15 Mai 2020
"No século XIX, capitalismo usou Estado para implantar pedagogia carcerária — e conter revoltas populares. Hoje, controle é por redes flutuantes: um novo panóptico que multiplica “identidades” e microfascismos, interação e exclusão…", escreve o sociólogo e economista político Ricardo Neder, professor associado da Universidade de Brasília – UnB, Editor-chefe da Revista Ciência & Tecnologia Social e da coleção Construção Social da Tecnologia, ambas vinculadas aos Estudos Sociais da Ciência e Tecnologia no Brasil, e ao PLACTS – Pensamento latinoamericano de Ciência, Tecnologia, Sociedade, associados ao grupo de pesquisa Observatório do Movimento pela Tecnologia Social na América Latina. Também é Coordenador do Núcleo de Pesquisa NP+CTS (Políticas CTS – Ciência, Tecnologia, Sociedade) CEAM/UnB, e do Programa de Extensão Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (da rede ITCP de incubadoras universitárias no Brasil) sediada na UnB Planaltina. O artigo foi publicado por Outras Palavras, 13-05-2020.
No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx descreve os movimentos revolucionários das massas como uma toupeira que, enquanto está invisível, nunca fica parada porque cava túneis e, assim, pode emergir em outro local e época insuspeitos, provocando grandes tumultos.
Décadas antes (1820), diante desse padrão de insubordinação e resistência – o utilitarista inglês J. Bentham tinha proposto uma pedagogia de administração carcerária como engenharia social (baseada nas regulamentações administrativas, por exemplo, sobre pobres e doentes da sociedade, o que abrangia então boa parte das classes trabalhadoras).
Tratava-se de construir grande número de instituições (inclusive prisões) e colocá-las para funcionar como um panóptico nos pontos cardeais; através delas poderiam ser supervisionados todos os cidadãos, disciplinando-os apenas por força do olhar atento das autoridades.
O mecanismo pode ser banal, mas sua adoção como deslocamento diante dos movimentos revolucionários, não é trivial. Foi adotada para o aumento da produtividade econômica e, sobretudo, controle dos movimentos sociais, em direção a um controle da sociedade dividida em classes laboriosas e os proprietários do capital.
Essas duas imagéticas, a toupeira invisível e seu oposto – o panótico – são deslocamentos que apontam para a identidade e desigualdade numa sociedade disciplinar como a que o capitalismo instaurou no século XIX. Em face deste problema aparentemente insolúvel, a questão era atingir um equilíbrio social entre emancipação e servidão diante da fome e da abundância, da cultura e da ignorância, da guerra civil e da paz de cemitérios. Cem anos depois, as sociedades pluralistas ampliam e aprofundam um claro dualismo em relação à necessidade de reprodução das desigualdades. De um lado, mantêm as estratégias correntes do século XX que ratificam a lógica da escassez, portanto, persistem as lutas pela igualdade garantindo, seu deslocamento para aumentar a produtividade do universo simbólico e material da indústria de consumo. A outra margem, contudo, parece funcionar modulada por um biopoder em regime social e produtivo da pós-escassez, para apenas uma parte afluente da humanidade. Com isto, reproduzem as lutas anti-unitárias, uni-identitárias, pela multiplicação das identidades, ou pela sua explosão e morte.
No Brasil, cidadãos num estado-nação semi-periférico cuja vida cotidiana é marcada pela difícil herança dos 200 anos de modernidade capitalista, industrial e urbana, escravocrata, patriarcal e oligárquica, por um lado, nos apercebemos perplexos ante a desigualdade que se reproduz no cotidiano das nossas cidades, e, por outro, convivemos com a herança do socialismo em torno de uma luta por uma sociedade sem escassez.
Nosso imaginário está marcado pela concepção de desigualdade como um problema material de insuficiência produtiva para atender necessidades básicas das massas, quando é, sobretudo, uma escassez derivada das decisões privadas, que impõem uma razão instrumental caduca de escassez produzida sob a lógica de criar necessidades para gerar lucros.
Ambas as concepções de desigualdade são parte de uma mesma exigência da modernidade capitalista e das experiências socialistas. Não queremos só comida, queremos comida, cultura e arte […] (no refrão de um compositor de rock brasileiro dos anos 80).
Seja social, seja cultural, seja, ainda, econômica, seja, enfim, de acesso às estruturas de mobilidade social – isto é, tudo o que convencionalmente chamamos direitos da cidadania -, a desigualdade não é um quadro uniforme, tampouco homogêneo.
Toda a filosofia política e as ciências sociais vivem no complexo básico definido pela pergunta clássica que, por certo, ecoa há séculos: Como é possível a sociedade, enquanto criação artificial (política)?
Mas ainda parece ter sido ouvida ontem na história dos últimos 150 anos, quando forças policiais e militares desterraram ou fuzilaram aos montões operários e trabalhadores urbanos e rurais nas ruas das capitais europeias. (Eram colocados sumariamente fora-da-lei, de modo que esse rito é sempre atualizado, tal como aconteceu em São Paulo nos motins de maio de 2006, com os 101 flagelados do Carandiru).
Todos os intelectuais, que antes da revolução industrial conceberam a representação da república (sob o Renascimento, por exemplo), projetaram uma sociedade-uniclassista, na qual haveria entre quaisquer cidadãos e cidadãs – citadinos e citadinas – igualdade de direitos de expressão e de organização, por isso mesmo, constituindo uma sociedade de iguais.
A teoria social (ampla, das ciências sociais e humanas) aprendeu a contar até dois – como postula Boaventura de Sousa Santos. Reconhecemos claramente que o outro é tão importante para nós, quanto para a construção do coletivo. Se, conforme ainda postula, “não iremos a lugar algum apenas com a filosofia, e sociologia do progresso e do desenvolvimento – cuja meta é supostamente assegurar a redução das desigualdades”, que caminho construir?
Isso nos conduz a trabalhar a diferença entre os corpos (eu e o outro) do ponto de vista econômico, como parte da materialidade coletiva de um processo. Falta-nos, porém, a terceira dimensão do pensamento das ciências humanas no quadro contemporâneo que é a de criar as condições para existência da dimensão processualística da emancipação, autogestão com base na educação libertária.
Em linhas gerais, tal dimensão propõe a articulação entre desigualdade de base identitária – diferentes subjetividades e origens étnicas e saberes fora do código binário da funcionalidade da sociedade disciplinar — e igualdade no plano dos direitos da cidadania.
Ao mesmo tempo, a economia política dos mercados e sistemas produtivos corporativos do século 21 passou a se orientar para funcionar (nos setores ditos altamente lucrativos) como uma regulação por derivação, comando típico da sociedade disciplinar.
Embora ainda persistam os controles cibernéticos – ou, maquínicos – típicos dos jogos de mercado neoclássico, nos sistemas corporativos a temporalidade é outra; os controles exigem unidades locais, descentralizadas, que deixam de ser monitoradas de cima para baixo (muito custoso) e a ação deve, antes de tudo, assegurar a reprodução social baseada no autocontrole da biopolítica não mais sob uma sociedade disciplinar, mas sob uma sociedade de controle (Foucault, Negri e Hardt).
Em que medida a nova sociedade de controle absorve e amplifica a sociedade disciplinar? Eis a fronteira confusa do sujeito contemporâneo diante do espelho, ora se vê moderno, ora estrangeiro-em-si. Trata-se de operar com base em comportamentos de integração social e de exclusão cada vez mais interiorizados nos cidadãos. Os mecanismos de controle operam como microfascismos difusos.
Em contraste com as técnicas disciplinares do século 20, o controle se estende bem para fora dos locais estruturados nas instituições sociais, mediante redes flexíveis e flutuantes.
No quadro de uma sociedade de controle, muda de registro a questão de como dar voz ao corpo como identidade e, deste jeito, permitir sua individualização. O biopoder é a forma de regular a vida social a partir dos nossos corpos presentes.Como posso acompanhá-lo, interpelando-o, articulando-o com outras redes e corpos, signos e mensagens?A disciplinaridade dos saberes – que já havia assegurado a fixação dos indivíduos a instituições – foi construída sob modalidades de teorias dualistas, lógicas, geométricas e quantitativas.
Embora permaneçam em grande medida orientando os que chegam atrasados ao trem da modernidade, tais lógicas operam ainda sob os pressupostos de uma sociedade da escassez, da penúria e da desigualdade material e econômica.
Diante da enorme produtividade gerada pela base tecnológica e organizacional na atualidade, uma parte dessa lógica perdeu completamente sua racionalidade social. Teria cedido lugar (onde e quando de fato isso se concretizou) à sociedade de controle. A questão subjacente da identidade nas teorias sociais na passagem do século 20 é atingir a resposta ao problema dos acessos aos direitos. Mas as doutrinas sociais e políticas daí decorrentes que organizaram leis, estatutos, normas – o poder – tinham como meta definir direitos de entrada e de saída, para os integrantes de seus grupos sociais nacionais. Ora, estes eram étnica e culturalmente homogêneos ou como tal, regulados em troca de benefícios.
Para fazer valer esses direitos, sobretudo para os que tinham um passado civilizatório comum, ou deste compartilhavam como cidadãos (europeus), ampliar demais essas regras de entrada ameaçava equilíbrios e certezas, dinamismos e interesses da sociedade civil. Este modelo de organização de conflitos da sociedade de classes mediada pelo Estado foi extrapolada como uma sociedade de consumo de massa.
O que fazer com os que não são efetivamente incorporáveis devido às suas características étnicas, formas de organização familiar, comunitária, gênero, tradições, língua muito diferentes? Onde situar os que estão no eixo periférico do processo dito civilizatório e gerador daqueles direitos?
Uma sociedade do tipo policlassista opera com critérios de entrada e saída dos cidadãos diante de um leque de benefícios (direitos e deveres formais, além dos informais ou não ditos assegurados por papéis sociais e inserção no quadro dos mores ou costumes) nem sempre definidos de forma impessoal ou geral para o conjunto da população.
Uma sociedade desse tipo somente se tornou concreta nos países centrais, quando ao Estado foi assegurada soberania para realizar o garante aos grupos sociais etnicamente diferentes e das massas em geral. Tal estado era apenas concreto, na medida em que fazia parte do imaginário político de uma parte do movimento de esquerda comunista e socialista, e somente se tornaria espaço instituído na sociedade liberal e burguesa após a experiência de totalitarismo no século XX (nacional-socialismo e estalinismo) entre as duas grandes guerras, que afastaram as ameaças de diferenciação social como desintegração nacional (caso alemão, sobretudo, mas não somente).
Como ampliar o controle ou comando social de forma a viabilizar uma sociedade de massas, assegurando, porém, que os direitos de entrada e de saída possam ser disciplinados? O fracasso da sociedade disciplinar no século 19 (a mesma que se estende até meados do século passado no Ocidente e degenera no totalitarismo) obrigou o parto do sujeito contemporâneo, que tem como marca tentativa de equacionar a contradição entre o poder disciplinar (panóptico) e o poder da insurreição e da rebelião (a toupeira).
Sabemos que tal contradição tem sido desafiada porque sua imitação ou máscara, foi adotada como representação de mudança induzida ou controlada por parte das ideologias, instituições, regulamentações, e dispositivos em aparelhos da mídia global que degeneram costumes, hábitos e práticas do cotidiano, para justamente extrair dessa desorganização, uma imposição de outra ordem. O panóptico tornou-se digital, e possui tentáculos que expande o poder disciplinar para controlar as formas pluralistas de rebelião.
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Das grades de ferro aos tentáculos digitais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU