06 Mai 2020
“O que pode ser mais concreto que o abstrato gesto de fazer algo por nossos queridos mortos queridos?”, pergunta o escritor, jurista, “pai” do Novo Cinema Alemão, Alexander Kluge, em conversa por Skype, de Munique. Emociona-se até as lágrimas quando fala de sua irmã, Alexandra. Em sua homenagem, escreveu “Russland-Kontainer”, o livro publicado neste mês em alemão.
Alexandra Kluge protagonizou alguns filmes de Kluge, como o premiado “Despedida de ontem” (1966), que lhe valeu o Prêmio do Cinema Alemão, como melhor atriz. A jovem promessa, no entanto, deixou o cinema para se dedicar à medicina, e sua morte, em 2017, inicialmente passou desapercebida. “Despedida de ontem” é a história de Anita G., uma jovem de origem judia, enfermeira e estenógrafa, que foge da Alemanha Oriental e tenta em vão se inserir na sociedade Ocidental, pois não tem um passado que seja recomendável contar.
Com apenas treze e oito anos – já nos estertores da Segunda Guerra Mundial, em 1945 –, os irmãos Kluge sobreviveram ao bombardeio aliado que deixou ardendo Halberstadt, sua cidade natal. Seguiu a divisão da Alemanha e o divórcio dos pais: Alexander foi transferido com sua mãe para a Berlim Ocidental (de onde vinha), ao passo que sua irmã permaneceu em Halberstadt, aos cuidados do pai, médico, em zona soviética.
“Quando minha irmã retornou à escola, após a guerra, tinha aulas de russo!”, conta Kluge, para explicar o amor que mais tarde Alexandra sentiria por “essa semente russa, que não era a de Stalin, mas, sim, a de Tolstói, Pushkin, Dostoiévski, Maiakovski”. “Não sei o suficiente sobre a Rússia - adverte, custa acreditar -, mas uma coisa posso dizer: é um país repleto de singularidades. E o singular é o que o filósofo Hegel considerava verdadeiramente poético, não as frases grandiloquentes, as generalidades, os ditames. Singular é a “Antígona” de Sófocles, que dá sepultura a seu irmão desobedecendo a lei.
Este livro fala de todas essas singularidades, sem o imperioso desejo de as sintetizar. O escritor desce do pedestal, por isso o livro não leva o nome pomposo de arca russa ou algo do estilo, mas um mais modesto, carrinho ou contêiner, porque o que faço é compilar, como os irmãos Grimm”. O volume, decididamente poético, reúne relatos entre o documental e a ficção, a utopia histórica e a crua realidade de anseios messiânicos.
Kluge é inesgotável, intenso, como poucos em seus 88 anos. No Berlinale [Festival Internacional de Cinema de Berlim], estreou “Orphea”, um filme produzido com um artista experimental filipino, Khvan De la Cruz, e com cenas gravadas em bairros carentes e zonas vermelhas de Manila.
Quando a pandemia fechou tudo, preparou uma visita virtual por uma exposição audiovisual sobre a ópera que montou no museu, agora fechado, “Württembergischer Kunstverein”. E, neste mês, publica mais um livro, “Trotzdem” [Apesar de], conversas sobre o coronavírus com Ferdinand von Schirach.
É com o vírus, sua onipresença, que começa esta entrevista. É uma conversa que coincide com o aniversário daquele ataque aéreo e fim de uma guerra, em maio de 1945, com a recordação dessa primeira emergência que marcou o menino que continua sendo Alexander Kluge. E o que é a emergência senão aquilo que amplia o que normalmente acontece, aquilo que, unido à urgência, se associa a um tempo que se opõe ao sossego...
A entrevista é de Carla Imbrogno, publicada por Clarín-Revista Ñ, 01-05-2020. A tradução é do Cepat.
Estamos pela primeira vez em quarentena global, mas há tempo você se ocupa dos vírus nos programas que faz para a televisão alemã e que podem ser vistos em seu canal digital. Tem vários sobre o Ebola na África. O que lhe interessa nos vírus?
Os vírus são nossos vizinhos na evolução, e são mais velhos que nós, têm 3,5 bilhões de anos. Há aqueles que dizem que nossos antecessores saíram, em certo momento, dessas simples sequências de ácido ribonucleico. Em nosso genoma, mais da metade são vírus patriotas que brigam de forma onírica em nossas células contra doenças agora extintas e perigos de 45 milhões de anos atrás, combatem outros vírus arcaicos, constituem a base de nossa imunidade. O antídoto pode estar em nós e, por sua vez, são como extraterrestres de nosso próprio planeta. É muito estranho.
Estamos em casa querendo entender o comportamento dos vírus, mas não é complicado tentar ser cientistas, enquanto vemos as imagens de fossas comuns em Nova York e em Manaus?
Não acredito que se trate de ser cientistas, mas podemos colocar em contexto nosso tempo. Temos a praga que açoita Atenas, durante a Guerra do Peloponeso, as pessoas fugindo da peste na Toscana e se confinando nas montanhas, enquanto Boccaccio escreve “Decameron”, que por sua vez inspira Shakespeare. A gripe espanhola, o aperto da tuberculose, que deixa Kafka convalescente e da qual fala “A montanha mágica”, de Thomas Mann. Temos Hegel, que morreu de cólera por comer uvas frias no inverno.
Durante aquela epidemia, o estado prussiano tentou fechar suas fronteiras (como muitos países estão fazendo agora), mas faltou fechar os canais e a cólera chegou a Berlim de barco. A mulher de Hegel e os acadêmicos da universidade, esses grandes buscadores da verdade, quiseram acobertar: o grande homem, o erudito, não podia terminar coberto de cal em uma fossa comum, assim com todos, então, disseram que não era cólera, e a mulher até o abraçou – que perigo! – para demonstrar que não era cólera. Agora, o grande homem está enterrado a 80 metros de onde terei minha própria sepultura, no cemitério de Dorotheenstadt, em Berlim. Minha irmã já está lá. Como vê, tudo isto remexe coisas muito elementares. Isto é o presente. Estamos em algum tipo de Titanic e temos que lançar os botes.
É possível imaginar as verdadeiras catástrofes?
O que podemos fazer é colocar a realidade à prova, questioná-la. Questionar se as ilhas de Robinson em que vivemos, essas campainhas de mergulho com as quais nos fechamos em nossas ilusões de segurança, têm algo a ver com a realidade. Em uma dura crítica à realidade, que emana desta forma de inteligência estranha. Existem tipos muito diferentes de catástrofes e diferentes tipos de respostas. Em alguns casos, a quarentena é a resposta. Em outros, como um terremoto em Fukushima com catástrofes nuclear inclusa, cabe fugir, como em Constantinopla, onde a quarentena seria um erro. O enfrentamento de alguns meses atrás entre Rússia e Turquia, na região síria de Idlib, me aterroriza mais que o vírus, e pertenço ao grupo de risco! Sentir que jamais temos algo assegurado está muito mais perto da realidade que o fatal sentimento de segurança que temos assistindo televisão em um sábado à tarde.
E que críticas faz à nossa realidade?
Crítica é antes de mais nada a percepção da realidade. Mas não falo em termos morais. Podemos questionar nossos costumes, que tipo de filmes queremos ver realmente ou se desejamos retornar ao cinema depois disso. Estamos descobrindo formas de proximidade mais reais que muitas ilusões de proximidade. Estamos sendo redefinidos, e isso tem um caráter desafiador. Para mim, esta situação tem algo de ‘hora zero’, como na Alemanha, em 1945.
Em maio, completam-se 75 anos da rendição da Alemanha, em 1945. Nesse contexto, referiu-se ao bombardeio aliado sobre Halberstadt, vivido por você um mês antes, em abril de 1945.
Sim. Mas também gostaria de fazer referência ao fato da capitulação. Fiz um filme, “Frühling mit weißen Fahnen” [Primavera com bandeiras brancas]. Dias depois do ataque aéreo, penduravam bandeiras brancas nas janelas de Halberstadt. As mulheres diziam a nós, crianças, que se juntássemos lençóis e colocássemos nas janelas das igrejas, os aviões não voltariam. Nossa esperança de felicidade estava em que aqueles lençóis serviriam para algo. Mas não fazia sentido, um bombardeio jamais distinguiria esses lençóis, do mesmo modo em que o general iraniano, de alguns meses atrás, jamais poderia ter se rendido diante do drone que lhe lançou a bomba. Ou seja, as bandeiras brancas são metáforas.
Em Halberstadt, virou moda pendurar bandeiras brancas, em abril, e as crianças se encantam em sair para pendurá-las, mesmo que não saibam o que significa. E significa que é permitido se render. E que a possibilidade de capitulação exista é uma circunstância de algum modo afortunada. Em Alepo, não posso me render frente a um comando de aviões, tampouco em Idlib, frente a sete adversários diferentes, porque se me rendo diante de um, o outro me mata. A guerra de demônios se tornou mais e mais brutal, a guerra camaleônica mostra permanentemente sua versátil capacidade de lançar. Por tudo isso, digo que, para a tarefa poética, os ‘pontos zero’ da história como o que estamos vivendo não são necessariamente algo negativo, mas o verdadeiro ponto de chegada da realidade. Sentimos o chão sob os pés.
Estamos diante de desafios como sociedade e como democracias. É disso que se tratam as conversas com Ferdinand von Schirach a propósito da crise do coronavírus?
Com Schirach, o que nos une é que somos escritores e nós dois gostamos de ser juristas. Durante o movimento estudantil, houve leis de emergência e houve manifestações em repúdio às leis de emergência. Agora, ao contrário, as leis de emergência são executadas em meio a uma conformidade total, é a “hora do Executivo”. E há poderes executivos em que se pode confiar e executivos que não, como na Hungria. Isto nos obriga a treinar nossa capacidade de discernimento.
O livro trata dessas perguntas jurídicas que são as perguntas pela confiança em nossos governantes, no soberano que diz protego ergo sum: protejo, logo existo. Quem faz a afirmação pode existir como tirano ou como alguém em quem confio. Pode atuar como elefante em um bazar, ao modo Trump - a metáfora é de Max Weber -, ou como equilibrista, digamos, como a chanceler alemã, que neste momento, na minha opinião, consegue encontrar bastante a justa medida.
O caso é que Schirach me chamou quando começou a quarentena e me disse que não podia deixar de pensar no grande terremoto de Lisboa de 1755, que sacudiu o mundo ilustrado no século XVIII. Naquele momento, Voltaire disse que era necessário declarar guerra à natureza. A partir desse exemplo, Schirach e eu observamos a atualidade e concordamos em que uma expressão bélica, como a utilizada pelo atual presidente francês, não é adequada. Mas Voltaire também não estava querendo dizer que era necessário combater um terremoto com artilharia. E, assim, o absolutista Marquês de Pombal, que era primeiro-ministro português naquele momento, a primeira coisa que fez foi estimular a investigação, colocar os soldados para trabalhar e reconstruir completamente Lisboa à prova de terremotos futuros. O livro começa com esse acontecimento.
E hoje?
Hoje, no que dura um momento, nada é impossível. Custará 100 trilhões de euros, bom, os euros estão aí. É um instante de enorme concentração histórica, em que é necessário reconhecer a catástrofe e, ao mesmo tempo, visualizar as saídas. Conhecer essas saídas é tarefa poética, uma saída de emergência não é uma porta com um cartaz que diz saída de emergência. Os advogados e os poetas temos trabalho nesta quarentena, temos que usar o tempo para deixar no ponto nossas ferramentas.
Você fala em ampliar os campos semânticos.
Tem a ver com podermos imaginar o mundo fora do nosso. A tradução é boa para isso. A quarentena nos desafia a construir uma esfera pública de onde estejamos, e estamos comprovando que pode ser inclusive mais intensa que em momentos em que temos liberdade de estar em um parque. Com sorte, vou duas vezes ao ano ao parque, mas agora estou fechado, passo o tempo falando por Skype em uma esfera pública global, falo com Wuhan, com Buenos Aires. O desafio é qual esfera pública queremos depois disso. E é um desafio para a gramática, poderíamos recuperar o condicional caído em desuso: “poderia, por favor”, isso contém heterotopia, o que acontece a meu lado.
O filósofo, sociólogo e antropólogo francês Bruno Latour, que adverte entre outras coisas sobre o pano de fundo climático desta crise sanitária, sustenta que a última coisa que deveríamos fazer, no dia seguinte, é retomar de maneira idêntica tudo o que fazíamos antes.
Justamente. Vínhamos em um trem que descarrilhou e temos a possibilidade de construir, a partir de agora, não em linha reta, mas saindo da linearidade. É claro, não estou dizendo que gosto do que está acontecendo, não quero ver esses caixões! Só tento ver possibilidades, potencializar a gramática, incorporando o modo optativo próprio do idioma grego – que expressa desejo – ou o caso ergativo do basco, que nos faz refletir sobre as formas de trabalho. Esta seria uma oportunidade de sair de uma sociedade do consumo para ser novamente uma sociedade produtora, no sentido de que, no mais tardar, agora sabemos que precisamos de diques para conter catástrofes, que devemos desenvolver solidariedades, reconstruir os fundamentos de nossa sociedade.
Isso me lembra a frase com a qual inicia o seu filme “Despedida de ontem”: “Não é um abismo o que nos separa do ontem, mas a situação transformada. O que essa frase significa para você?
Que eu vejo muitos túneis. Somos toupeiras. As toupeiras têm mãos com unhas cumpridas, com as quais podem cavar abaixo da linha que separa o presente do ontem. Cavar rumo ao futuro não é possível, mas podemos cavar para trás e encontrar no passado algo que permanece irrealizado e que, como Cassandra, podemos retomar olhando para frente. Também podemos cavar para os lados, já que as realidades são muito mais amplas, e ampliar nosso horizonte. Aí a metáfora muda e deixamos de ser toupeiras para nos tornar morcegos, que lamentavelmente agora possuem má fama.
Agora há outra mulher mítica, Orphea, interpretada por Lilith Stangenberg. O filme cruza os projetos de imortalidade dos biocosmistas russos, os algoritmos do Vale do Silício, a situação nos campos de refugiados. Como surgiu a ideia com Khvan? Por que Orphea?
Uniu-nos o desejo de produzir filmes musicais. Queríamos retomar o mito de Orfeu – que foi a primeira ópera, o Orfeo de Monteverdi -, mas para nós parecia uma arbitrariedade que Orfeu não tivesse permissão para olhar para trás e que isso o impedisse de recuperar o mundo dos mortos, o que mais amava. Sendo assim, criamos Orphea, porque uma mulher, sim, poderia, e não só resgata o que mais ama, como também todos os mortos, ajudada pela força revolucionária da música, o fio comum: Tchaikovsky, Purcell, o próprio Khvan. O princípio da ópera é o duelo. Duelo pela emergência: guerra, peste, terremoto com lava.
O filósofo Hans Blumenberg disse que o visitante de um museu parisiense que está diante da “Balsa da medusa”, de Théodore Géricault, se engana se acredita que está diante dessa imagem. Há tempo que estamos na balsa, encima do barco, não podemos continuar mostrando para as pessoas um filme com o Titanic se afundando. Estamos afundando no Titanic e temos que assumir o comando. Há duas qualidades que as pessoas têm, sem sequer as escolher: realismo e empatia, como as duas asas de uma tesoura com as quais podemos cortar, editar, montar. Fazemos isso quando trabalhamos poeticamente, quando somos capazes de perceber. Não é verdade que que “o homem é o lobo do homem”. Não tentei morder o pescoço como lobos, mas não acredito que possamos fazer isso, somos presunçosos, mas não predadores. O que temos é empatia e realismo, mordamos com isso.
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“Vínhamos em um trem que descarrilhou”. Entrevista com Alexander Kluge - Instituto Humanitas Unisinos - IHU