04 Novembro 2020
Nem todos os dias se tem a oportunidade de entrevistar alguém que esteve nas três massas de gelo que sustentam nosso já precário equilíbrio climático. Se esse alguém é um glaciólogo considerado um especialista mundial no assunto, professor da Universidade Columbia e pesquisador da NASA, menos ainda.
Marco Tedesco (Itália, 1971) viajou pelas grandes superfícies geladas para estudá-las e aprender o que estamos provocando nelas. Em seu livro recente, “Hielo: viaje por el continente que desaparece” (Gatopardo, 2020), nos anima a amá-las, a entender como é valioso tê-las firmes e o que pode significar ficarmos sem elas.
A entrevista é de Juan Bordera, publicada por Ctxt, 02-11-2020. A tradução é do Cepat.
Tive a impressão que seu livro pretende transmitir as sensações que se tem em lugares como a Groenlândia ou a Antártida, para aproximar o leitor da dureza de estar ali, a solidão, o companheirismo. Não é um livro apenas sobre o degelo.
Esforcei-me para evitar que seja uma mera descrição numérica e seca do degelo do Ártico. Minha intenção foi a de transferir ao leitor a paisagem da Groenlândia, fazê-lo sentir a beleza e a solidão que reinam nessa região, fazê-lo partícipe de minha viagem emocional.
Estou convencido de que o amor à natureza é o que move a maioria dos cientistas. Caso se separe e delimite o componente racional do componente emocional, torna-se impossível compreender o contexto real de como se vive a ciência por dentro.
Também queria prestar homenagem às minhas raízes e a minha própria história como imigrante. Para além do derretimento do gelo e o aumento do nível do mar, há muitos fenômenos relacionados ao gelo que as pessoas desconhecem, queria compartilhar minhas descobertas com o público.
Comenta que no Ártico o aumento da temperatura que se registra globalmente está duplicando. Como explicaria o perigo da amplificação polar?
O gelo, que reflete muita radiação solar a redirigindo para o espaço, desaparece e é substituído por um oceano escuro que absorve mais radiação e gera mais calor. Ocorre também quando a camada de neve desaparece de forma prematura, o que já está acontecendo, e se vê substituída por terra ou matas. E não quer dizer que a temperatura continuará subindo a um ritmo que duplique a do resto do planeta, pode ser pior.
Ao se tratar de mecanismos de retroalimentação, reforçam a si mesmos na medida em que avançam, do mesmo modo que um trem em declive aumenta a velocidade porque se segue colocando carvão na fornalha, mas também por estar descendo uma ladeira. Estamos colocando mais carvão na fornalha para que a locomotiva, que desce sem controle, vá ainda mais rápido.
Viu muito de perto o que está acontecendo no Ártico, na Antártida e na Groenlândia. O que considera mais perigoso? Do que quase não se está falando?
Existem perigos de diferentes graus. A curto prazo, o principal perigo são as consequências que os degelos na Groenlândia e a Antártida terão para o futuro dos oceanos. O gelo derretido modificará a temperatura oceânica, tendo um impacto sobre as correntes marinhas em todo o planeta e sobre os ambientes locais: os peixes e as atividades humanas, assim como em outros ecossistemas cujo funcionamento está ligado a outros elementos do mesmo ambiente. Quando um elemento-chave começa a ser alterado, o ecossistema inteiro pode colapsar.
Em escala maior, o aumento do nível do mar, junto com o aumento de fenômenos extremos, serão os ingredientes perfeitos para colocar em risco as povoadas zonas litorais. Isto terá ramificações na economia, em nossa maneira de viver, no fornecimento de bens, na comida, no transporte. Além disto, quase não se está falando do custo humano do desaparecimento da camada de gelo, que atingirá as classes sociais mais vulneráveis.
Isto me leva à segunda coisa da qual pouco se fala: os refugiados climáticos. O impacto socioeconômico, especialmente neste grupo de pessoas, causará um dano enorme que a sociedade inteira pagará. Fala-se pouco do assunto porque é difícil de administrar, requer a cooperação internacional e, é claro, um enorme esforço econômico.
O que sentiu ao ver os eventos deste 2020? Sibéria, Austrália, Califórnia e a Amazônia ardendo, escoamentos no Ártico pelo permafrost derretido, recordes de temperatura por todas as partes... Nossa aceleração sem freio é respondida de igual maneira pela natureza que acelera e aumenta também suas respostas?
Sim, definitivamente. Estamos tentando salvar nossa sociedade baseada no sistema econômico vigente, o capitalismo, com a concentração de riqueza nas mãos de poucos. Valorizamos a natureza nos baseando em ferramentas econômicas, até mesmo quando falamos de conceitos como sustentabilidade. Precisamos encontrar formas de preservar o planeta desenvolvendo um novo modelo econômico.
Infelizmente, a pandemia acelerou muitos problemas e colocou em evidência a importância de abordar os grandes desafios, antes que apareçam novos. A natureza claramente está reagindo à nossa atividade e de modo algum nos verá como uma prioridade quando se reconfigurar para compensar as forças que a estavam estressando.
Inicialmente, conta como o gelo é instável, racha-se sob os seus pés e isso faz com que você esteja continuamente em tensão, pois nada é seguro. O mesmo cabe à nossa civilização? Ou seja, na medida em que passa a haver menos gelo nos polos, estamos cada vez mais expostos ao que não se pode prever?
Muito boa a consideração. Nunca havia pensado nisso, na sensação de insegurança ou de instabilidade, no medo de estar sobre o gelo relacionado à civilização, mas é um bom paralelismo. Podemos antecipar algumas coisas, podemos buscar compreender o que acontecerá no futuro, mas cada vez é mais difícil.
Imagine-se como presidente dos Estados Unidos, a partir deste mês de novembro. Como buscaria contornar esta situação?
Voltaria ao Acordo de Paris, aumentaria significativamente o investimento em energias renováveis, estimularia as economias mais poderosas a encontrar novos modelos que dessem resultados a médio e longo prazo, começaria a cobrar impostos das corporações pelo que fazem e financiaria tecnologias de sequestro de carbono. Também criaria incentivos para as empresas e desenvolveria políticas para fazer com que as obrigações ambientais sejam cumpridas.
Caso Trump volte a vencer, o que podemos esperar?
Seria muito perigoso. Espero que não aconteça.
Com a abertura das rotas marítimas do Ártico, quem tem mais a ganhar: a China e sua rota polar da seda, a União Europeia por seu consumo, ou os Estados Unidos que costumam ficar com a melhor parte do bolo?
A China obterá vantagens para o transporte de bens. E os Estados Unidos se beneficiarão com o aumento da atividade portuária. Não acredito que as rotas marítimas do Ártico devam ser utilizadas, sobretudo porque não há logística em caso de acidente. Se acontece um acidente, um vazamento, seria um desastre ecológico de proporções maiúsculas que podemos prevenir em vez de nos lamentar e nos queixar depois que acontece, como vem sendo a norma.
Com 12% das reservas de petróleo e 30% de gás no Ártico, acredita que é possível reagir a tempo?
Nesse exato momento, diria que não é possível. A única coisa que poderia dissuadir estas pessoas de intervir no Ártico é que os custos de logística são muito altos. Essa é a razão pela qual a Exxon Mobil decidiu parar suas explorações. Se continuarmos trabalhando com o mesmo modelo, não iremos consertar as coisas. Definitivamente, precisamos de um novo modelo que acabe com o negócio do petróleo e o gás. É preciso se concentrar nas energias renováveis e no sequestro de carbono da atmosfera.
Vivemos – como reza a maldição chinesa – em tempos interessantes. Mesmo assim, você tem esperança de que se evite os piores cenários?
Sim, tenho esperança, podemos evitá-los. Há uma nova geração de pessoas que não apenas estudam o problema como também estão mudando o seu estilo de vida. O ser humano exerce um poder enorme sobre o planeta. Vimos isto com a covid-19, ao pararmos de circular tanto. As emissões de CO2 baixaram drasticamente.
Precisamos agir com rapidez, dar poder às novas gerações para que atuem, empoderar as comunidades locais com as ferramentas necessárias para passar à ação e começar a conferir maior representação às pessoas que se preocupam com estes temas, para que tenham o poder de mudar as coisas em nível governamental.
Existe algum projeto ou movimento climático que avalia que acerta, de modo especial?
Há muitos. O desafio consiste em fazer com que não diminuam. Não tenho um preferido. Gosto de iniciativas lideradas por jovens. Acredito que temos que dar poder aos jovens, às mulheres, às minorias. Temos que construir inteligência coletiva.
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“Precisamos de um novo modelo que acabe com o negócio do petróleo e o gás”. Entrevista com Marco Tedesco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU