21 Outubro 2020
Os sonhos não envelhecem...
Enquanto os casos de feminicídio se multiplicam, o Brasil tem como presidente um cidadão para quem feminicídio é "mimimi". E que se opõe à existência da Lei do Feminicídio.
(Página 186 de "Sobre Lutas e lágrimas", capítulo "'Papai mandou matar mamãe'".)
Toda a canalhice estampada na cara do "presidente" quando anuncia, com sorrisinhos dirigidos a uma plateia de absolutos crápulas, que a Anvisa atrasará a análise da vacina desenvolvida no Butantan. Tudo porque o esterco miliciano sente-se ameaçado pelo Dória.
A oposição tem de ir em peso ao STF cobrar seriedade no trato com a vacina. E sobretudo tem que exigir que a vacinação seja compulsória, única forma de eliminar o vírus.
O espectro político nas redes sociais é um negócio fascinante. De um lado, não se pode relativizar estupro, mas pode relativizar decapitação. Do outro, é o inverso. E todo mundo fica te empurrando pra ser uma dessas duas merdas. Caso contrário, você é o isentão, o covarde que não assume lado.
Eu vi algumas das mentes mais brilhantes do meu tempo destruídas por loucura, pandemia, encerro, pauperização e fascismo. Nada presumo saber sobre quem está tendo que tomar dois ônibus para lecionar o dia inteiro, por exemplo (e note-se que isso não é desconhecido para mim: tomar dois ônibus para lecionar o dia inteiro era exatamente o que eu fazia entre 1985 e 1987--claro, sem pandemia).
No entanto, creio, sim, saber um pouco sobre as patologias que assolam uma parte do andar de cima, os acadêmicos próximos ao topo da cadeia alimentar.
Esses acadêmicos jamais se veem como ricos, apesar de o serem, e agarram-se a um pseudo-marxismo mal digerido para se verem a si próprios como oprimidos, e ter uma plataforma (uma desculpa) para exacerbar o seu egoísmo e sua incapacidade de solidariedade. Via de regra, quando um mínimo privilégio desaparece – por exemplo, por motivos de escolha estudantil, a garantia de um público de doutorandos cativos para suas aulas velhas –, eles não pararão para pensar em como lidar com essa perda. Como autômatas egoístas, eles se dirigirão aos mais vulneráveis para impor-lhes uma doação ainda maior de sangue para manter o privilégio. Impor-lhes-ão, por exemplo, um curso obrigatório. E ainda fá-lo-ão com um raciocínio intelectual fake, para dizer que os doutorandos “precisam” daquele curso, quando na verdade é ele que precisa da polícia para ter alunos em sala. É terrível quando vejo acontecer, morro de vergonha da minha categoria.
Mas o irritante dessa elite é a toada de estar sempre ocupada, quando 90% de suas ocupações foram escolhas suas. Eu já nem ligo mais, só dou um sorriso de canto de boca quando ouço os “I'm so busy” que são, para esse setor, uma mistura de medida de prestígio e teatro da autocomiseração. Às vezes respondo com algo verdadeiro-mas-irônico, do tipo “também estou ocupadíssimo. Ontem reli Quincas Borba pela primeira vez em 32 anos, estou em êxtase”.
O caso que segue é verídico, mas a pessoa não será exposta. O objetivo é exemplificar e fazer rir mesmo. Em 2013, brasilianista me diz que tem vontade de expandir seus interesses rumo à Amazônia e eu respondo entusiasmado, dando o começo do caminho: “leia A queda do céu, de Kopenawa e Albert, e comece daí. Depois você dá um jeito de visitar.” O livro havia acabado de sair.
Passam-se dois anos, eu faço mais uma viagem à Amazônia, publico incontáveis denúncias de agressões à floresta e seus povos na internet, publico dois artigos acadêmicos sobre o tema e vejo a pessoa de novo. Eu nem digo nada, ela me diz “estou com sua sugestão de 'A queda do céu', ainda não tive tempo”. O assunto morre. Passam-se mais uns três anos, eu publico mais uns quatro artigos acadêmicos sobre a Amazônia, releio o livro umas duas vezes, dou umas vinte palestras sobre literaturas ou cosmogonias amazônidas nos EUA, Brasil e outros países, vejo a pessoa de novo, e ela me diz “nossa, estive muito ocupado, não li ainda o livro que você sugeriu, A queda do céu”. Naquele momento o negócio já havia virado piada pra mim, porque gosto de rir de professores universitários que “não têm tempo” de ler UM livro.
E aí recentemente, já na pandemia, SETE ANOS depois de eu sugerir o livro, ouvi a mesma frase da mesma pessoa e não resisti:
– Fulano, não se preocupe, não precisa ler mais, não. O céu já caiu.
Sobre a relação entre o bolsonarista típico e a corrupção comezinha, vagabunda, de rachadinha e de dinheiro no rabo dos seus líderes, é preciso que se diga algo patente, visível, que não é dito com frequência porque é um tema em que os lulistas ficam muito defensivos. Mas isso não torna a observação menos verdadeira.
Uma parcela substantiva da base do bolsonarismo morre de ressentimento e de inveja dos lulistas, porque já sacou que a corrupção dos dois lados é fundamentalmente diferente. A petista era profissa, no atacado, e incluía um funcionamento estável das instituições.
A corrupção bolsonarista, além de ameaçar a democracia de um jeito que a lulista não ameaçava, ainda por cima tem essa característica: a base de apoio dos corruptos morre de inveja e de ressentimento da corrupção do outro.
É uma miséria total, mesmo.
Carlos René Padilla escreveu "Missão integral: ensaios sobre o reino e a igreja" (no Brasil pela FTL) em 1992. Profeticamente denunciou:
"A igreja que não alimenta sua fé mediante a reflexão facilmente se torna vítima das ideologias. Ela carece de critérios para julgar respostas que são propostas em seu meio ambiente. O resultado é que ela se ajusta às circunstâncias do momento, e se converte em mantenedora do status quo, ou, ao contrário, está condicionada pela propaganda de uma ideologia de mudança e se deixa instrumentalizar, se deixa usar, inconscientemente. Creio que é precisamente nesta área onde reside o maior perigo de uma ‘igreja de massas’ sem orientação teológica, como o é a da América Latina nesta conjuntura da história: o perigo de se deixar arrastar pelo vento que sopra, sem critérios para discernir o que o evangelho exige dela. Isto é particularmente válido para países como o Brasil".
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