Mais do que um estudioso dos ensinamentos de Hegel, Cirne-Lima criou um pensamento filosófico próprio de extrema importância para a Filosofia brasileira, considera Ernildo Stein
“Avaliar a presença do professor Cirne-Lima no contexto da Filosofia nacional significa contar a história dos momentos mais importantes que atravessou um certo debate filosófico a partir dos anos 1960, nascido no Rio Grande do Sul, e que teria, ao longo dos anos, levado a um diálogo de grande profundidade entre filósofos brasileiros.” A constatação é de Ernildo Stein, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail, o pesquisador avalia a trajetória intelectual de Cirne-Lima e afirma que sua última produção, intitulada Depois de Hegel, representa “uma admirável capacidade de abrangência das diversas tendências filosóficas atuais”. E acrescenta: “Com esta obra, o professor abriu sua visão filosófica extremamente sofisticada e ampla para o diálogo com as ciências, sobretudo a Biologia e as ciências evolucionárias”.
Ernildo Stein (Foto: nome do fotógrafo)
Ernildo Stein é graduado em Filosofia e Direito, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Cursou doutorado na mesma universidade, em Filosofia e pós-doutorado pela Universität Erlangen-Nürnberg. Atualmente, é docente da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e membro do corpo editorial das publicações Reflexão, Problemata, Natureza Humana e Ágora.
A entrevista foi publicada originalmente em 09-06-2008, na edição Nº 261, da Revista IHU On-Line.
IHU On-Line - Como o senhor percebe a importância de Cirne-Lima dentro da Filosofia gaúcha e brasileira?
Ernildo Stein - Avaliar a presença do professor Cirne-Lima no contexto da Filosofia nacional significa contar a história dos momentos mais importantes que atravessou um certo debate filosófico a partir dos anos 1960, nascido no Rio Grande do Sul, e que teria, ao longo dos anos, levado a um diálogo de grande profundidade entre filósofos brasileiros, no seu contexto acadêmico, trazendo contribuições importantes da Filosofia clássica alemã. Quem vinha de um tomismo bastante ortodoxo encontraria as tentativas de leitura transcendental, provenientes de centros de debate, sobretudo, da Alemanha.
Certamente, esses debates levaram a uma libertação do excesso de ortodoxia, quando Cirne-Lima trouxe ao sul do Brasil um foco de irradiação que iria se encontrar depois com os estudos de Lima Vaz. Logo, a presença de Cirne-Lima seria reforçada pela presença de outros filósofos que vinham discutindo Hegel e as conseqüências de uma tal filosofia para o pensamento filosófico reinante e a teologia. É nesse período que também se iniciaria um debate da relação entre cristianismo e marxismo, o que naturalmente conduzia à busca de questões centrais que podiam ser encontradas em Hegel.
IHU On-Line - Quais são as maiores contribuições desse filósofo para o avanço nos estudos sobre Hegel?
Ernildo Stein - Cirne-Lima já me era conhecido pela sua obra A fé pessoal (Der personale Glaube), que eu vinha traduzindo para o professor Ernani Fiori como auxílio para a sua tese de professor titular, Reflexão metafísica e experiência transcendental (Ernani Fiori lamentavelmente não chegou a apresentar a sua tese de cátedra, cuja defesa estava iminente, por causa da sua exclusão da universidade). Nessa época, a leitura da Metafísica, de E. Coreth, me revelava, pelas notas referidas a Cirne-Lima, no texto, o quanto ele tinha sido importante no diálogo com Coreth.
Quando estávamos escrevendo, em diálogo constante, as teses de livre docência para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Cirne-Lima escrevia uma primeira interpretação, profundamente hegeliana, intitulada A analogia como dialética do realismo, que revelava uma muito original interpretação de elementos fundamentais de Hegel, postos já num novo contexto. Mas isto seria apenas o começo de um longo empenho nas discussões hegelianas que o filósofo travava, sobretudo com colegas brasileiros e que terminaram progressivamente a chamar a atenção para especialistas em Hegel na Alemanha. Formou-se assim um grupo notável de debates, no qual Cirne-Lima não apenas revelava um conhecimento atualizado das pesquisas de ponta de Hegel, mas era procurado como um intérprete cuja criatividade era cada vez mais visível. Juntamente com Lima Vaz, Manfredo Oliveira, Marcelo Aquino e vários conhecedores de Hegel do exterior, Cirne-Lima terminou liderando o grande aprofundamento do estudo de Hegel no Brasil.
IHU On-Line - Qual é a importância de Cirne-Lima na consolidação e disseminação da Filosofia na década de 1980? Qual é a sua influência na formação dos filósofos das gerações futuras, considerando que ele foi professor de muitos intelectuais que hoje atuam nas academias brasileiras?
Ernildo Stein - Quando se iniciaram os cursos de Pós-Graduação no Brasil, o professor Carlos Roberto Cirne-Lima iniciou uma atividade de irradiação através da formação de novos pesquisadores e professores. Naturalmente, há todo um clima de ambiente universitário que foi sustentado por Cirne-Lima através de suas interpretações de Hegel e de seus avanços no desenvolvimento de uma análise de caráter pessoal que o levaria a desenvolver um pensamento próprio. Muitos eventos de Filosofia contaram com a presença desse professor, expandindo-se cada vez mais o estudo de Hegel e a interpretação nova de Cirne-Lima, que iniciava um pensamento próprio que o levaria a refazer todo o caminho platônico, sobretudo desde Plotino.
IHU On-Line – Quais são suas lembranças da época do exílio? Como vocês passaram por esse momento?
Ernildo Stein - Não sei se a diáspora dos filósofos na época da ditadura pode ser considerada um exílio. Certamente, o ter que abandonar o seu trabalho universitário representava uma mudança brusca para quem fazia da Filosofia o seu foco central de atividade. Quero lembrar apenas o gesto do professor Cirne-Lima que foi cassado por ter-se solidarizado com a primeira turma da Filosofia da UFRGS, expurgada em 1969. Eu já estava com minha mulher e minhas filhas no exterior quando soube da atitude do Cirne-Lima e de colegas, com relação aos atingidos pelo expurgo. Só quem viveu a situação pode avaliar a generosidade e a coragem de um tal gesto.
IHU On-Line - Como você entende o projeto do CD-Rom Dialética para todos, no qual a linguagem acessível faz com que a Filosofia seja interpretada com maior facilidade pelo público leigo?
Ernildo Stein – Certamente, a iniciativa desse projeto foi absolutamente original em nosso meio e levou a uma difusão na época, inusitada, não apenas das idéias de Hegel, mas do próprio pensamento de Carlos Roberto Cirne-Lima, também publicado no seu livro, já em várias edições, Dialética para principiantes. Não é simples dar a idéia da penetração do debate de Hegel entre as pessoas cultas e não apenas no mundo universitário através dessa iniciativa.
IHU On-Line - A obra mais recente de Cirne-Lima chama-se Depois de Hegel, na qual ele se alicerça nos erros e acertos do pensador e desenvolve um pensamento bastante ousado e sólido. Como essa coragem e inovação intelectual de Cirne-Lima servem de inspiração para a comunidade filosófica?
Ernildo Stein - O livro Depois de Hegel coloca o filósofo Carlos Roberto Cirne-Lima em lugar muito particular na interpretação de Hegel. Mas a obra não pode ser considerada apenas uma releitura de um filósofo da tradição. Nela, aparece o verdadeiro pensamento de Cirne-Lima, mostrando uma admirável capacidade de abrangência das diversas tendências filosóficas atuais, através das quais ele faz passar o projeto hegeliano, dando-lhe uma novidade inesperada. Mas isso seria dizer pouco, porque, com esta obra, o professor abriu sua visão filosófica extremamente sofisticada e ampla para o diálogo com as ciências, sobretudo a Biologia e as ciências evolucionárias.
Os encontros periódicos com filósofos de várias tendências vindos do Brasil e do exterior fizeram surgir na Unisinos um marco da interdisciplinaridade inspirada no pensamento dialético em seu sentido mais amplo. Depois de Hegel representa também o esforço de um pensamento que está em busca de se articular como sistema, no contexto de uma profunda novidade. Mas, para levar Hegel a um diálogo como Cirne-Lima o pretende, era necessário corrigir, sob vários aspectos, questões fundamentais em Hegel. É para isso que ele submeteu a Lógica de Hegel a uma severa formalização, utilizando os mais finos recursos da lógica contemporânea. O que emociona, na leitura desse livro, é a percepção de uma busca de totalidade, que harmonicamente se articula, também, com a totalidade do conhecimento científico.
Seria quase redundante afirmar que o conhecimento da filosofia analítica e de seus recursos é levado para além dela mesma numa ampliação em que resulta o mais original diálogo entre filosofia analítica e dialética.
IHU On-Line - Em entrevista à edição 217 da IHU On-Line, Cirne-Lima diz que, hoje, os filósofos estão fazendo História da Filosofia, e quem está fazendo Filosofia, verdadeiramente, são físicos ou biólogos, que têm uma visão de conjunto hoje inexistente na Filosofia. Como o senhor interpreta essa visão de Cirne-Lima em contraposição ao pensamento heideggeriano e à fragmentarização anti-sistema característica da pós-modernidade
Ernildo Stein - O que tem sido produzido no diálogo com o campo das ciências físicas e evolucionárias nos debates periódicos da Unisinos representa realmente uma novidade surpreendente, mas trata-se de uma experiência que acompanha certos movimentos do pensamento científico. Isto não significa que se possa considerar um tal debate encerrado e mesmo possivelmente substituído por outras propostas. Sobre a questão da “visão de conjunto”, tenho minhas dúvidas com relação às ciências. Pois as ciências desenvolvem um pensamento discursivo do qual a totalidade está excluída por força da própria lógica das ciências. Elas certamente desenvolvem, na linguagem de Putnam, uma racionalidade 2, que de modo algum é possível sem a pressuposição de uma racionalidade 1, pela qual se garante a totalidade.
Em primeiro lugar, é importante dizer que a fenomenologia não persegue uma espécie de pensamento fragmentário. Ela simplesmente se delimita um campo no qual ela explora as condições finitas dentro das quais se pode fazer Filosofia. Ao contrário da pós-modernidade, a fenomenologia hermenêutica, sobretudo na virada hermenêutica contemporânea, busca uma unidade, contra o dualismo, e contra um inaceitável relativismo como o da pós-modernidade. Esta é nada mais do que resultado de múltiplos eventos da cultura contemporânea, e, na Filosofia, pode ser entendida como o resultado de uma leitura equívoca do pensamento de Heidegger.
Deve-se, no entanto, reconhecer que as interpretações que se revelam em certas questões de Heidegger não se caracterizam como anti-sistemáticas, mas simplesmente se movem num nível que precede qualquer pretensão de sistema, e, nesse nível, a discussão entre Hegel e Heidegger, por exemplo, resulta em produtividade especulativa. Isso quer dizer que, para além da questão do ser em Heidegger, que é uma questão fenomenológica, é possível colocar uma questão do ser que avança para além da fenomenologia, e nela, sem dúvida, se realizam movimentos que nada têm a ver com a dimensão da compreensão do ser da fenomenologia. Em Filosofia, não faz nenhum sentido jogar filósofos com suas teorias em trincheiras opostas. Não é por nada que costumo dizer que Heidegger convida a metafísica ocidental para um ecumenismo, na medida em que recusa qualquer ortodoxia no pensamento filosófico.
IHU On-Line - Que aspectos você destacaria na convivência pessoal e intelectual com Cirne-Lima?
Ernildo Stein - Sempre admirei as grandes figuras de pessoas e de pensamento. Certamente, a primeira impressão que tive, quando ouvi Cirne-Lima falar da dialética do senhor e do servo, num momento muito especial, foi a de uma mente brilhante e extraordinariamente lúcida e arrojada. A convivência com o colega me traz sempre a vivência de uma generosidade rara. Mesmo que em muitos momentos nos movíamos em posições diferentes, filosoficamente, a fineza e a cortesia de Cirne-Lima suscitavam vontade de encontrar na conversa clareza para as questões da Filosofia. A tarefa filosófica pode ter sua grandeza. Mais importante que ela, no entanto, é a certeza da solidariedade e da lealdade, no convívio humano.