibam quem são seus membros. Porém, há condições, como no caso da Fiat, em que os trabalhadores garantem no peito e na raça companheiros que eles imaginem que são ativistas do CL. A ação clandestina é para que patrões, pelegos ou puxa-sacos não saibam, mas em hipótese alguma o CL é secreto para a massa. Os CL devem procurar criar e participar de organismos legais. A atuação nesses organismos como CIPA, delegações sindicais, comissões etc. está respaldada por uma ampla rede de núcleos dentro da empresa. Os organismos legais são fundamentais na divulgação e ampliação da ação dos CL. É uma luta sindical, mas que constrói pouco a pouco o poder operário dentro da empresa e se impõe aos patrões, à chefia e ao pelego traidor;
f) Organismo de massa: A articulação e organização do comitê é bastante flexível, sem sectarismos, dogmatismos ou quaisquer aparelhismos. É uma organização do peão e portanto deve funcionar de acordo com o nível, compreensão e capacidade de o peão se organizar dentro da empresa. O CL, como organismo de massa, procura dividir todas as responsabilidades com os trabalhadores, desde a elaboração e impressão de panfletos, o recolhimento de dinheiro, até as discussões permanentes com os trabalhadores sobre os problemas da fábrica;
g) Função básica do comitê: O CL parte do princípio de que o aprendizado político e a capacitação dos trabalhadores se dão na própria ação concreta e na democratização das decisões e da informação. Luta intransigente e permanente utilizando todos os meios possíveis na defesa dos interesses mais imediatos dos trabalhadores do conjunto da fábrica, ou de uma linha ou setor de produção. Defesa sem tréguas de todos os interesses sindicais da classe. Combate a todas as formas de humilhação e autoritarismo por parte dos patrões, da chefia etc. Defesa da dignidade e criação do poder do trabalhador dentro da empresa. Denúncia feroz contra o peleguismo. Denúncia contra o sindicato oficialista como um instrumento dos patrões para desviar os trabalhadores da criação de um sindicato controlado pelas bases e independente de qualquer influência dos patrões.
“Os comitês de luta e a sua ação com os trabalhadores elegem e mantêm uma organização de base, como é a Comissão Interna de Empregados da Fiat, eleita com 90,8% de votos. Da mesma forma são eleitos democraticamente comandos de greve, quando o movimento exige. Isso não quer dizer que nesses organismos só participam ativistas do comitê.
“A Comissão se impõe aos patrões porque é garantida por toda a massa, que a elege e a faz, sua porta-voz. Isso permitiu, por exemplo, que a nossa greve tenha se mantido por 42 dias.
“Outro aspecto importante é o fato de que a fábrica, para desmantelar grande parte da atuação do comitê, precisa demitir centenas de operários, como foi o caso da nossa greve, e não apenas alguns líderes.” (Obra coletiva, Fiat 42 dias de greve, Rio de janeiro, 1981.)
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