07 Janeiro 2020
"Tentar melhorar o funcionamento do órgão mestre reduzindo prazeres potencialmente ‘viciantes’. Adianta alguma coisa?", indaga Kristin Suleng, em artigo publicado por El País, 06-01-2020.
O Vale do Silício é conhecido por seu papel como um polo mundial de desenvolvimento de tecnologia e pelos milhões de dólares gerados por seus gigantes digitais. Mas o paraíso geek por excelência também é o lugar onde emergem as tendências de saúde mais extravagantes, geralmente ligadas ao aumento da produtividade pessoal. Os executivos de São Francisco puseram na moda a dieta de jejum intermitente, a de beber água pura da chuva e fontes sem tratar, o consumo de microdoses de LSD para obter um melhor desempenho no trabalho... e agora chega a de nos afastarmos de tudo o que produz prazer –da comida, ao álcool e o sexo até as redes sociais e as novas tecnologias. A prática é conhecida como jejum de dopamina, termo cunhado pelo psicólogo e investidor em tecnologia Cameron Sepah, ao qual se atribuem os benefícios de “reiniciar” e melhorar a eficiência do cérebro. Ou seja, como uma maneira de nos livrarmos dos “vícios” que nos impedem de alcançar nossas mentes e potencializar a produtividade. Vale a pena tentar?
A dopamina é um neurotransmissor básico do sistema nervoso central e não é prejudicial, lembra a neurocientista Raquel Marín, professora de Fisiologia da Universidade de La Laguna, em Tenerife. O cérebro precisa dela para várias tarefas relacionadas à memória, à motivação, à recompensa, ao aprendizado, à atenção e aos estados de alerta. “Também está envolvido nas funções motoras, é estimulada quando nos apaixonamos e atua até mesmo na produção de prolactina, o hormônio da secreção de leite na mama”, diz Marín.
O fato de a dopamina ser liberada no cérebro quando sentimos algum tipo de satisfação ou bem-estar em atividades como ler um livro, sair com amigos, viajar ou praticar sexo fez com que durante muito tempo se acreditasse que essa molécula era a responsável pelo sentimento do prazer. Agora é conhecida como o neurotransmissor do desejo e da motivação.
“Ao liberar dopamina, sentimos um enorme desejo de buscar prazer; quando o encontramos, as endorfinas ou encefalinas nos fazem senti-lo. O desejo nos faz procurar prazer, e o prazer também aumenta a vontade de procurar desejo”, explica Ignacio Morgado, professor de Psicobiologia no Instituto de Neurociências da Universidade Autônoma de Barcelona.
A dopamina também está ligada à surpresa; portanto, quanto mais inesperado for um evento, mais dopamina é liberada. “É como quando alguém está sentado tranquilamente em um café e de repente aparece um amigo que não via há muitos anos”, diz Morgado, autor do livro Deseo y Placer, la Ciencia de las Motivaciones (Editora Ariel, sem tradução). Então o que há de errado? Por que alguém iria querer bloquear sua produção?
A graça da proposta é que o jejum de dopamina se baseia na renúncia a comportamentos pouco saudáveis que envolvem abusar do prazer. Pode ser entendido como um tipo de estratégia para escapar de situações que distraem a atenção de outras mais produtivas, ou como uma "terapia de desintoxicação" daquilo que nos separa do que é realmente importante. No entanto, "o organismo a regula para que não seja escassa nem excessiva. É difícil conceber uma possível regulação para menos, por controlar voluntariamente aspectos relacionados com a produção de dopamina", explica Marín.
Para Morgado, existe uma maneira, embora não seja atraente: “Se você se tranca em casa, não recebe telefonemas e não assiste à TV, impede que seu cérebro libere dopamina de forma natural. Não sabemos em que circunstâncias o jejum deve ser aplicado nem como deveria ser, mas se volta para a vida cotidiana e nos chama a todos de abusadores da vida, como uma homilia de domingo”, enfatiza. A neurocientista é a favor da ideia do jejum, mas como meio de pesquisa em substâncias inibidoras para casos de dependência, quando a sobrecarga dos sistemas de recompensa deteriora o cérebro. “Não é um tratamento terapêutico para qualquer pessoa, reduzi-la só é bom em casos de excesso exacerbado de algo prejudicial para o organismo e que o impede de levar uma vida normal”, ressalta o professor.
Ocorre que a dopamina está ligada às dependências químicas, quando o cérebro pede a recompensa com insistência. Nesses casos, prega uma peça. “Produz uma sensação permanente de inquietação e desassossego na ausência do prêmio, assim como de atender a essa necessidade para subsistir, mesmo que estejamos conscientes de que é uma prática que nos prejudica”, diz Marín, que dá como exemplo o café matinal. “Nenhum estudo científico mostra que é essencial para sobreviver, no entanto, muitas pessoas sentem que não podem funcionar sem ele”, diz a neurocientista.
O diretor da seção de Neurociência Cognitiva do Centro de Evolução e Comportamento Humano da Universidade Complutense de Madri, Manuel Martín-Loeches, observa que “não há como restaurar algo que está em constante mudança desde antes do nascimento, como é o caso do cérebro. Se restringirmos a dopamina com o jejum, ocorrerá algo semelhante aos efeitos a longo prazo de um vício: falta de satisfação, que costuma levar à depressão”.
Paradoxalmente, só fato de se considerar essa opção também aumenta o nível dessa molécula. “Reduzir o horário de conexão com as redes sociais, eliminar o consumo de drogas ou mudar a dieta com diretrizes mais saudáveis é altamente recomendado para uma melhor saúde do cérebro, maior concentração, um melhor senso de recompensa contra limites mais baixos de estímulos e um melhor senso de autoestima. Mas, por si só, a decisão de adotar esse pseudo jejum de dopaimina também estimula a produção de dopamina”, diz Marín, autor do livro Pon en Forma tu Cerebro (Editora Rock, sem tradução).
Os especialistas concordam em que, do ponto de vista neurocientífico, o jejum de dopamina é algo inimaginável. “São muitos os parâmetros fisiológicos e psíquicos que regulam sua produção”, afirma a neurocientista de modo taxativo. No entanto, o fato de o nível do neurotransmissor não poder ser controlado em muitas funções não impede a realização de ações conscientes para controlar as práticas que estimulam sua síntese. “Se pudermos reduzir a produção de dopamina nas áreas específicas do cérebro envolvidas nos vícios, é provável que nos sintamos mais capazes de controlar hábitos prejudiciais. Em algumas pesquisas em animais, já foi possível reduzir o desejo por doces”, lembra Marin.
O cientista propõe criar ambientes com menos estímulos à dopamina, como mudar a rotina diária da cerveja no fim do dia por meia hora de academia ou desligar os aparelhos eletrônicos durante o almoço. “As mudanças de contexto que envolvem a eliminação do uso de narcóticos beneficiam o cérebro a médio prazo, pela mesma razão que nos sentimos fisicamente melhor quando paramos de comer doces todos os dias”, ele insiste.
Mas a ideia de ter um desempenho melhor no trabalho graças ao jejum de dopamina é questionada pela relação positiva que existe entre a molécula, os estados de ânimo positivos e a criatividade. “Eles podem não ser adequados para determinadas tarefas, como a contabilidade, pois se cometem mais erros. Mas para a maioria das funções profissionais e pessoais, a dopamina seria muito recomendável”, diz Martin-Loeches. E em contextos mais românticos também, diz Marín: “Nem tudo é prejudicial na superprodução de dopamina. Também precisamos dela para nos apaixonarmos. Sem essa molécula maravilhosa, é muito provável que nunca sucumbiríamos ao amor”, conclui. E quem quer renunciar a esses deleites?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
A nova moda do Vale do Silício de abandonar o álcool, o sexo e as redes sociais para “reiniciar” o cérebro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU