17 Julho 2019
Cortes no questionário do Censo 2020 podem trazer perdas para pesquisas e para formulação de políticas públicas na Seguridade Social e na educação, afirmam especialistas.
A reportagem é de André Antunes, publicado por EPSJV/Fiocruz, 10-07-2019.
O questionário que será aplicado no Censo Demográfico 2020 foi divulgado na semana passada, em meio a um embate entre o corpo técnico e a direção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que vem se desenrolando desde o início do ano. Indicada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a nova presidente do instituto, Susana Guerra, que tomou posse no final de fevereiro, recebeu a tarefa de reduzir em 25% o orçamento do Censo, previsto inicialmente em R$ 3,2 bilhões. A missão foi dada ao economista Ricardo Paes de Barros, do Insper, e desagradou o corpo técnico do IBGE. Desde o anúncio do corte, a Associação dos Trabalhadores do IBGE (Assibge-SN) vinha alertando que uma diminuição no questionário poderia causar a quebra de séries históricas de dados sobre a população brasileira.
De fato, o questionário divulgado pela direção do IBGE tem cortes no número de perguntas em comparação ao censo realizado em 2010. Tanto o questionário básico, aplicado a 90% dos mais de 70 milhões de domicílios brasileiros, quanto o de amostra – mais completo, aplicado a 10% dos domicílios em cada município – sofreram redução. O questionário básico foi reduzido de 34 perguntas para 26. Já o de amostra, que em 2010 tinha 112 perguntas, passará a ter apenas 76 no censo do ano que vem.
Durante audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa na Câmara dos Deputados no dia 4 de julho, Susana Guerra argumentou que os cortes no questionário não têm relação com a redução no orçamento do censo. Segundo ela, as mudanças foram realizadas com o objetivo de reduzir o tempo gasto pelo recenseador durante a visita domiciliar. A estimativa é de que a duração da entrevista para o questionário básico caia de sete para quatro minutos, e a feita para o questionário de amostra seja reduzida de 24 para 19 minutos. “Com isso conseguimos diminuir o número de recenseadores e remunerá-los melhor”, afirmou Susana.
A presidência do IBGE tem defendido que os itens cortados do censo são informações que podem ser coletadas em pesquisas por amostragem, como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad Contínua) e por registros administrativos como os da Polícia Federal.
Entre os cortes estão questões referentes a temas como moradia, educação, trabalho, rendimento e emigração internacional, entre outros.
A Assibge-SN criticou as mudanças, que segundo ela foram feitas sem a participação do corpo técnico envolvido na elaboração do questionário, que inclui, além de servidores do IBGE, pesquisadores de universidades e centros de pesquisa, integrantes de movimentos sociais e gestores. Em nota, a entidade que reúne os trabalhadores do instituto alertou para o risco de um “apagão estatístico” na caracterização demográfica do país, com a quebra da série histórica de dados e informações que servem para captar a realidade socioeconômica brasileira.
“A formulação e avaliação de políticas públicas ao nível municipal sofrerá um duro golpe, com consequências para a população brasileira e a administração pública para os próximos dez anos. Menor capacidade de diagnóstico socioeconômico, de qualidade na estimação populacional e perda irreparável no desenho de programas públicos”, alertou a nota.
Um dos principais pontos criticados pela Assibge foi a exclusão das perguntas sobre emigração internacional do questionário básico e da amostra. Além disso, segundo Dione de Oliveira, da Executiva Nacional da Assibge, o questionário básico do Censo 2020 não incorporou questões sobre migração interna, como propunham os técnicos do instituto envolvidos na elaboração do questionário, no que seria uma ampliação do questionário básico aplicado em 2010. Dessa forma, apenas o questionário de amostra vai incluir perguntas sobre o tema, como foi feito no censo realizado há uma década. “Foram feitos estudos ao longo da década que indicaram que para a mensuração adequada desse movimento que impacta na estimativa da população seria muito positivo se a migração tivesse entrado no questionário básico, o que não aconteceu”, lamenta Dione.
Segundo a associação, a exclusão pode gerar distorções nas projeções da população que reside no país e que são realizadas entre um censo e outro, em que uma das variáveis é a imigração. As projeções populacionais servem de base para o cálculo dos repasses federais para fundos como o de Participação dos Municípios (FPM) e dos Estados (FPE) e estão entre os principais focos de judicialização em torno do censo, segundo Dione. “Acontece muito de um município mudar de patamar de população e acabar perdendo receita do fundo. Quando é assim, eles entram na Justiça contra o IBGE. A tendência é que isso se agrave”, avalia ela. Um quinto do FPM e do FPE são destinados para o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), principal fonte de recursos para esse nível de ensino no Brasil.
Foram feitas alterações também nos quesitos que medem o impacto de políticas de redução da pobreza e da desigualdade. O quesito rendimento no questionário básico será aplicado apenas ao chamado “responsável” pelo domicílio. Em 2010, todos os moradores acima de dez anos informavam seus rendimentos.
No bloco sobre os rendimentos de outras fontes no questionário da amostra, o que no censo de 2010 foi dividido em quatro perguntas passa a ser uma só no censo de 2020. Dessa forma, deixa de ser possível identificar a fonte desse rendimento: se é de aposentadoria, de programas como o Bolsa-Família, de benefícios da Previdência Social, como o seguro-desemprego e Benefício de Prestação Continuada (BPC), ou de aplicações financeiras e aluguel. “Estudos de desigualdade intramunicipais ficarão mais frágeis sem uma medição adequada da renda da população”, alertou a nota da Assibge.
O questionário da amostra também deixa de investigar a presença de bens como televisão, telefone, geladeira, motocicleta e automóvel nos domicílios, restando apenas perguntas sobre a presença de máquina de lavar e acesso à internet. “Coletar essas informações ao nível de setor censitário e na zona rural é fundamental para identificação dos bolsões de iniquidades sociais nos municípios, sobretudo nesse momento em que há indicações de que há um número crescente de famílias voltando a usar lenha para preparação de alimentos”, destacou a nota.
Outra perda apontada pelo sindicato dos trabalhadores do IBGE tem relação ao cálculo do déficit habitacional. Isso porque o questionário básico do censo deixará de identificar os domicílios cujos moradores pagam aluguel. Já o questionário da amostra vai deixar de perguntar o valor do aluguel pago, como em 2010. O ônus excessivo com aluguel (ou seja, as famílias com rendimento de até três salários mínimos e gasto superior a 30% da renda familiar) corresponde atualmente a mais de metade do déficit habitacional no país, segundo os últimos dados divulgados pela Fundação João Pinheiro, referentes a 2018.
Também não será possível identificar, no caso dos moradores que frequentam creche, escola ou ensino superior, se a rede de ensino é privada ou pública. “Esse quesito é fundamental para caracterizar o estudante e a rede de ensino que ele frequenta, além de identificar locais (municípios, bairros) onde há necessidade de ampliar a rede pública”, apontou a nota da Assibge.
Pesquisadores ouvidos pelo Portal EPSJV/Fiocruz veem riscos de que as mudanças representem um retrocesso para as áreas de seguridade social e educação. Professora-pesquisadora da EPSJV/Fiocruz, Martha Sharapin destaca que, embora não haja muitas questões específicas sobre saúde no censo, ele é fundamental no cálculo de indicadores como a cobertura vacinal e as taxas de incidência e prevalência de vários agravos. “Os dados do censo são, também, utilizados para o pagamento de vários procedimentos realizados pelo Sistema Único de Saúde, além de permitir conhecer as condições de vida da população e a identificação de grupos mais vulneráveis que necessitam de políticas mais específicas de equidade para garantia de seus direitos”, explica. Para ela, os cortes anunciados no questionário vão dificultar o cálculo das projeções populacionais, bem como a construção de um perfil social e econômico da população brasileira.
A demógrafa Dalia Romero, pesquisadora do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica (Icict/Fiocruz), concorda. Segundo ela, os cortes nos quesitos sobre migração e emigração podem gerar distorções nas projeções populacionais e causar um efeito em cascata sobre vários levantamentos na área da saúde que têm como base a pesquisa. “O censo do IBGE é a matriz para calcular as amostras de qualquer inquérito de saúde, seja no âmbito da segurança alimentar, da Política Nacional de Saúde, etc. Para isso é preciso ter muita clareza de qual é a população dos municípios. Se você elimina uma informação fundamental para a estimativa populacional nossa hipótese é que vai ter muito mais erros no cálculo”, pontua.
A pesquisadora também critica o fato de que apenas o rendimento da pessoa responsável pelo domicílio será auferido no Censo 2020. “Na área da saúde a gente precisa estudar indicadores de pobreza e precisamos da informação da renda de cada integrante do domicilio. Um idoso pode até ganhar mais e não ser o chefe do domicilio, porque o chefe é o marido da filha, por exemplo. O idoso pode ter ido morar na sua casa, e você vai ajudar a cuidar dele e ele vai te dar uma ajuda econômica, mas você é o chefe. Isso é um exemplo da dificuldade para definir quem é a pessoa responsável no domicílio”, pondera Dalia.
Segundo ela, o exemplo dos idosos é importante para analisar o impacto de outra mudança no censo, que foi o corte das perguntas que permitiam, no questionário da amostra, identificar se os moradores de determinado domicílio recebiam benefícios como o BPC e o Bolsa-Família.
No questionário do Censo 2020 divulgado na semana passada, vários benefícios ligados a programas sociais foram agrupados em um mesmo quesito, que reúne também itens como aposentadoria, aluguel e rendimentos com aplicações financeiras. “A partir da segunda década dos anos 2000, aumentou muito a cobertura do Benefício de Prestação Continuada. Temos trabalhos que mostram que os domicílios onde há idosos que recebem BPC são menos pobres. E como que a gente soube disso? Com o censo. É nossa única fonte. É algo que não vamos ter mais como saber”, lamenta Dalia.
A justificativa dada pela direção do IBGE, de que as informações cortadas do censo podem ser obtidas em outras fontes, não convence a pesquisadora da Fiocruz. “O que eles argumentam é que o que foi cortado pode ser obtido em inquéritos como a PNAD [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio]. Mas nenhum inquérito vai te dar um dado municipal, que é onde está a principal pobreza do país. Você nunca vai ter essa informação em um inquérito domiciliar”, afirma.
Além disso, destaca a pesquisadora, é importante do ponto de vista das pesquisas que trabalham com dados do censo reunir em uma mesma base de dados o máximo possível de informações sobre a população. “Se você fraciona as informações por inquéritos diferentes, não vai poder traçar o perfil da população em um território, porque são diferentes fontes de informação que muitas vezes não conversam. Estamos caminhando para ter um país desinformado, e a desinformação não colabora com a saúde pública brasileira”, ressalta.
Do ponto de vista da política educacional, os cortes também geram preocupação. Segundo a coordenadora do Laboratório de Dados Educacionais da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Gabriela Schneider, o censo é importante, por exemplo, para calcular dados como a média dos anos de estudo da população e a quantidade de gente fora da escola, que o censo ainda permite cotejar com a renda. “Graças ao censo a gente consegue ter um desenho de acesso e qualidade, para ajudar a pensar e a avaliar a política educacional, o quanto ela está, ou não, chegando na população nos municípios”, explica a pesquisadora.
O monitoramento das metas do Plano Nacional de Educação (PNE), cuja vigência vai até 2024, depende da precisão dos dados do censo, de acordo com Gabriela. Ela dá o exemplo da educação infantil, que seria um importante gargalo. “O PNE prevê que 50% das crianças de zero a três anos estejam na creche até 2024. E como é que você faz isso se não sabe nem quantas crianças há no município? Não dá para pensar política pública sem a utilização desses dados. E só o censo do IBGE permite chegar ao âmbito municipal”, afirma Gabriela.
Para ela, o corte de quesitos que dizem respeito à renda também é um problema para a educação. “Pesquisadores têm feito muitos cotejamentos em relação à renda e ao acesso à educação, e o que a gente percebe é que a população que menos tem acesso é também a mais pobre. No censo anterior havia um detalhamento maior com relação à renda, aos benefícios de programas sociais. Sem isso não será possível fazer análises mais complexas sobre essa relação”, alerta.
A pesquisadora da UFPR considera que a quebra de séries históricas no censo é uma perda grave para os cientistas e também para os gestores que trabalham com os dados do censo. “Para quem faz estudos históricos é um problema, de repente, parar de fazer uma pergunta. Essa é uma das principais bases para pensar política pública no Brasil. Todo mundo fala que a gente precisa fazer políticas eficientes, mas para isso precisamos ter noção de como é a população, quais são suas características, qual é sua realidade. Será que o impacto financeiro é tão alto que justifique esses cortes?”, questiona Gabriela.
A previsão é de que o questionário divulgado na semana passada seja aplicado no Censo Experimental, que acontece na cidade de Poços de Caldas (MG) entre setembro e outubro. O Censo 2020 está previsto para começar em setembro do ano que vem e deve levar três meses para ser concluído. Mas ainda há incertezas.
Segundo Dione de Oliveira, a categoria deve continuar mobilizada para tentar garantir que o Censo 2020 aconteça conforme o planejado pelo corpo técnico do IBGE. “Não se pode desconsiderar todo um projeto que é de, pelo menos, 2016, para fazer uma coisa completamente nova. Não dá para mudar metodologias tão perto da operação censitária, que tem por definição um período de maturação longo. É uma irresponsabilidade”, critica.
Ainda de acordo com a representante da Assibge-SN, um dos encaminhamentos da audiência pública realizada no dia 4 para debater os cortes no questionário foi o de que a Comissão em Defesa da Pessoa Idosa apresentaria uma emenda durante a votação da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para garantir o orçamento inicialmente previsto para o Censo 2020, em torno de R$ 3,2 bi.
Já o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) informou, após a realização da audiência, que acionaria o Ministério Público Federal (MPF) para impedir os cortes no orçamento. Em maio, o MPF havia enviado ofício à presidência do IBGE solicitando informações sobre o processo de elaboração do questionário.
De acordo com Dione, também há incerteza com relação ao conteúdo de uma pesquisa que ocorre paralelamente ao censo e investiga as condições do entorno da moradia, como pavimentação, arborização, acessibilidade, mobilidade urbana, iluminação, entre outras. “A pesquisa do entorno é um conjunto de características que são importantes para o planejamento da cidade, para a questão urbana. Ela tinha sido cortada, mas com o nosso movimento e a pressão dos técnicos, ela voltou. A gente só não tem certeza do que vai ser coletado, efetivamente”, assinala Dione.
O Portal EPSJV/Fiocruz enviou questionamentos apresentados pelos pesquisadores à assessoria de imprensa do IBGE, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem.
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Cortes no questionário do Censo 2020. Rumo a um apagão estatístico? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU