12 Agosto 2020
"A Universidade, é, assim, um espaço, um locus, para os inquietos, os descontentes, os curiosos, os estudiosos, os incertos, os que duvidam mais do que assumem certezas", escreve Lucas Casagrande, professor na Escola de Administração da UFRGS.
Temos de falar sobre o que estamos em vias de perder por meio do Ensino Remoto Emergencial (ERE). E porque não podemos normalizar essa forma de sociabilidade do conhecimento inerente ao ensino remoto.
A Universidade não é um conjunto de currículos e cursos, um roteiro de estudos e lições, um repositório de informações, ou um conjunto de regras acadêmicas. E embora ela contenha tudo isso, nada disso faz jus a ela. Se, como os situacionistas falavam, a beleza está nas ruas, na Universidade ela está nos corredores, no que está na beira da instituição, no que está fora de seus muros, no que é feito para além de seus currículos e, bem, nas suas ruas. A Universidade, é, assim, um espaço, um locus, para os inquietos, os descontentes, os curiosos, os estudiosos, os incertos, os que duvidam mais do que assumem certezas.
Por muito tempo a modernidade parece ter cooptado tudo para a lógica de produção, consumo e exploração que lhe é inerente. No lugar do uso do que nos é Comum, o consumo de tudo que é possível. Até um tempo atrás a Universidade parecia um espaço relativamente isolado disso, onde um campo quase autônomo se produzia, onde o Comum era constantemente usado e produzido. Neste campo, as demandas do capitalismo podiam ser colocadas de lado ou tratadas subsidiariamente. Mas algo tem mudado nas últimas décadas. O bacharelado se tornou, na prática, um título obrigatório para o mercado. Mesmo a pós-graduação deixou de ser um espaço de discussão e aprendizado para se tornar um espaço de “networking”. A Universidade tem se tornado uma ferramenta arrivista.
Como Agamben nos lembra, a Universidade nasceu dos universitates, de associações de estudantes. A Universidade originária não era um espaço de cursinhos profissionalizantes, de meios para um fim, mas um espaço para tratar o estudo como uma forma de vida. Essa forma de vida era pautada não só por escuta de lições, mas principalmente pelo encontro e a troca contínua entre os estudantes que vinham de todas partes para ali, na Universidade, discutir, se ouvir, se associar e serem tomados por um mesmo espírito.
Para aprender é necessário que nos conectemos com o outro. E como Illich notou, essa conexão não pode visar consequências: ela precisa ser um comprometimento gratuito, desinteressado. Afinal, aprender pressupõe que admitamos nossa incapacidade frente ao mundo, admitamos nossa fragilidade e vulnerabilidade enquanto seres limitados. E essa fragilidade precisa de um aceitação plena, de uma philia típica da amizade. Porque aprendizado requer contradição e paradoxo, requer a aceitação do erro, a aceitação plena do outro. Do contrário, interagimos com personas, com figurações de seres. A relação mediada pelo computador reifica o outro, declara a realidade alheia distinta e, portanto, só pode criar relações de poder mediada.
Em qualquer ambiente de aprendizado verdadeiro há uma forte atmosfera, aquilo que os primeiros cristãos chamavam de conspiratio. O conspiratio é esse momento único em que as pessoas, por estarem subjetivamente conectadas, são tomadas de um mesmo espírito. Os cristãos antigos possuíam uma explicação da ordem da fé para isso, mas também podemos encarar a questão na ordem material das coisas. Esse espírito não é necessariamente a Santíssima Trindade: pode ser também nosso espírito coletivo, nossa subjetividade compartilhada.
O conspiratio, base de toda construção coletiva verdadeira – tal como o aprendizado – necessita, sim, de algo compartilhado – que é frágil, que é tênue e que, com frequência, é desconsiderado. Atmosfera é uma palavra para isso, mas pode ser aura também. Como Illich salienta, essa aura deve ser sentido pelas entranhas. Nos princípios da cultura ocidental a vida parecia oscilar entre o cultivo de uma desconfiança e a formação de laços de confiança empática. Platão defendia que os cidadãos atenienses limitassem os impactos das paixões dos atores no palco a uma reflexão na esfera da mente. Aristóteles, em desacordo com o mestre, passou a defender que os espectadores tomassem parte, com suas próprias entranhas, do que ocorria no palco. Que se deixassem afetar, que experienciassem o outro, compartilhassem sua aura. Que sentissem a dor, o amor, os afetos nas entranhas, nos intestinos.
E só podemos sentir isso quando deparados com a presença física do colega, do amigo, do aluno. Quando essa presença não pode ser pausada ou desconectada, quando experienciamos o outro em uma integralidade que nos impede de nos proteger dos afetos. Essa aura só existe na entrega.
Na sala de aula é onde notamos a formação de grupos de interesse, geralmente pautados por interesses culturais, políticos ou acadêmicos. O encontro no restaurante, o café no bar e até as festas estudantis são exemplos disso. São espaços pra trocas não-mediadas, para auto-conhecimento e para a diversão. E aqui é necessário que se diga: a perda disso não pode ser barganhada para manter a Universidade: é a destruição da Universidade no que há de mais substantivo nela.
É Agamben que nota que a necessária profanação dos sistemas opressores passa por um desarme contido no lúdico, no jogo, na brincadeira. É um dos raros espaços ainda legitimados de atuação humana criativa e não-produtiva. É o espaço possível para criar novas epifanias, novas ideias, novas formas de agir. É onde podemos romper com o espaço total do consumo e reassumir o uso do Comum.
O problema não é só o “micróbio fiadaputa”: é a redução da vida à sobrevivência. É a redução da vida às operações corpóreas individuais, abnegando o que nos é mais inerente: nossa relação com o outro, a formação de vínculos desinteressados, gratuitos e frágeis como nós. Trata-se da amizade, tão necessária para o conhecimento. Como Viveiros de Castro pontua, “a filosofia exige o Amigo, a philia é o elemento do saber”.
E a amizade não se forma por vínculos formais ou objetivos. Como dizia Ivan Illich, “Você nunca sabe o que irá nutrir o espírito da philia, enquanto você pode estar certo do que vai sufocá-la. O espírito da amizade emerge por surpresa e é um milagre quando ocorre; é sufocado em cada tentativa de garanti-lo, é debochado sempre que você tenta usá-lo.”
E é essa philia que é a base dos afetos, dos conhecimentos e da Universidade. Ignorar isso, ignorar a necessidade da presença do outro, é ignorar tudo que de mais belo há na Universidade. O ERE, assim, é um tremendo erro que, espero, possa ser temporário e ficar na memória como algo a não se repetir.
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