21 Outubro 2020
"Tanto na tradição judaica quanto na filosófica, o homem é um ser exilado, pois ele não escolheu essa condição, mas lhe foi imposta, seja por seus atos (comer o fruto proibido), seja pela própria formação do mundo (dentro e fora da caverna). O lugar do homem era o paraíso, mas, pelo pecado do homem primordial, todos os outros carregam em si a marca indelével de ser exilado, migrante, viajante", escreve Jordhan Gularte Francisco, imc, missionário em Curitiba, bacharelando em Filosofia pela Faculdade Vicentina (FAVI) e organizador do livro Escritos para a missão (Chiado Books. São Paulo: 2020).
Se recorrermos aos primórdios da literatura filosófica-teológica, deparamo-nos com o livro do Gênesis, o qual é tão significativo para a constituição do mundo ocidental, sobretudo com o fenômeno do cristianismo. Tendo criado o homem à sua imagem e semelhança, Deus atribuiu ao homem, ainda no Jardim do Éden, o cuidado para com as demais criaturas. Já que tudo era bom, pois tudo foi criado segundo a vontade de Deus, a função do homem era seguir as regras prescritas: cuidar da criação e, em hipótese alguma, comer da árvore do conhecimento. Adão, tentado pela serpente e por sua companheira, Eva, desrespeitou a principal regra, pecando, tornando-se, talvez, realmente humano. Reconhecendo o erro cometido, Adão se escondeu da visão de Deus, recôndito de sua existência.
Deus, uma vez onisciente, já sabia tudo sobre a sua criação, inclusive que ele tinha a possibilidade de pecar, através de sua liberdade em desrespeitar ou não o que havia sido prescrito. Por isso, em nenhum momento, Deus se pergunta sobre “que é o homem?”, mas “Onde estás?” (Gn 2, 9). O paraíso, figura emblemática sobre a relação profunda entre o homem e Deus, era a casa de Adão. Lá, diferente de outros lugares, o homem tinha tudo: animais, alimentos, água, companhia. Apesar disso, ele não estava satisfeito, queria ser mais, queria ultrapassar os limites já estabelecidos, queria ir adiante. Todavia, na procura de si, Adão encontrou o nada. Se Deus era o seu porto-seguro, o seu alicerce, agora ele se encontra inteiramente nu, desprotegido, envergonhado. Angustiado por suas fragilidades, coloca a culpa em sua companheira, isto é, em outra pessoa, em outrem. Deixando o paraíso – a profunda relação entre Deus e o homem, o núcleo secretíssimo entre o humano e o divino – de ser a casa do homem, ele está condenado a ser um perpétuo desgarrado nas estradas do mundo, o não paraíso, onde não jorra leite e mel, já que é um vale de lágrimas.
A escrita do Gênesis data aproximadamente do século IV a. C., apesar de ser o primeiro livro bíblico e relatar a origem do mundo. Neste período, temos o desenvolvimento da filosofia grega-ocidental. Desprendendo-se de explicações estritamente mitológicas, o homem passou a justificar a sua existência e os fenômenos naturais racionalmente. Isso, por sua vez, levou o homem a um radicalismo exagerado, ao ponto de distinguir o Cosmos em dois mundos: sensível e inteligível. Utilizando-se de uma analogia, Platão compara o mundo com uma caverna, onde existe o dentro e, também, o fora, interno e externo. Em sua obra A República, no livro VII, a personagem Sócrates afirma: “imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça (...)” (PLATÃO, 2000, p. 225). O filósofo assevera expressamente que este não é o nosso lugar, apenas uma sombra do mesmo. Tudo o que vemos não é o que, realmente, existe, mas uma cópia, uma imitação da realidade. Estamos onde não deveríamos estar.
Percebemos que, tanto na tradição judaica quanto na filosófica, o homem é um ser exilado, pois ele não escolheu essa condição, mas lhe foi imposta, seja por seus atos (comer o fruto proibido), seja pela própria formação do mundo (dentro e fora da caverna). O lugar do homem era o paraíso, mas, pelo pecado do homem primordial, todos os outros carregam em si a marca indelével de ser exilado, migrante, viajante. Se Caim foi condenado a perambular errantemente pela terra (Gn 4, 14), pelos séculos dos séculos, os descendentes de sua família receberam o fardo de caminhar por esta terra, acreditando que, talvez, Deus poderia restituir a profunda amizade que tinha com o ser humano, isto é, o Paraíso. Em Platão, a alma se encontrava primordialmente no mundo inteligível, até um dia cair neste lugar. Impotente, a alma não escolhe cair, tampouco em uma pedra ou em um ser vivo, mas essa condição lhe é imposta.
Por volta do século I a. C., Fílon de Alexandria aproximou o Pentateuco com o pensamento grego, sobretudo com a teoria platônica. A sua filosofia mosaica consiste em que a saída da caverna do homem acorrentado e a saída de Abraão para uma terra prometida constitua um e mesmo fato: o que o homem vê não é o que de fato existe, necessitando, portanto, que ele transcenda o meramente tangível. Estendendo a sua reflexão para o tema proposto – incorrendo no risco de acrescentar, erroneamente, um pensamento a Fílon –, o filósofo já reconhecia que as reflexões do período era a de que o lugar do homem não é este lugar; o mundo lhe é estranho. Isso não significa que Fílon concordasse com essa posição, apenas que ele a diagnosticou enquanto denominador comum entre a filosofia e a tradição judaica.
Nos períodos subsequentes, o homem continuou sendo compreendido como um ser exilado. Segundo o evangelista João (17, 16), Cristo afirma expressamente que “eles não são do mundo”. O cristianismo, não obstante considerar o ser humano como imago dei, valorizou sempre mais o Reino dos Céus ao invés do mundo, este vale de lágrimas. Isso porque o seu lugar não é aqui, sendo apenas uma transição, uma passagem para uma realidade vindoura. Contudo, é importante destacar que nem todos, um dia, chegarão à pátria definitiva. Sendo o homem tendencioso ao pecado, a sua ida aos céus depende da sua conduta aqui na terra, isto é, alguns irão para casa e outros, não; os que agirem com misericórdia sim, os que procederem conforme a lei do Talião, não.
Por volta do século XVI, com o enfraquecimento da soberania religiosa-católica e com a ascensão do Renascimento e do embrião científico moderno, o homem se autoexiliou da realidade, com ênfase na premissa cogito, ergo sum. Descartes, dividindo tudo o que existe em res cotigans, res extensa e res infinita, isolou o homem dentro de seu próprio pensamento, recôndito da dúvida. Tudo o que se conhece não necessariamente é verdadeiro, uma vez que os sentidos podem enganar; até mesmo um tal gênio maligno (1979, p. 88). A natureza é uma mulher a ser domada e extraídos todos os seus segredos, não sendo a casa do homem. Deus está fora do mundo. Em razão disso, quiçá, o único lugar que o homem poderia sentir-se em casa, isto é, não exilado, seria em seu próprio pensamento: je pense, donc je suis.
A partir do século XVIII, sobretudo com o surgimento das Ciências Humanas, o homem se depara com o poder da linguagem, do discurso. O homem já não é um ser definido a priori, mas um ser que é definível pela linguagem, pelo discurso, pelos saberes. Foucault (2018, p. 33-34) afirma categoricamente que os saberes consistem em relações de poderes, já que os mesmos adestram os corpos, não somente de maneira macro, mas micro, constituindo a microfísica do poder. A partir disso, junto com as reflexões existencialistas, é significativa a mudança sobre o homem: ele já não tem uma natureza humana a ser descoberta, desvelada, mas ele possui uma condição humana, isto é, tem capacidades singulares que fazem com que ele possa se definir à sua maneira. (É importante destacar que essa diferença, para alguns, ainda consiste em assegurar uma natureza humana, já que a condição humana é própria dos seres humanos, mas, nesse momento, uma discussão aprofundada não vem ao caso.) Se a linguagem é a condição para dizer o lugar do homem, tudo o que está para fora dela não é o seu lugar. É possível, nesse contexto, acrescentar a afirmação de Wittgenstein (1993, p. 245): “os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”.
Na contemporaneidade, por fim, essa perspectiva não foi abandonada; ao contrário, ela foi enfatizada ainda com mais veemência. Uma de suas marcas mais profundas é a hipervalorização da técnica. A partir da Revolução Tecnológica, o ser humano passou a justificar tudo com base na técnica: a doença não faz parte do corpo em si, devendo ser superada por remédios; os desastres naturais são defeitos da natureza, necessitando ser controlados por degradações e desmatamentos (o que é outro desastre, mas não natural); a morte não é um fato da vida, mas o seu maior defeito, precisando urgentemente ser superada. Enfim, a criatura tornou-se criador. Essa imagem é explicita com o transhumanismo, o qual propõe um melhoramento da humanidade a partir da técnica. Se uma de suas pernas lhe é amputada, você tem a possibilidade de adquirir uma nova, mecânica. As pessoas podem ser congeladas para, futuramente, serem descongeladas e, curadas de suas enfermidades, voltarem a viver. Jogado no mundo, sentindo-se fora de casa, exilado, o homem tenta torná-lo o seu lugar, apesar de nunca estar satisfeito, completo, em casa.
Essas reflexões sobre o exílio surgiram a partir das pesquisas de María Zambrano, filósofa espanhola do século XX. É interessante a afirmação de que “lá onde deveríamos estar, nós não estamos, e aqui onde estamos, não podemos e não devemos ficar”. O exílio, ao longo dos tempos, deixou de ser algo próprio do homem enquanto ser, tornando-se uma marca entre os próprios humanos, distinguindo-os entre homens qualificados e não qualificados.
BÍBLIA de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
DESCARTES, RENÉ. Meditações. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os pensadores)
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: a vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 7. ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Paz e Terra, 2018. (Coleção Biblioteca de Filosofia)
PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Abril Cultural, 2000. (Os pensadores)
WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus logico-philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. 1. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993.