13 Agosto 2020
"Por mais que precisemos deter a covid-19, não há dúvida de que a resposta que temos dado também destacou uma cultura existente de poder e desigualdade", escreve Mark Yin, em artigo publicado por La Croix International, 12-08-2020. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Mark Yin é promotor da justiça social e voluntário da It’s Not A Compliment, ONG que visa a conscientização contra o assédio de rua. Estuda na Universidade de Melbourne.
Recentemente, a deputada americana Alexandria Ocasio-Cortez manifestou-se contra a cultura do assédio, prática que permeia os espaços públicos, desde as escadarias do Congresso até bares e ruas da cidade.
A mensagem de Ocasio-Cortez foi simples – o assédio é uma questão de poder e é tão prejudicial quanto atemporal –, mas também foi uma mensagem que ainda ressoa, até mesmo quando Melbourne entra no estágio quatro de confinamento geral (lockdown).
Para que fique claro: o assédio é uma questão de poder, mas só às vezes ele é carregado por fatores de gênero. Embora as nossas ruas estejam cada vez mais vazias no curso da pandemia, relatos de assédio marcados por fatores raciais viraram manchetes em todos os jornais.
Na semana passada, duas mulheres de cor que viajaram de Melbourne para Brisbane tiveram o nome e o rosto publicados em vários jornais, enfrentando imediatamente críticas carregadas de racismo.
Este caso dá continuidade a uma longa tendência de patologizarmos e culpar as pessoas de cor pela covid-19, o que tem feito muitas delas sofrerem assédio nos últimos meses, na maioria dos casos sem que tais atos fossem provocados. Menores em idade escolar sofreram assédio verbal em um campo de futebol; universitários foram atacados em um mercado; um vereador de Melbourne foi assediado quando ia ao trabalho. Estas histórias longe estão de ser as únicas.
Em resposta a um anúncio no canal Australian Broadcasting Corporation – ABC, rede de televisão pública do país, centenas de pessoas compartilharam experiências semelhantes de racismo relacionadas com o coronavírus.
Todos estes casos ilustram que um grande leque de espaços públicos – na verdade, os poucos lugares que podemos frequentar em um momento de quarentena, como supermercados, estradas e parques – não são seguros para todo mundo.
Não importa a localização ou o alvo, vemos a mesma dinâmica a facilitar e perpetuar esta cultura do assédio.
Em uma live no Facebook promovida por Annelise Lecordier, uma das fundadoras da iniciativa It’s Not A Compliment, e Tim Lo Surdo, fundador do grupo Democracy in Colour, este último falou: “Quanto à covid, ela não necessariamente criou nenhum problema; essa doença expôs e exacerbou as injustiças preexistentes na sociedade, e uma delas é o assédio de rua motivado por fatores raciais”.
A dinâmica do poder que facilita o assédio também contribui para as escolhas políticas feitas pelos governos. Por exemplo, mesmo com os australianos retornando aos eventos de futebol em massa, os agrupamentos pacíficos relacionados ao Black Lives Matter estão sendo tratados como mais arriscados e foram proibidos. E mais: os condomínios públicos para pessoas de baixa renda nas cidades de Flemington e North Melbourne têm visto moradores – muitos deles pessoas de cor – sujeitados a um policiamento restritivo e estigmatizante.
Como recentemente escreveu a Dra. Cristy Clark, existem implicações importantes relacionadas aos direitos humanos nestas escolhas governamentais – em particular, são os nossos direitos à liberdade de movimento, de associação e expressão, bem como o direito à não discriminação, os mais impactados.
São estes mesmos direitos humanos os que estão em jogo, quer lidemos com as decisões feitas nos mais altos níveis de governo, quer lidemos com as declarações racistas casuais nas ruas.
Agora, à luz da pandemia, isso tudo nos leva a suposições anteriormente não questionadas a respeito da segurança pública que, hoje, está sendo desafiada.
Podemos sair às ruas sem sermos assediados ou incomodados? Quem tem a liberdade de movimento, certamente um privilégio nestes tempos, em lugar do direito que, como tal, deveria ser? Quem é capaz de sair de casa, do bairro onde mora, e ser premiado com uma “fama viral” em lugar de ser punido com a criminalização?
Porque, por mais que precisemos deter a covid-19, não há dúvida de que a resposta que temos dado também destacou uma cultura existente de poder e desigualdade – uma cultura que normaliza os danos sofridos pelas pessoas que já vivem a marginalização.
Durante esta pandemia, com as ruas mais vazias do que nunca, poderíamos pensar que os espaços públicos se tornariam mais seguros e alheios ao assédio. No entanto, o que a pandemia de covid-19 tem mostrado é que o assédio é tão pervasivo quanto a dinâmica cultural que o facilita.
Mesmo com os nossos espaços públicos estando vazios, ainda existem diferenças marcantes nos níveis de liberdade com que cada um de nós pode navegar por eles. Isso, no entanto, está longe de ser novidade e serve para que reflitamos sobre o quão seguras e justas as nossas ruas realmente são.
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O assédio não para por causa da pandemia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU