21 Janeiro 2020
"Quando alguém nascido no Brasil se diz 'afrodescendente', está dizendo o seguinte: que se vê, se sente e se percebe, em primeiro lugar e acima de tudo, como um descendente de africanos. E só depois disso, muito secundariamente, como brasileiro", escreve Antonio Risério, poeta, antropólogo e romancista, autor, entre outros livros, de “Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária” (Topbooks, 2019). O artigo, enviado pelo autor, foi originalmente publicado por O Estado de S. Paulo, 18-01-2020
É preciso continuar chamando a atenção para o significado perverso do avanço do fascismo de esquerda no Brasil. Hoje, a cada passo que damos, topamos com dois conceitos excludentes vociferados de forma agressiva, violenta mesmo, pelas milícias (vulgo “coletivos”) do multiculturalismo identitário: o chamado “lugar de fala” (circunscrevendo legitimidades discursivas só para “oprimidos”) e a chamada “apropriação cultural”, pretendendo isolar e compartimentar “culturas”.
De fato, o multiculturalismo encontrou sua expressão política mais aguda e belicosa no fascismo da esquerda identitária. E o que é mesmo o multiculturalismo? Sejamos claros: é um “apartheid” de esquerda. A ideologia multiculturalista se opõe às interpenetrações culturais, defendendo o desenvolvimento apartado de cada “comunidade étnica”, de modo que ela possa permanecer sempre idêntica a si mesma, numa espécie qualquer de autismo antropológico. E o Brasil nunca foi e não é um espaço multicultural. Ao contrário, somos um país sincrético.
Como escrevi outro dia artigo sobre o “lugar de fala”, vou me deter hoje, mesmo brevemente, em torno da “apropriação cultural”, que é um retrato acabado da atual ignorância a respeito da história cultural da humanidade, toda ela feita de imposições, apropriações, empréstimos, trocas e mesclas. A coisa ficou conhecida no Brasil graças ao “caso do turbante”, que uma mulata escura tomou como signo cultural especificamente negroafricano.
O turbante foi levado à África Negra pelos árabes, que invadiram e dominaram muitos de seus reinos (é provável, inclusive, que a palavra “mulato” venha do árabe, designando originalmente filhos de árabes e pretos). É conhecida a história da revolta do Gobir, reino hauçá, contra a dominação muçulmana. Proibiu-se ali, naquela conjuntura, que negros usassem símbolos da opressão islâmica – entre eles, o turbante. A mulata brasileira que tomou o turbante como signo negro nada conhecia de história africana.
Mas podemos chegar também a outra perspectiva sobre “apropriação cultural”, no caminho do musicólogo Flávio Silva, em seu importantíssimo “Musicalidades Negras no Brasil”. Flávio fala aí da afirmação do sistema tonal entre nós, marcando de uma ponta a outra nossa criação musical. Lembra que a tonalização do ouvido brasileiro, no sentido do pré-classicismo europeu, foi difundida aqui “por compositores e instrumentistas mulatos e negros instruídos por mestres lusos durante o período colonial”.
“A modinha, o lundu, a ópera, a opereta, a invasão de danças europeias e de suas partituras no século XIX prolongaram e ampliaram a tonalização do ouvido musical, vitoriosa nos choros e maxixes do fim do século, que desembocariam nos sambas urbanos e nos diversos gêneros característicos do populário do século XX”.
E mais, acertando no centro do alvo: “Um raciocínio simplório levaria a considerar a adoção do sistema tonal e de seu instrumental pelos escravos e pelos que deles descendem, parcial ou integralmente, como determinada pela opressão do sistema escravista. Músicos como Domingos Caldas Barbosa, José Maurício, Callado, Pixinguinha, Cartola e tantos outros integrariam uma espécie de ‘uncle Tom’ musical – acusação feita nos EUA a Louis Armstrong”.
Flávio vai por outro caminho: “A paixão e a virtuosidade com que esses músicos elaboraram obras perfeitamente enquadradas na tonalidade denotaria uma perversão de sua identidade cultural. Na realidade, o que ocorreu foi uma ‘apropriação cultural’, por parte dos músicos negros, mulatos e dos mestiços em geral, dos princípios harmônico-melódicos da música europeia, donde a notável aproximação estilística de músicos de origens e regiões tão diferentes como Ernesto Nazareth no Brasil e Scott Joplin nos EUA, que se desconheciam. Ataíde, Aleijadinho e outros mais fizeram análoga apropriação cultural de princípios das artes visuais europeias”.
Trata-se de uma inversão lúcida e preciosa, sobre a qual nossos identitários e racialistas deveriam pensar. O que se tem aqui nesta bela passagem, como em todo o texto de Flávio Silva, sempre de uma precisão e erudição admiráveis, não é o ralo e reles discurso da vitimização – mas a visão afirmativa do músico negromestiço brasileiro como (para lembrar Waly Salomão) “a voz de uma pessoa [de uma trama processual ou de uma ação cultural] vitoriosa”. Flávio deixa de lado o discurso da vitimização e faz o discurso da afirmação vitoriosa.
É fundamental entender isso. Vitórias negromestiças na música, na língua, no futebol ou na religião, com terreiros de candomblé sendo hoje tombados como patrimônio da nação brasileira. Já o multiculturalismo, com seu vitimismo, seu pessimismo programático e sua ânsia de “apartheids”, aponta numa direção claramente contrária.
Vejam o que aconteceu nos Estados Unidos, país em que – pasmem – somente 1% dos brancos possui alguma ascendência africana. Hoje, simplesmente, não existem mais “americanos”. Existem ítalo-americanos, africano-americanos, etc. Querem também pulverizar o Brasil e riscar do mapa a figura do brasileiro. Promover um fracionamento étnico nacional.
Não é a primeira vez que tentam isso entre nós. “Os primeiros intelectuais que elaboraram a diferenciação dos brasileiros por categoria étnica ou religiosa foram os nazistas”, informa Ricardo Costa de Oliveira em “A Identidade do Brasil Meridional” (na coletânea “A Crise do Estado-Nação”, organizada por Adauto Novaes). Acrescentando: “De acordo com o discurso nazista, não haveria povo brasileiro”. Índios à parte, o que existiam eram luso-brasileiros, sírio-brasileiros, ítalo-brasileiros, afro-brasileiros e assim por diante.
Ainda Oliveira: “Em 1937, reuniu-se em Benneckenstein o Terceiro Congresso do Círculo Teuto-Brasileiro do Trabalho. (...). Suas posições intelectuais apontavam para a formação de uma consciência étnica que se manifestasse em uma comunidade distinta e separada enquanto teuto-brasileira. (...). O teuto-brasileirismo era interpretado como ‘o gérmen do retalhamento do Brasil, com o nazismo no momento, ou com outro nome qualquer futuramente’”. Era o multiculturalismo nazista em ação, hoje levado adiante pelo multiculturalismo identitário.
O multiculturalismo conseguiu fazer isso nos Estados Unidos – e pode fazer o mesmo por aqui. Lembre-se que juridicamente, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, o “jus soli” – o chamado direito do solo, “lex soli” – vale dizer, a nacionalidade determinada pelo lugar de nascimento, prevaleceu sobre o “jus sanguinis”, o direito de sangue, a nacionalidade determinada pela matriz étnica.
Mas se isso vigora no plano jurídico, vemos que, nos Estados Unidos, a coisa foi revertida no campo social. Político-social. Na sociedade norte-americana, o que prevalece agora é o “jus sanguinis”. Por isso mesmo, podemos definir os atuais Estados Unidos como o país dos etc. - descendentes. E a meta inequívoca é fazer o mesmo aqui no Brasil. Se isto nem sempre é explicitamente formulado no plano da teoria, é francamente exercitado no dia a dia da prática.
É justa e exatamente este o sentido de uma expressão como “afrodescendente”. Quando alguém nascido no Brasil se diz “afrodescendente”, está dizendo o seguinte: que se vê, se sente e se percebe, em primeiro lugar e acima de tudo, como um descendente de africanos. E só depois disso, muito secundariamente, como brasileiro.
Ao Brasil caberia um lugar subordinado à matriz étnica (ou a uma das matrizes étnicas do sujeito, escolhida ideologicamente, já que somos todos mestiços). Teríamos assim o ser brasileiro como mero complemento do ser africano – e de um ser africano mítico, ideológico, não é preciso dizer.
Do ponto de vista do multiculturalismo e do identitarismo, a nação é uma ficção reacionária. E, como tal, tem de ser desmantelada. Daí, de resto, a relevância de visões como a de Flávio Silva, que corrigem distorções grosseiras da esquerda semiletrada que hoje berra nos “campi” e vai se espalhando pelas ruas, com seu discurso binário-maniqueísta, que é o caminho mais curto e mais fácil para seduzir as massas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Chega dessa conversa de Brasil e de Brasileiros? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU