A Constituição brasileira de 1988 e o Direito estão sob ataque cerrado. Esses ataques vem de todos os lados, incluindo de um que deveria zelar pela sua defesa: setores do próprio Judiciário. Juízes, ministros do Supremo Tribunal Federal e procuradores do Ministério Público invocam a “voz das ruas” e suas próprias opiniões morais e políticas ao justificar suas decisões que violam preceitos constitucionais fundamentais como a presunção de inocência, por exemplo. O diagnóstico é do professor de Direito Constitucional Lenio Streck que, ao analisar o atual cenário da democracia brasileira identifica uma situação paradoxal: ao mesmo tempo que o Direito e o sistema de justiça do país estão fracassando, é preciso apostar no Direito e na defesa da Constituição como caminho para superação da crise que ameaça a sobrevivência da própria democracia.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul 21, 05-08-2019.
“Nós chegamos a esse ponto porque a aplicação do Direito cedeu muito às opiniões pessoais e aos impulsos morais. A formação dos quadros da magistratura e do Ministério Público no Brasil é conservadora. Então, se a Constituição é progressista e o aplicador é conservador em termos políticos e de costumes, o que esperar?”, diz Streck em entrevista ao Sul21. Ele também enxerga um erro cometido pela esquerda no período pós-redemocratização:
“A esquerda errou porque desdenhou do Direito, seguindo uma certa tradição marxista que considera o Direito uma superestrutura do Estado burguês. Ao superdimensionar a política, a esquerda, explícita ou implicitamente, acabou meio que deixando o Direito de lado e não se preocupou, por exemplo, em formar quadros jurídicos. Além disso, nas nomeações para os tribunais, não se preocupou em colocar efetivamente pessoas que compreendessem, de fato, a importância da Constituição”.
Outro problema que precisa ser enfrentado, diz ainda, está localizado nas faculdades de Direito: “Numa epidemia, você busca o paciente zero. Ao fazer o diagnóstico do estado do Direito hoje, o equivalente do paciente zero são as faculdades de Direito. Ministros, juízes, promotores, rábulas, advogados, estagiários, bacharéis dos mais variados (tem cerca de um milhão e meio no Brasil), todos eles vieram de um lugar comum: a faculdade. Qual é o problema? As faculdades vão mal. O ensino jurídico vai muito mal porque ele não ensina direito o Direito”.
Você tem alertado para um tema, em seus artigos e falas públicas, que é o fenômeno de se colocar a moral acima do Direito. Quais são exatamente os riscos que isso traz para a democracia e para o sistema de justiça como um todo. Esse é um fenômeno recente no Brasil ou tem origens mais antigas?
O ponto central neste debate é trabalhar com uma coisa que se chama autonomia do Direito. Até que ponto, na democracia, conquistada a duras penas, a Constituição, que acaba sendo esse espaço em que colocamos todos os nossos desacordos, tem condições de segurar as diversas correntes, discussões e interesses contrariados e contraditórios que existem na sociedade? A grande questão é: na democracia, o Direito é cabresteado pela política e pela moral, portanto pelas opiniões pessoais de juízes e tribunais, ou o Direito consegue fazer com que a política entre nos eixos e, portanto, também aqueles que aplicam o próprio Direito, os juízes? Essa é a grande resposta que precisa ser dada e o Brasil não deu uma boa resposta para isso.
Você me perguntou como tudo isso começa. Eu diria que a grande discussão começa exatamente com o papel da Constituição. Parece que nós não compreendemos bem o papel da Constituição. Temos uma Constituição com todas as condições de estabelecer o Estado social, diminuição da pobreza, tributação progressiva onde quem ganha mais paga mais e outras questões que estão no seu artigo terceiro. O que nos interessa, fundamentalmente, neste momento de crise é a questão das garantias, dos direitos, das garantias processuais, envolvendo aí os artigos quinto e sexto. Os ataques à Constituição vêm de todos os lados: reforma previdenciária, reforma trabalhista, venda de patrimônio público, retirando as condições do Estado acumular parta distribuir, numa perspectiva de Estado social, além dos ataques às liberdades.
Esse é o ponto central. O Direito consegue segurar isso? Pelo jeito, podemos dizer que o Direito está fracassando ou fracassou, na medida em que nós não conseguimos nem assegurar e ter um certo consenso de que os juízes têm que ser imparciais, de que o juiz Sergio Moro, por exemplo, que julgou os casos mais importantes do Brasil, tem que ser imparcial. Vemos hoje gente do Direito que acha que o juiz não precisa ser imparcial e que é normal que ele faça essa conjuminação com a acusação. Imagina se fosse o contrário? Se o juiz combinasse com o advogado e depois absolvesse o réu? Esse juiz seria expulso do Brasil. Mas como nesse caso específico se trabalhou com uma perspectiva com determinados fins, aí temos um problema que chamamos hoje de lawfare, que é o uso político do Direito contra os inimigos.
A questão é: aquilo que um juiz acha sobre determinados políticos, aquilo que um procurador da República acha sobre o Direito, sobre a Constituição ou sobre corrupção pode valer mais do que a Constituição que assegura garantias para todos? Toda opinião política e econômica envolve um juízo moral. Quando eu digo que juízos morais não podem valer mais do que o Direito estou dizendo que as preferências pessoais ou políticas de um juiz ou de um procurador não podem valer mais do que o Direito. Se eles valem mais, então o Direito não existe mais.
Há quem diga que a esquerda e o campo progressista em geral cometeram alguns erros em relação ao tema do sistema de justiça como um todo, não prestando a atenção como deveriam em alguns temas no processo constituinte de 1988. Como avalia essa questão?
A Constituição brasileira de 1988 é a mais humanista, mais garantista e mais social do mundo. O mundo do segundo pós-guerra não conseguiu fazer uma Constituição igual à nossa. Nem os alemães conseguiram fazer. O erro não está na Constituinte nem na Constituição, mas sim na aplicação. Aí sim, cometemos vários erros. Todos cometemos erros. Antes da Constituição não tínhamos nada, no sentido de Direito. A “Constituição” que estava em vigor era a dos militares, feita a partir do AI-5, da Emenda Constitucional n.2, de 1969.
Um conjunto de juristas progressistas, ou de esquerda, como queiram chamar, trabalhava com a ideia de que precisávamos do juiz. Isso envolvia o debate do Direito Alternativo na época. Se o Estado é mau e o Direito é ruim, preciso apostar no aplicador. Essa era a ideia básica. Quando vem a Constituição, tenho uma lei boa e um Estado com perspectiva de fazer uma sociedade melhor. Eu tenho que confiar em quem neste caso? Tenho que confiar na Constituição. O quadro inverteu-se, mas o Direito não fez essa inversão. Aconteceu algo parecido na Alemanha em 1919. Os juízes não aplicaram a nova Constituição. Qual foi o erro da esquerda? A esquerda errou porque desdenhou do Direito, seguindo uma certa tradição marxista que considera o Direito uma superestrutura do Estado burguês.
Acho que essa leitura marxiana sobre o Direito é equivocada. Marx nunca desdenhou do Direito. Não sei qual a melhor expressão para definir o erro da esquerda. Talvez não seja desdenhar do Direito, mas sim superdimensionar a política, como se a política andasse sozinha sem o Direito. Todas as democracias do segundo pós-guerra se deram conta que era necessário ter uma Constituição que firmasse com cláusulas pétreas a própria democracia. Luigi Ferrajoli, que é um autor liberal conservador, diz que democracia se faz no Direito e pelo Direito. Garantismo é isso. Ao superdimensionar a política, a esquerda, explícita ou implicitamente, acabou meio que deixando o Direito de lado e não se preocupou, por exemplo, em formar quadros jurídicos. Além disso, nas nomeações para os tribunais, não se preocupou em colocar efetivamente pessoas que compreendessem, de fato, a importância da Constituição.
Voltamos aqui ao início da tua pergunta. Um grau de ortodoxia na aplicação da Constituição e das garantias teria impedido que chegássemos a esse ponto. Nós chegamos a esse ponto porque a aplicação do Direito cedeu muito às opiniões pessoais e aos impulsos morais. A formação dos quadros da magistratura e do Ministério Público no Brasil é conservadora. Então, se a Constituição é progressista e o aplicador é conservador em termos políticos e de costumes, o que esperar? O jurista de uma democracia deixaria de lado as suas opiniões pessoais e aplicaria a estrutura que é a Constituição. Os governos progressistas não se deram conta disso. Um jurista, no sentido de uma democracia garantista, vai dizer uma coisa simples: a voz das ruas não vale mais do que o ronco da Constituição.
Quando alguém diz que a voz das ruas está dizendo algo numa democracia, essa voz das ruas é de que hora e de que dia mesmo? Alguém tem um medidor disso? Numa democracia, a voz das ruas tem que ceder à voz da Constituição . Às vezes, a Constituição nos desagrada, mas esse é o risco. Talvez, a comunidade jurídica brasileira não tenha conseguido compreender isso e assumido esse risco, nem os governos de esquerda.
Você fez uma referência ao direito alternativo. Ele se enquadra também nesta critica que faz da relação que a esquerda mantém com o Direito?
É preciso fazer um recorte histórico aí. Ele era importante durante o regime autoritário. O direito alternativo teve duas vertentes. Ele veio, de um lado, das correntes realistas escandinavas e americanas, cujo lema é “o direito é aquilo que os tribunais dizem que é”. Por isso é que se aposta na figura do juiz. O juiz faz a lei. A outra vertente tem um viés mais marxista no sentido de achar que as estruturas sociais têm que ser levadas em conta e devem valer mais do que o direito injusto. Haveria ainda uma terceira teoria crítica que é a do jusnaturalismo de combate, digamos assim, que acha que o Direito, para existir, tem que ser justo. Logo, um direito injusto não é Direito. O que essas três vertentes têm em comum é apostar no protagonismo judicial. Aí, você precisa ter juízes progressistas. Você sai procurando, nas brechas da lei, um modo de tentar driblar uma estrutura injusta como a que existia, por exemplo, antes de 1988.
A partir de 1988, não era mais importante ter direitos alternativos, pois passamos a ter um direito expresso pela Constituição. Esse é o ponto. O direito alternativo e correntes afins tiveram uma importância fundamental, mas no momento em que veio a Constituição, o foco mudou. Nós demoramos um pouco no Brasil a encontrar o eixo. Há um texto de 1991, se não me engano, do Clemerson Cleve, onde ele chama a atenção de toda a comunidade jurídica que, a partir de 1988, a Constituição era o foco. Agora é a Constituição, afirmou. O que ele estava dizendo é que não era mais importante apostar no juiz ou invocar o social. O social mudou para a Constituição. Não era mais preciso olhar para baixo e tirar da raiz da sociedade aquilo que motiva como jurista. Eu olho pra cima agora e tenho isso expresso na estrutura constitucional.
Levamos um tempo para entender essa questão e eu me incluo nisso. Todos nós cometemos erros. Talvez eu tenha conseguido, já no início dos anos 90, me dar conta disso e comecei a escrever sobre isso desde então. Tenho assumido uma postura jurássica aí. Sou conhecido como um dos dinossauros do Direito. Muito dinossauro. Aliás, o dinossauro mais antigo do mundo foi descoberto na minha terra, em Agudo. Ele se chama Bagualosaurus agudoensis e tem 260 milhões de anos. Foi encontrado perto da minha casa. Eu tenho sangue de dinossauro mesmo. Tenho escrito várias vezes sobre isso. Nos faltou ortodoxia. Eu continuo, de forma otimista, nesta dificuldade toda que estamos enfrentando, achando que temos chance via Direito e via instituições de segurar esse touro a unha.
Essa era justamente a minha próxima pergunta. Como avalia as possibilidades do sistema de justiça enfrentar esse cenário e manter a democracia no país?
Eu acho que é possível, embora o estado de exceção esteja sempre rondando. O estado de exceção nos ronda, a todo momento. Todos os dias ele faz um pequeno avanço. Um exemplo disso é o que está acontecendo com a divulgação dos diálogos entre procuradores e o ex-juiz Sergio Moro. Olhe o modo como o establishment enfrentou esse tema, prendendo, querendo destruir a prova. Agora, veja a importância do Direito. É pelo Supremo Tribunal Federal que se busca preservar essas provas. O Direito está neste processo de sístole e diástole. Ao mesmo tempo ele é usado como lawfare, mas serve também para libertar, para segurar. Há essa contradição toda no Direito brasileiro. Por isso que sou um otimista em relação a esse tema. Quero segurar e me segurar no Direito para pegar esse touro à unha. A gente enfrenta os autoritarismos com a mão no Direito.
Não sei como isso vai terminar. A gente nunca sabe. Mas há pequenos avanços como, por exemplo, agora, a decisão do Supremo de preservar essas provas envolvendo as mensagens vazadas e impedir que sejam destruídas. Eu mesmo participei de um manifesto agora que já reúne quase mil advogados, que é o grupo Prerrogativas, pedindo o afastamento do ministro da Justiça, pelo menos nesta questão. Se ele é vitima, ele não pode conhecer as provas. Veja como o Direito é importante. O Conselho Nacional do Ministério Público está abrindo investigações sobre a atuação do procurador Deltan Dallagnol. O Supremo Tribunal vai ter que examinar a suspeição do Sergio Moro nos autos daquele habeas corpus que foi pedido no caso Lula. Tudo isso é Direito também. Não sei se a gente sabe fazer direito o Direito. Esse é o ponto.
Essa situação está em aberto. O Supremo dá no varejo mas deve no atacado. O varejo é distribuir habeas corpus ou decisões como essa que impediu que a Funai passasse para o controle do Ministério da Agricultura. Isso aí, pra mim, ainda é decisão de varejo. A decisão de atacado diz respeito às liberdades públicas como é o caso da presunção da inocência. Esse é o grande marco, na minha opinião. Eu dividiria, assim, em varejo e atacado a resposta à tua pergunta sobre a capacidade do sistema dar uma resposta democrática. No varejo nós lutamos todos os dias. O problema é o atacado.
Há dois temas hoje que vão marcar o nosso futuro. Uma é qual a resposta que o Supremo vai dar sobre a questão da parcialidade ou imparcialidade do Moro. A outra é a presunção da inocência. A partir disso nós vamos, talvez, ter que modificar os códigos e vamos ter que resolver também o que vamos dizer para os alunos nas faculdades de Direito.
Qual tua avaliação sobre o tipo de formação que é dado hoje nas faculdades de Direito?
De algum lugar essa gente saiu. O cara que te julga ou te acusa amanhã saiu de um lugar. Vamos tomar um exemplo da medicina. Numa epidemia, você busca o paciente zero. Ao fazer o diagnóstico do estado do Direito hoje, o equivalente do paciente zero são as faculdades de Direito. Ministros, juízes, promotores, rábulas, advogados, estagiários, bacharéis dos mais variados (tem cerca de um milhão e meio no Brasil), todos eles vieram de um lugar comum: a faculdade. Qual é o problema? As faculdades vão mal. O ensino jurídico vai muito mal porque ele não ensina direito o Direito. Parece paradoxal isso. O que ele ensina é uma duvidosa teoria política do poder. Não se discute o Direito mas como ele deve ou deveria ser na opinião pessoal do professor. Além disso se descrevem simplesmente decisões dos tribunais, ficando numa espécie de glosa. Neste sentido, o Direito ajudou a produzir essa onda reacionária. Há duas frases fortes que tenho utilizado. Uma é “Se os juristas fossem médicos, eles fariam passeatas contra antibióticos e vacinas”. A segunda: “Defender o Direito e a legalidade hoje é uma atitude revolucionária”. Dar aulas de Direito Constitucional de forma ortodoxa é quase ser subversivo. Nós temos que voltar ao paciente zero. Vai demorar.
Por que se os juristas fossem médicos, eles fariam passeatas contra antibióticos e vacinas? Poderia falar um pouco mais sobre essa comparação?
Você já viu um medico ser contra a vacina ou o antibiótico? Se os médicos não podem ser contra a vacina, antibióticos ou cirurgias sofisticadas, por que razão os juristas podem sair por aí dizendo que há direitos demais, que a Constituição é ruim, etc.? Imagina ter um manifesto dos médicos contra a vacina? No Direito já se tem, praticamente, manifestos de juristas contra a Constituição. Isso é algo completamente autofágico.
Há alguns dias fui dar uma conferência no Rio, onde o tema era “a Justiça que queremos”. Ao invés de falar dos modelos de juízes, eu falei dos modelos de professores. Creio que essa é uma questão fundamental. Que tipo de professores queremos para a sala de aula? É o professor que acha que a Faculdade de Direito é que nem cursinho de preparação para concurso público? É o professor que acredita que o Direito é como ele acha que é? Ou é um professor que vai lecionar o Direito conforme o que está estabelecido na Constituição?
Numa entrevista que realizei com o ministro Marco Aurélio Mello, em 2016, ele disse que o Supremo era composto por onze ilhas. Se cada ministro é uma ilha isso não representa um obstáculo adicional para que o Supremo, como guardião da Constituição, tome decisões em defesa da ordem democrática que está sob ataque?
O Supremo é o guardião da Constituição, contra tudo e contra todos. Ele tem que resistir a essa história da voz das ruas. Na Odisséia, Ulisses pede para ser amarrado no mastro do barco, para não sucumbir ao canto das sereias e se atirar nas águas. A chamada voz das ruas é que nem o canto das sereias e o STF tem que resistir a ela.
De novo aparece o problema que citei antes. O Direito não pode depender do aplicador. Ou temos um modo de fazer com que a decisão jurídica seja criteriosa ou vamos sempre depender da boa vontade de quem julga. Bons juízes dariam boas decisões. Bons juízes pra quem? Eu prefiro depender do Direito e não da opinião pessoal que o juiz tem sobre o Direito.
Agora, se o Supremo não tem um mínimo de consenso e for composto de onze ilhas, você precisa ficar sempre torcendo para que naquele dia aquele ministro ou aquela ministra esteja de bem com a vida. Você sempre vai depender da soma das onze ilhas para ver de que lado elas vão formar um arquipélago. E às vezes uma ilha passa para o outro lado. No caso da presunção da inocência, houve uma alteração. A Rosa Weber foi para um lado e Gilmar Mendes foi para o outro. Neste momento a gente não sabe qual é o arquipélago maior.
Você acredita, então, que a decisão relativa à presunção da inocência ainda está em aberto no Supremo?
Sim, está em aberto. E ela é, repito, o ponto fundamental para o futuro, para sabermos o que queremos do Direito.
Olhando um pouco para o cenário político do país, há uma série de direitos e instituições democráticas que estão sendo atacadas. Um dos mais recentes alvos desses ataques são as universidades públicas, que estão sendo sucateadas. Como você avalia o risco de um fechamento político e de violações de liberdades ainda maior nos próximos meses?
Sempre há esse risco. Voltamos ao tema da ortodoxia do Direito. A autonomia universitária está na Constituição. Quem assegura a autonomia universitária são, de um lado, os professores e o seu agir cotidiano e, de outro, uma estrutura jurídica. Na hora “h” é preciso apelar para o Supremo Tribunal. De novo você vai depender do Direito. Na democracia, você vai sempre depender do Direito. Se o Direito for mal, a democracia vai mal. Isso é matemático. Quanto mais o Direito tem um grau de autonomia preservado, mais democracia temos. Quanto mais o Direito é predado pela política e pela moral, menos democracia você tem.
O sistema de presidencialismo de coalizão brasileiro tem conseqüências relativas ao próprio funcionamento do Judiciário e de suas instituições. O Supremo é tão demandado hoje porque esse presidencialismo de coalizão gera conflitos que acabam deixando o Supremo mais forte. Os europeus foram muito espertos e criaram um tribunal constitucional que fica fora da relação dos três poderes. O tribunal constitucional não faz parte do Judiciário e funciona muito bem.
Há uma grande desconfiança, hoje, no campo progressista e entre os grupos que estão sendo alvo de violações de direitos e liberdades, em relação ao Judiciário, em função de tudo o que vem acontecendo no Brasil nos últimos anos. A existência dessa desconfiança não representa uma dificuldade adicional para convencer as pessoas que a defesa do Direito é uma condição fundamental para enfrentar a atual conjuntura de violações de direitos e de ataques às liberdades?
Tens toda razão. Subestimar o Direito é ruim e superestimar a luta política pode ser ruim também. A grandes questão é conseguir um equilíbrio entre as duas coisas. Ao mesmo tempo, eu tenho pautas políticas importantes, mas não posso permitir que as pautas políticas sejam demasiadamente fragmentadas, perdendo de vista o que é fundamental. Hoje, se formos fazer uma passeata em defesa da presunção de inocência, não juntamos dez mil. Já em relação a outros temas, podemos juntar milhões. Esse é um enigma que precisamos resolver.