Aos 89 anos, completados no último dia 1º de junho, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima morreu no dia 01-07-2020. Com uma sólida carreira profissional e intelectual, Cirne-Lima deixa um imenso legado para a filosofia brasileira, colocando-se nos grandes debates que marcaram os rumos da Igreja Católica na segunda metade do século XX, tendo sido, inclusive, colega do Papa emérito Bento XVI e aluno de Karl Rahner. No Brasil, sua carreira filosófica trilhou caminhos alheios à corrente majoritária de estudos do campo, mais ligados à história da filosofia, de corte uspiano, estudando a fundo conceitos fundamentais da teoria de Hegel. Carlos Roberto Cirne-Lima era casado com a artista, escultora e pintora Maria Tomaselli.
O casal não tinha filhos.
Um dos maiores especialistas em Hegel no Brasil, sua carreira foi tardiamente reconhecida, já no século XXI, como ele recorda em entrevista concedida ao IHU, realizada em 2011 pela jornalista Márcia Junges, de onde extraímos as citações que compõem esta reportagem. “O reconhecimento ao meu trabalho filosófico veio agora, na velhice. No início da minha carreira sou apenas um professor talentoso. Depois, sou cassado e ninguém pode nem falar a respeito da minha trajetória filosófica”, contou Cirne-Lima.
Carlos Cirne-Lima com o filósofo Karl-Otto Apel. Foto: Acervo de Cirne-Lima
A cassação a que se refere foi durante o período de recrudescimento do regime militar no Brasil, com o AI-5, em que durante dez anos – de 1969 a 1979 – teve que abandonar a docência em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e se dedicar à administração de diferentes empresas no país, profissão na qual também havia se graduado na Áustria. “Quando fui fazer o doutorado em Viena, já laico, Heintel [seu orientador] perguntou-me que outra profissão eu tinha. Respondi que queria ser professor de Filosofia. Ele insistiu: ‘Com o que você ganha dinheiro? Professor não é emprego, não é profissão. Você precisa ter uma profissão; caso contrário, não irei orientá-lo’”, recordou Cirne-Lima.
“Procurei o aconselhamento na Universidade de Viena e pedi que me ajudassem a encontrar algo com o que pudesse ganhar dinheiro o quanto antes. Aproveitei os créditos que já tinha cursado e, em um ano e meio, concluí o curso de Administração de Empresas. Assim, sou graduado nessa profissão pela Universidade de Viena”, complementou.
Filho de uma família tradicional brasileira, as origens mais remotas de seus antepassados remetem à Ilha de Córsega, mas quando ela ainda era território grego, chamada de Kyrne, no século VI antes de Cristo, de onde suas mais longínquas raízes migraram para a Ibéria, estabelecendo-se onde hoje fica Portugal.
Niklas Luhman e Carlos Cirne-Lima. Fonte: Acervo de Cirne-Lima
Sua família no Brasil contou com gerações de católicos moderados, inclusive com um acento anticlerical, como é o caso do seu avô Elias, do bisavô Francisco e do trisavô Antônio, que eram brasileiros laicos. “Meu avô, maçom e anticlerical, tem dois filhos extremamente religiosos: meu pai e o tio Heitor, católicos fervorosos. Assim, há gerações de Cirne maçons e anticlericais, para a seguir nascer uma geração extremamente religiosa”, descreveu Cirne-Lima, que era filho de Maria Velho Cirne-Lima e do jurista Ruy Cirne-Lima, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Cirne-Lima teve uma sólida formação intelectual e teológica com os jesuítas, desde o Colégio Anchieta, na capital, no final da década de 1930, passando por Seminários jesuítas no interior do Rio Grande do Sul, na década de 1940 e, depois, em 1949, complementando seus estudos na Alemanha, sendo aluno de Karl Rahner. Depois de muita reflexão e de incompatibilidades teóricas que se tornaram também existenciais, Cirne-Lima acabou deixando a Companhia de Jesus, dando mais uma volta no parafuso da história de sua própria família, e passou a se dedicar à filosofia de maneira laica.
Da esquerda para a direita: Peter Schmidt, Cirne Lima, Jürgen Habermas, Ute Habermas, Álvaro Valls, Cleofe Valls. Fonte: Acervo de Cirne-Lima
“O que há de mais importante da minha juventude é o fato de que sou uma continuação ideológica do meu pai. Como ele era um católico pós-tridentino que recebeu dos jesuítas a ortodoxia religiosa muito forte e fundamentalista, continuei isso na minha juventude. Quando meus irmãos viram que saí da ideologia que seguia do nosso pai, deixando a ordem jesuíta, perceberam que também poderiam se ‘libertar’”, sublinhou o filósofo.
Um debate de profundo caráter teológico e filosófico entre Cirne-Lima e Karl Rahner deu início à fratura que levaria o filósofo brasileiro a deixar a Companhia de Jesus. O tema em questão era nada mais nada menos que o conceito de Deus, assunto que seria amplamente debatido no Concílio Vaticano II.
“Já naquele tempo, Rahner e eu começamos a discordar teologicamente um do outro. O motivo era o conceito de Deus. O conceito de Deus que os jesuítas tinham naquela época remontava à Idade Média, e era de um Deus transcendente. Então, o mundo estaria aqui, no plano físico, e fora dele havia Deus. Assim, Deus não estava dentro do mundo, e o mundo não era Deus. Então, Deus é transcendente mas imanente também, portanto a igreja é o Deus imanente. Só que aí as opiniões começaram a divergir. Comecei a me afastar das concepções de Rahner”, esmiuçou o entrevistado.
Quando foi para Viena, já como um estudante laico, Cirne-Lima precisava escolher, por questões contingenciais, um autor para estudar e escolheu um que já estudava. “Naquele período escolhi Hegel e continuei o estudando por motivos acadêmicos e intelectuais. Ser hegeliano é um problema muito mais de etiqueta do que de conteúdo”, recordou. “A corrente que vem do neoplatonismo, com Plotino, passa por Espinosa, chegando a Schelling, Fichte, Hegel e Marx, diz que o universo é uma totalidade em movimento. Tudo é um todo que é diferenciado e está em movimento de evolução. Isso significa que Deus está aqui, ou então Deus não existe”, defendia o filósofo.
Em junho de 2008, a Revista IHU On-Line dedicou a edição 261, intitulada Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, ao pensamento e à fertilidade de uma nova leitura filosófica de Hegel a partir das reflexões propostas por Cirne-Lima.
Outorga a do título de professor emérito da Unisinos. Na foto: Luiz Leite, Susana Albarnoz, X, X, Luiz Rohden, José Nedel, Olavo da Silva Filho, Marcelo Aquino, Margutti Pinto, Eduardo Luft, Manfredo Oliveira, na frente dele Carlos Cirne Lima, Ernildo Stein, Sofia Stein, Adriano de Brito, na frente dele Anna Carolina Regner, Nelson Gomes, Inácio Helfer. Fonte: Acervo de Cirne-Lima
No Brasil, depois da Lei da Anistia, em 1979, sua trajetória no campo filosófico é retomada. Assim, até o ano de 1985, divide as atenções de professor com o emprego na área administrativa de corporações, quando realiza o concurso para professor titular e passa a se dedicar exclusivamente à universidade. Em 1990 se aposenta na UFRGS e começa a carreira na PUCRS, até o ano de 2000, quando migra para a Unisinos, atuando como professor até 2007 e se tornando professor emérito em 2008.
Na ocasião dos 50 anos do curso de Filosofia da Unisinos, em 2003, o professor Cirne-Lima junto à sua esposa Maria Tomaselli homenagearam a universidade com a doação da obra que construíram em conjunto: o Pátio de Heráclito. Localizado em frente ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, na Unisinos São Leopoldo, é um espaço harmonioso, junto às árvores e o som da água, que didaticamente explica conceitos dos filósofos pré-socráticos Heráclito e Parmênides, e também de Aristóteles. Confira na imagem abaixo a explicação da obra.
Prof. Dr. Cirne-Lima, no Pátio de Heráclito
Foto: IHU
Carlos Roberto Cirne-Lima organizou congressos, coordenou pesquisas e publicou várias obras. Em 2006, ele inovou ao editar o CD-Rom Dialética para todos, no qual apresenta, com uma linguagem didática, suas teorias sobre dialética e sistema filosófico. Entre outros livros, Cirne-Lima publicou Realismo e Dialética. A Analogia como dialética do realismo (Porto Alegre: Globo, 1967), Sobre a contradição (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993), Dialética para principiantes (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996), Nós e o Absoluto (São Paulo: Loyola, 2001) e Depois de Hegel. Uma reconstrução crítica do sistema neoplatônico (Caxias do Sul: Educs, 2006).