03 Dezembro 2020
"A parte que lhes cabe no modo de produção capitalista: ocupar a rua, fazendo dela a sua própria morada; (sobre)vivendo dos restos do sistema capitalista, já que comumente são catadores de materiais recicláveis. A rua lhes é dada como espaço para sobreviver e existir. É a rua que de igual modo os tornam invisíveis e os silenciam. É a rua que promove a marginalização de seus corpos e os tornam descartáveis, inservíveis, indesejados", escreve Mariana Bezerra Salamé, em artigo publicado por Justificando, 02-12-2020.
Para quem vive nos grandes centros urbanos ou em cidades de médio porte, mesmo nestes tempos em que os deslocamentos estão – ou deveriam estar – mais limitados pelas contingências da pandemia do COVID-19, é fácil perceber um aumento da população em situação de rua.
Esse crescimento, que vem sendo observado desde da década de 90, ganha novos contornos com a conjugação explosiva de diferentes variáveis: precarização das relações de trabalho, desemprego e, consequente empobrecimento da classe trabalhadora, desmantelamento das políticas públicas de inclusão social e política habitacional escassa.
Que vidas são essas que, na sua experiência de não serem vistas, e tendo negado o próprio direito à cidade, compõem a sua paisagem, ocupando e resistindo nas ruas? Qual é o lugar que lhes é reservado na nossa sociedade?
A população em situação de rua é bastante heterogênea e complexa, formada por pessoas, em sua maioria homens negros, de diferentes recortes e vulnerabilidades e, no entanto, atravessadas pela circunstância de utilizar a rua para a sua sobrevivência. Importante registrar que os dados sobre este contingente populacional são escassos e dispersos, já que não integram as pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Ou seja, essa população é também excluída do censo demográfico brasileiro – há um Projeto de Lei nº 4.498/2020 que determina a inclusão da população em situação de rua no censo demográfico realizado pelo IBGE.
De acordo com o Decreto nº 7.053/2009 – que, ao instituir a Política Nacional para a População em Situação de Rua, reconheceu juridicamente a vulnerabilidade desta coletividade – são características comuns às pessoas em situação de rua a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou como moradia provisória.
Se olharmos na perspectiva de um (auto)retrato, as pessoas em situação de rua são uma das faces mais perversa da nossa sociedade exatamente desigual, causa e consequência de um ciclo vicioso que se autoalimenta da falta de trabalho e renda, da fragilização e ruptura dos laços familiares e sociais, do adoecimento psíquico e, muitas vezes, do consumo de drogas lícitas e ilícitas.
A despeito dos direitos fundamentais à moradia, à saúde, à educação e à assistência social assegurados na nossa Constituição Federal, os quais lhes foram subtraídos e/ou negados pela estrutura que sustenta a lógica capitalista, as pessoas (sobre)vivem à margem, sem direito a ter direitos.
A parte que lhes cabe no modo de produção capitalista: ocupar a rua, fazendo dela a sua própria morada; (sobre)vivendo dos restos do sistema capitalista, já que comumente são catadores de materiais recicláveis. A rua lhes é dada como espaço para sobreviver e existir. É a rua que de igual modo os tornam invisíveis e os silenciam. É a rua que promove a marginalização de seus corpos e os tornam descartáveis, inservíveis, indesejados.
Trata-se de um paradoxo: por não possuir uma moradia fixa, habitam o que é público, como que compondo a paisagem, e, embora vistos por todas e todos que cruzamos a cidade, são pela maioria de nós invisibilizados e desumanizados. Quase como lampejos, se revelam para nós apenas quando nos despertam o nosso desconforto, mas logo a sua presença se acomoda na indiferença e descaso.
Afinal, quem quer ser confrontado com a miséria nossa de cada dia materializada em corpos que, apesar dos pesares, “teimam” em existir e resistir? Despojamos a pessoa em situação de rua de sua humanidade e legitimamos, assim, a nossa total indiferença. E, para além disso, autorizamos o aniquilamento desses corpos tidos como indesejáveis, muitas vezes vítimas das “mortes matadas”.
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Quem não tem direito a ter direitos? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU