23 Outubro 2020
"Bolsonaro alimenta o apoio de grupos cristãos brasileiros ao seu governo e reforça a retórica de combate a inimigos da fé", escreve Magali Cunha, em artigo publicado por Carta Capital, 21-10-2020.
Magali do Nascimento Cunha é doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo - USP, mestra em Memória Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO e graduada em Comunicação Social, Jornalismo, pela Universidade Federal Fluminense - UFF. Ela ainda realizou estágio pós-doutoral em Comunicação e Política, no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura, da Universidade Federal da Bahia - UFBA. É coordenadora do Grupo de Pesquisa Comunicação e Religião da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação - Intercom, também integra a Associação Internacional Mídia, Religião e Cultura (International Association Media Religion and Culture) e a Associação Mundial de Comunicação Cristã (World Association for Christian Communication, WACC). Entre as obras publicadas, destacamos Religião no noticiário: marcas de um imaginário exclusivista no jornalismo brasileiro (E-Compós, Brasília, v. 19, p. 1-21, 2016) e Mídia, Religião e Cultura: percepções e tendências em perspectiva global (Curitiba: Prismas, 2016).
Há algumas semanas escrevi sobre a falácia do uso do termo “cristofobia” pelo bolsonarismo, a propósito do discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU, e repercussões entre apoiadores. O ex-capitão apresentou o tema à Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas como uma das grandes questões a serem enfrentadas no mundo, o que foi bastante repercutido no Brasil.
Escrevi nesse artigo que, ao usar do argumento de “cristofobia”, Bolsonaro não só busca alimentar o apoio de grupos cristãos brasileiros ao seu governo, reforçando a retórica de combate a inimigos da fé, mas segue na trilha das pautas ideológicas dos fundamentalismos político-religiosos em avanço no país e em toda a América Latina.
Apesar de ferirem o Estado laico com suas posturas absolutizantes, os fundamentalismos político-religiosos não o negam. Pelo contrário, estes grupos distorcem e instrumentalizam a noção de laicidade do Estado e a agenda de direitos e advogam suas práticas nas bases de uma suposta liberdade de religião.
A ideia de “cristofobia” então emerge como acusação a todos que questionem a ocupação do espaço público por cristãos na imposição de pautas restritivas de direitos e de políticas baseadas em um tipo de interpretação do Cristianismo. Esta defesa de um “governo cristão” em país majoritariamente cristão, torna-se uma estratégia discursiva anti-direitos de minorias sociais, em nome da “liberdade”. No entanto, neste caso a liberdade se daria para uma fatia social apenas, a que abraça esta tendência do Cristianismo, com imposição de restrições para as demais. E para isso, o governo do Brasil tem buscado assessoria de juristas fundamentalistas, entre católicos e evangélicos. A atuação da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) com o ministro Ernesto Araújo em pautas internacionais, é forte exemplo desta ideologia.
Nestes dias o tema da “cristofobia” volta à cena alavancado por bolsonaristas, com o suporte de cristãos que são afetados por este discurso. A base foi a notícia de manifestações no Chile, a propósito do primeiro aniversário do início dos protestos populares no país (os maiores desde a ditadura militar) para exigir a retomada de direitos sociais. Durante os eventos do domingo 18 de outubro, espalhou-se pelas mídias sociais que duas igrejas foram incendiadas. Este episódio foi fartamente explorado em espaços bolsonaristas como atos de “cristofobia da esquerda”, atrelando-os imediatamente ao processo de eleições municipais em curso no Brasil.
Qualquer leitura básica dos episódios no Chile indica ações de revolta e vandalismo que não são inéditas, desde as manifestações de 2019, que incluem incêndio de carros da polícia e de estações do metrô. Igrejas, também incendiadas antes, não foram, portanto, alvos isolados. No caso deste domingo, investigações já mostram que foi uma igreja incendiada, relacionada a carabineiros (os policiais chilenos) e que um militar da Marinha, suspeito de infiltração, teria sido o responsável pelo ato criminoso.
Independentemente da questão política que envolve os atos no Chile, e de que o país está prestes a realizar um plebiscito para implementar a primeira assembleia constituinte democrática da história do país, o tema da “cristofobia” de forma alguma cabe nesta discussão. É um reforço ideológico ao discurso fundamentalista.
No texto “Cristofobia, uma estratégia preocupante”, publicado pelo Coletivo Bereia – Informação e Checagem de Notícias, a cientista social Brenda Carranza explica que usar este termo pode ser uma armadilha. Ela diz:
"… de um lado, coloca na pauta religiosa, social e da mídia um fenômeno que não existe no Brasil nem na América Latina. De outro lado, porque como todo preconceito esconde as diferenças internas que há nos grupos que ele estigmatiza, justifica sua exclusão e reforça uma visão de serem ameaçadores para a ordem moral estabelecida por um tipo de interpretação cristã. Que dito seja, não é consenso no Cristianismo, nem católico nem evangélico, pois ambos segmentos são profundamente plurais. Mais ainda, e aqui entra o elemento perigoso: ele justifica ameaçar, atacar e criminalizar aqueles que são alvo de sua perseguição em nome de uma inversão criada por esses grupos que reverberam o termo. Dito de outra forma: cristofobia é um álibi para perseguir a quem se disse perseguido. Álibi que historicamente sempre foi nefasto para a sociedade e a religião, basta lembrar a Inquisição e ler a História”.
Quem absorve a falácia da “cristofobia” são, pelo menos, três tipos de pessoas: 1) políticos e religiosos que jogam com os temas da fé para conquistar apoios e reforçar oposição a grupos de esquerda, que classificam como inimiga da fé, mesmo entre os próprios cristãos; 2) fanáticos seguidores de políticos e religiosos que aceitam sem questionar o que é divulgado em suas bases; 3) cristãos de fé ingênua que não têm referências substanciais para julgar a instrumentalização da sua fé e são afetados pelo pânico moral contido em tais discursos.
Quando qualquer grupo religioso, inclusive cristão, desclassifica, ironiza, diminui, formas diversas de fé e busca impor uma única forma religiosa, como verdadeira, o direito humano de crer e de não crer está sendo violado. É isto que têm que ser enfrentado, inclusive o discurso de “cristofobia” que visa alimentar esta prática.
Quem fala de “cristofobia”, advogando liberdade, precisa fazer o mesmo em relação à fé de matriz afro, islâmica, budista, sikh, hindu, espiritualista, entre tantas outras, e à liberdade de não se ter uma fé. Parafraseando o mandatário brasileiro “uma das grandes questões a serem enfrentadas no mundo” é, de fato, a intolerância, entre elas a religiosa, um sentimento nocivo que acompanha o ser humano em toda a sua trajetória de existência, e se concretiza no preconceito, na segregação, no fanatismo e no autoritarismo teocrático, o que nada tem a ver, no Brasil, com “cristofobia”.
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‘Cristofobia’ como discurso de proteção aos fundamentalismos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU