06 Março 2020
Qual é a verdadeira lição a ser tirada da resposta do papa ao Sínodo sobre a Amazônia? Tanto os conservadores quanto os progressistas dentro da Igreja não conseguem entender a natureza radical das reformas de Francisco.
A reportagem é de Christopher Lamb, publicada em The Tablet, 04-03-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Papa Francisco escapou da armadilha armada pelos seus oponentes no Sínodo Amazônico. Ao contrário do que foi indicado pela reação inicial à sua exortação pós-sinodal “Querida Amazônia” – alívio pela suposta decisão de manter o status quo do lado conservador, decepção com o que os progressistas viam como inércia ou falta de coragem – ele impulsionou a Igreja, de fato, decisivamente, ao longo do caminho da reforma.
Quase sete anos após sua eleição, a pirâmide está gradualmente sendo invertida, e a Igreja está ficando mais parecida com os sonhos missionários da Igreja de Francisco, voltados para o exterior. Mas não da maneira que as pessoas esperavam.
Depois de um sínodo em que 128 bispos da região votaram a favor de uma proposta de ordenar homens casados como padres na Amazônia, com 41 votos contrários, aqueles que tentavam frustrar a determinação de Francisco de ouvir a voz da Igreja local fizeram tanto barulho que ele decidiu que anunciar uma mudança das regras sobre o celibato desviaria a atenção do mundo da mensagem central do Sínodo: a urgência desesperada da necessidade de responder à ameaça ao ambiente e a importância vital de se solidarizar com as comunidades indígenas marginalizadas da Amazônia.
Diante de um ataque dos dois lados, Francisco decidiu simplesmente ignorar as questões sobre a possibilidade de ordenar homens casados como padres e mulheres como diáconas. Mas a história não termina aí. A resposta do papa ao Sínodo abriu as portas em vez de fechá-las. Foram lançadas as bases para futuras reformas. As questões importantes permanecem sobre a mesa, enquanto um debate mais amplo sobre a distribuição do poder na Igreja, para além de um pequeno grupo no topo, está rapidamente em andamento.
O tempo, como Francisco gosta de apontar, é maior do que o espaço. Olhe para qualquer pesquisa de opinião e você verá que os católicos que vão à missa apoiam em todo o mundo cada vez mais padres casados e gostariam de ver mais mulheres em posições de liderança. O ímpeto para a mudança é como um rio que corre, com apenas uma barragem precária impedindo seu progresso. Em algum momento, a barragem vai romper. Francisco sabe disso e está construindo as margens para que o novo rio possa correr.
Uma das formas pelas quais ele está fazendo isso é depositando a sua fé na Igreja local. É significativo que ele tenha endossado plenamente o documento final do Sínodo Amazônico, “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”. Nenhum adendo ou especificação. Pela primeira vez, um documento sinodal recebeu a sua própria autoridade. O papa descreve a “Querida Amazônia” como um “breve quadro de reflexão” que acompanha, sem pretender suplantar, o documento do Sínodo. É um divisor de águas.
O teste decisivo será como isso se desdobrará localmente. O cardeal brasileiro Cláudio Hummes, figura central nas discussões sobre a Amazônia, diz que a proposta de padres casados continuará sendo desenvolvida. O Pe. António José de Almeida, um influente teólogo do Brasil que esteve em Roma durante o Sínodo, vai além, argumentando que os bispos são livres para pedir ao papa que ordene homens casados caso a caso. Esse papa, ou um futuro, poderia permitir que homens casados sejam ordenados padres na Amazônia com a ponta de uma caneta.
Da mesma forma, sobre o papel das mulheres, o papa prometeu que a comissão que ele criou em 2016 continuará, embora apoie o documento dos bispos que pediu que as mulheres sejam admitidas em ministérios de nível inferior e que os leigos e leigas possam ser lideranças das comunidades paroquiais locais. Ambas as coisas são importantes afastamentos dos modelos clericalistas do passado e vão rumo ao modelo de Igreja mais centrado no Evangelho previsto pelo Concílio Vaticano II.
Ao ler a “Querida Amazônia”, vale a pena lembrar a reação ao documento tão aguardado do papa sobre a vida familiar. Quando a Amoris laetitia foi divulgada em resposta ao Sínodo sobre a família, a reação se concentrou em saber se o papa havia aberto ou não a porta para permitir que os católicos que se divorciaram e se casaram novamente fossem readmitidos à Comunhão. Como se sabe, a única referência explícita ao problema estava em uma nota de rodapé.
Mas, em ambos os casos, o que vemos é Francisco se movendo para promover algo mais profundo do que uma mudança no entendimento da doutrina: uma transformação da dinâmica de poder da Igreja. Ele abriu um debate sobre questões que, em pontificados anteriores, eram consideradas fechadas. Ele está dando mais autoridade às Igrejas locais e enquadrando as questões disputadas no contexto da necessidade pastoral, em vez de batalhas ideológicas abstratas.
Desde a sua publicação em 2016, a Amoris laetitia se tornou o modelo para uma pastoral familiar renovada, construída em torno da compaixão, do discernimento e do acompanhamento pastoral. E, sim, isso significou que a maioria das Conferências Episcopais que emitiram diretrizes e um número crescente de bispos e padres individuais reconhecem agora que há circunstâncias nas quais um católico que se divorciou e se casou novamente, mas cujo primeiro casamento não foi formalmente declarado nulo, pode receber a Comunhão.
O papa escreve na Amoris laetitia que “nem todas as discussões doutrinais, morais ou pastorais devem ser resolvidas através de intervenções magisteriais” [n. 3]. O Sínodo Amazônico, com o seu exercício de escuta sem precedentes, envolvendo 87.000 pessoas, é o próximo passo nessa jornada. Na “Querida Amazônia”, Francisco salienta que o relatório do Sínodo votado pelos bispos surge a partir de pessoas que “conhecem melhor do que eu e do que a Cúria Romana a problemática da Amazônia” [n. 3].
O papa jesuíta é perspicaz o bastante para saber como as reformas podem ser facilmente esmagadas em Roma. Por essa razão, ele não quis que o Sínodo Amazônico se tornasse um referendo sobre os padres casados ou uma discussão autorreferencial emoldurada no centro da Igreja. Quando o Sínodo se concluiu, Francisco argumentou que o diagnóstico da Igreja sobre os problemas na Amazônia não poderia se reduzir a uma discussão sobre a “disciplina intraeclesiástica”, na qual um certo “grupo de cristãos de elite” estava se concentrando. Era uma indicação de que ele faria todo o possível para evitar que a reação ao seu texto pós-sinodal fosse dominada pela questão dos padres casados.
A estudada ambiguidade do papa sobre questões controversas e a sua recusa a ser arrastado para debates “ou/ou” são uma marca registrada do seu ministério. Alguns o criticam por permitir que a confusão apodreça nas mentes dos fiéis. Mas Francisco rejeita a tentação de encerrar as discussões e os desacordos na Igreja.
Aqui vale a pena relembrar as armadilhas armadas para Jesus pelas autoridades religiosas do seu tempo. Quando questionado sobre os impostos, ou sobre guardar os mandamentos, Jesus não deu respostas “sim” ou “não”, mas confundiu seus opositores, oferecendo respostas contraintuitivas baseadas na lei e na tradição mosaicas. A lei veio para ser cumprida, e não para ser revogada, mas nem sempre pode se reduzir a respostas simples para perguntas complicadas.
De certa forma, nada mudou: o Papa Francisco está deixando como estão o ensino da Igreja e muitas das suas regras e disciplinas. De outras maneiras, tudo mudou. Ao gerar um espírito de discernimento contínuo e ao iniciar processos de reforma, Francisco está utilizando as ferramentas da tradição católica ao lançar as bases para um novo modo de ser Igreja.
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Como o Papa Francisco confunde seus inimigos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU