26 Junho 2020
Está permitido: ser contra a operação privada de um serviço essencial como o saneamento e, ao mesmo tempo, reconhecer que o modelo atual que opera no país tem limites importantes que precisam ser superados.
As coisas são complexas mesmo.
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O modelo atual brasileiro vem da ditadura militar. As estatais de saneamento foram criadas no período. Seguiam o Plano Nacional de Saneamento e tinham financiamento do BNH.
Era uma estrutura centralizada, nacional.
A CF 88 diferencia gestão dos recursos hídricos (responsabilidades de estados e União) e titularidade dos serviços de saneamento, que passaria a ser dos municípios. Essa leitura foi contestada por mais de 25 anos, até que, em 2013, o STF confirmou a responsabilidade municipal.
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Em teoria, as estatais deveriam atuar por concessões dos municípios, que teriam autonomia para definir metas, serviços e o próprio fornecedor.
Na prática, a herança centralizada do período militar fez com que boa parte dos municípios não conseguisse, até hoje, ter titularidade efetiva.
Para adicionar complexidade, com a onda neoliberal da década de 1990, alguns estados começaram a se desfazer de ações das companhias de saneamento.
Empresas como a Sabesp, em São Paulo, e a Copasa, em Minas Gerais, têm hoje quase metade do seu capital pertencente a acionistas privados.
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O resultado é uma geringonça: municípios são os titulares dos serviços de água e esgoto, mas muitos deles não têm efetivo controle sobre as companhias estatais; estas, por sua vez, têm parte de seu capital aberto, e os acionistas pressionam para aumento da lucratividade.
Desde a sua privatização parcial, em 2003, a Copasa distribuiu mais de R$1,7 bilhão a acionistas. A Sabesp chega a registrar lucros anuais de 2 bilhões.
Como é possível que se contabilize e distribua lucro se há uma carência gigantesca no saneamento no país?
Os objetivos de uma empresa pública (universalização do acesso, acessibilidade das tarifas, investimentos de longo prazo) se chocam com os de uma corporação de capital aberto (maximização dos lucros), especialmente em um contexto de regulação fraca.
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A ideia de que o “livre mercado é mais eficiente” costuma pautar o senso comum, mas ela nem sempre vence a prova dos fatos.
Ainda mesmo porque não é possível haver “livre mercado” na concessão de bens essenciais que só podem funcionar em regime de monopólio.
Exemplo: a Sabesp, oferta descontos para empresas com grande consumo, mesmo em tempos de crise hídrica.
O desconto, comum na economia de mercado, é um despropósito na gestão das águas, em que um dos objetivos é a contenção do consumo para garantir o fornecimento.
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Por essa razão, abundam exemplos mundo afora de remunicipalização da água. Serviços que foram privatizados na década de 1990 não funcionaram: tarifas subiram demais, os serviços pioraram.
Centenas de cidades estão nesse caminho de retorno ao público.
Chegando às mudanças que o sistema precisa. Claro que precisamos de melhor regulação, estabelecimento de metas e obrigatoriedade de cumprimento pelas concessionárias.
Ocorre que isso não precisa ser feito junto à privatização, que é conflitiva com o interesse público.
As remunicipalizações do saneamento mundo afora têm dado um novo aspecto para os serviços públicos, com a incrementação da transparência e da participação social na construção de metas e com o estabelecimento de prioridades e fiscalização das ações.
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O sistema de saneamento que nos falta é sem fins lucrativos e, ao mesmo tempo, eficiente.
Depois do ciclo estatal e do liberal, começa-se a apontar para a gestão comum, em que a participação da sociedade se fortalece.
Por Léo Bueno
A ingenuidade do mal
Vou falar uma coisa sobre a Lya Luft e sobre milhões de outras Lyas Lufts do Brasil, mas vou tentar fugir do exemplo dela. Porque essa mulher vai ser guardada na memória muito depois de partir, e mais do que merece.
Meu exemplo se chama Mário Hildebrandt. Ele é prefeito de Blumenau (SC), uma das cidades nas quais o sr. Jair Bolsonaro teve proporcionalmente mais votos.
Há dois meses, Hildebrandt mandou relaxar a quarentena. Reabriram os shoppings - ficou famoso um saxofonista tocando na porta de um deles -, o comércio de rua, as indústrias.
E o resultado foram 1,5 mil moradores de Blumenau diagnosticados com covid-19 depois disso - ou seja, mais de 10 mil pessoas infectadas, no cálculo estatístico. Um aumento de 1.400% na disseminação da doença.
Nessa quarta, Hildebrandt deu uma entrevista e falou: "por favor, nos ajudem". Ele estava falando com comerciantes e empresários de sua cidade. Mas também com médicos, moradores e, no limite, com o governador e o presidente. Era um pedido de socorro. Hildebrandt não tem mais nem onde colocar nem como tratar e curar tantos doentes.
Lya Luft sabia quem era Bolsonaro. Sabia que ele falou em matar 30 mil pessoas, que ele defendeu um torturador, que ele ameaçou exterminar a sua oposição. Votou nele. E agora se diz arrependida.
Como ela, Hildebrandt, formado e com acesso às mais variadas mídias, tinha a ciência à mão para saber que promover aglomerações era o mesmo que espalhar a infecção. Quando você pula no abismo, convém não esperar que vá sair voando.
Uma e outro agora se mostram arrependidos. Mas, se sabiam, por que o fizeram?
Resposta: terraplanismo político. Ou, e lá vai meu neologismo: mamadeiropiroquismo.
O mamadeiropiroquismo não é você acreditar em teorias esdrúxulas da conspiração. Acho que ninguém, exceto crianças limítrofes, acreditaram nelas de fato.
É na verdade você fechar os olhos para as óbvias consequências de seus atos temerários por acreditar que elas não o atingirão. O que, mesmo elas não o atingissem, já seria grave; afinal, só por agir assim você já demonstra um absurdo egoísmo na sua falta de empatia pelo outro.
Há sim uma ingenuidade no mamadeiropiroquismo. É a ingenuidade de quem se recusa a ter a visão holística do problema. E aqui emprego a palavra sem nenhum sentido místico ou metafísico: o sistema holístico, na filosofia, diz respeito ao todo. A origem da palavra é a mesma do inglês 'whole'.
Os empresários que se recusam a apoiar a quarentena são mamadeiropiroquistas. Ou melhor, eram. Não lhes ocorreu que, ao abrirem os shoppings, eles gastariam luz, encargos, matérias-primas, alimentação, tudo isso para não fazer praticamente nenhuma venda, porque a maior parte das pessoas não vai ao shopping para não ficar doente. Que eles poderiam perder amigos, funcionários, pais e filhos - e com isso também dinheiro - por se arriscarem em público. Que eles podem ter antecipado, em vez de adiar, a falência.
Da mesma maneira, um dos nossos problemas mais agudos e antigos diz respeito à guerra contra a) a renda mínima e b) os direitos trabalhistas. É outro mamadeiropiroquismo empresarial. Não ocorre aos empresários que um povo sem dinheiro, incluindo aqui os seus funcionários, é um povo que não compra o que você produz. Foi por haver distribuição de renda que escapamos da crise de 2008. Foi por abrir mão dela que embarcamos na crise em 2014.
Nem é preciso dizer que poderíamos sair da pandemia mais fortes como país se usássemos os U$ 400 bilhões deixados de reserva pelo PT para alimentar as pessoas em suas casas. É para isso que existe esse conceito: reserva. São as vacas gordas compensando na época de vacas magras.
Para concluir, repito; o mamadeiropiroquismo é um problema da miopia humana em relação ao todo político. Sendo um problema político, sua maior manifestação, óbvio, está no principal político eleito para o mandato atual.
Votou no sr. Jair Bolsonaro quem não se preocupava com o outro ou, pior, quem esperava que a eleição dele prejudicasse o outro. Mas o problema é holístico, e o feitiço virou-se contra todos, inclusive os 57 milhões de feiticeiros originais.
E acontece que o sr. Bolsonaro é justamente quem inventou a mamadeira de piroca. Você achava que só gente como sua tia Marcinéia tinha caído nessa pegadinha, né? Pois não foi: a escritora Lya Luft e o prefeito de Blumenau caíram também, ao seu modo, porque não foram altruístas o bastante. E muitos outros vêm aí.
Quem buscar artigos de críticas do neoliberalismo vai encontrar dezenas de milhares de ocorrências. São tantos textos, livros, cursos, que alguém desavisado poderia achar que os dias do neoliberalismo estão contados.
Ocorre que a grande maioria das críticas é despolitizante. Limitam-se a enunciar banalidades discursivas. Sem compreender o desejo que mobiliza o neoliberalismo de dentro, a crítica é candidata a integrar a paisagem.
O político não é o campo da polarização entre amigo/inimigo, como gostariam Carl Schmitt e as teorias populistas que lhe são tributárias.
Política é a ligação do real com o desejo. Desejante, logo, político. E o desejo não se organiza como uma divisão nós/eles, a linha que nos divide à luz do Sol.
O desejo são meandros, claros-escuros, malandragens, multiplicidades. No desejo podemos odiar o amigo e amar o inimigo, nós - e - eles, somos muitos.
Tomemos um caso concreto, a uberização.
A Uber está para o neoliberalismo/pós-fordismo, como o táxi convencional está para o keynesianismo/fordismo.
Primeiro ponto: por que pegamos Uber e não táxi?
Segundo: por que nos sentimos dentro do limiar de existência do motorista de Uber, mas o taxista é sempre o outro, uma categoria?
Terceiro: por que jamais pegaríamos carona com um estranho num carro particular, mas pegamos um Uber, que é um estranho num carro particular?
Quarto: por que é o táxi que está uberizando e não o inverso?
A Uber é um protocolo de confiança. Para intermediar um pool de prestadores de serviço e um pool de consumidores. O prestador acredita na Uber que vai ser pago com eficiência e segurança, e o consumidor que receberá um serviço eficiente e seguro.
Mas a Uber em si é uma empresa virtual, com um custo mínimo e uma engenharia digital básica. Quem alimenta o protocolo de confiança somos nós mesmos, ao avaliarmos e reclamarmos dos motoristas ou consumidores.
Poderíamos também pensar os entregadores.
No fordismo, o entregador era funcionário do estabelecimento, o conhecíamos pelo nome, ele usava uniforme e às vezes até a moto era do patrão.
No neoliberalismo/pós-fordismo, operam empresas com aplicativos simples de eficiência alocativa, para ligar três pools: estabelecimentos, entregadores e consumidores. As empresas são virtuais.
Quem é o patrão do entregador? Eis o drama do novo extrativismo, que explora o comum.
Na pandemia, esse foi um serviço essencial. Sem a eficiência algorítmica, a mobilidade e a flexibilidade em ampliar a oferta, a demanda não seria atendida, ou talvez não sem uma explosão dos preços. Isto significa que fomos alimentados pelo neoliberalismo.
Nesse aspecto, o neoliberalismo respondeu bem à crise e agenciou o desejo de prestadores, entregadores e consumidores.
Existe um materialismo aí que muita crítica não alcança.
Superar a Uber (o Rappi, o Airbnb, o Tinder, a Amazon...) é voltar ao táxi ou existe um mais além?
Acelerar o processo, porque ainda não vimos nada. Reagenciar o desejo. Criar um protocolo de confiança que não precise de uma empresa virtual para mediar a rede.
Pois ele já existe como protótipo na fronteira das moedas digitais.
Mais inovador do que a Bitcoin, que é uma criptomoeda privada, é a tecnologia de fundo. A Bitcoin funciona descentralizadamente, sem estado. Os débitos e créditos não estão registrados contabilmente num banco.
É que a tecnologia de base, ou blockchain, é um protocolo de confiança. Sem empresa virtual, porque funciona par-a-par. O Bitcoin é um sobrinho distante do Napster.
Na verdade, a moeda em geral é um protocolo de confiança. O mais antigo que existe. O crédito é de cada um, a moeda socializa o crédito em valor coletivamente reconhecido.
Os bancos são uma instituição de acreditação que centraliza e organiza a confiança. O Banco Central centraliza e organiza o protocolo. Registram débitos e créditos, para intermediar os pools de credores e devedores, de prestadores ou consumidores de crédito.
Com o blockchain, é possível uma moeda pública sem bancos. Débitos e créditos registrados difusamente pela rede. O dinheiro não vai estar no banco. Ele existirá na nuvem, ligando pools de oferta e demanda.
Para além da moeda, as cadeias globais de valor tendem a funcionar assim, como uma internet das coisas. Os estados estão sendo uberizados no metabolismo da globalização logística.
Sem bancos centrais, sem Ubers, sem estados, "withering away".
Linda thread de Luiz Antônio Simas:
"Adoro São João. Nele vejo um detalhe comovente, que começa na Palestina e termina no São João virado em Xangô Menino. Como é que João Batista, primo de Jesus, um profeta iracundo, decapitado a mando de Herodes Antipas, virou na cultura popular o São João do Carneirinho?
Isso é muito brasileiro. Aqui prevaleceu o João menino, filho de Isabel, primo de Jesus, aconchegando no colo o Cordeiro de Deus. O único santo comemorado no dia do nascimento, e não da morte. É linda a infantilização de João, o profeta que virou erê no cristianismo popular.
E a fogueira, forte nos ritos agrícolas pagãos e reimaginada pela cristandade? Diz a tradição que Isabel mandou acender uma quando João nasceu, para que Maria, grávida de Jesus, recebesse a notícia. A fogueira, portanto, anuncia a chegada da criança e a afirmação da vida.
A fogueira aproximou, nos cruzamentos brasileiros, João Batista e Xangô, dando um ar de meninice ao profeta palestino e ao pregador iorubano, celebrados em estandartes e bandeirolas, no milho assado, no quentão, nos sortilégios da boa sorte.
Concluo dizendo que a beleza maior que vejo em São João é essa: não louvamos o João dos testamentos, mas o aconchegado pelo povo. Não o profeta decapitado, mas a criança encantada que brinca na fogueira e comemora a renovação da vida - a nov(a)idade - pela alegria da festa."
12% da água doce do planeta é do Brasil e no auge da pandemia resolveram privatizar os serviços de água, esgoto e hidrelétricas.
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