"O "pensamento aberto" do jesuíta Francisco significa uma dessacralização do poder, incluindo o poder político. É a recusa a qualquer maniqueísmo político em favor de um ecumenismo intraeclesial, mas também inter-religioso e político, que exige que o Papa dialogue com todos e com qualquer um, sem se vincular a ninguém."
A opinião é do historiador italiano Massimo Faggioli, professor da Villanova University, nos EUA, em artigo publicado por Huffington Post, 04-07-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Papa Francisco concedeu uma audiência a Vladimir Putin no Vaticano em 4 de julho, o dia da independência dos EUA - uma data decidida não em base ao calendário dos feriados nos EUA, mas em coincidência com os encontros com o presidente do Conselho Conte e o presidente Mattarella.
A visita estava marcada para o mesmo dia em que o presidente Trump celebrava a festa, pela primeira vez, com um desfile militar de armas pesadas em Washington, num estilo vagamente soviético: como para ressaltar o vínculo especial entre os ocupantes da Casa Branca e do Kremlin hoje.
Mas ao contrário de Trump, Putin conhece muito bem o caminho para o Vaticano, apesar de que ele sempre chegue com bastante atraso em relação ao horário marcado. É sua sexta visita com um Papa: duas com João Paulo II, uma com Bento XVI e outras três com Francisco (novembro de 2013, junho de 2015 e julho de 2019). Trump esteve no Vaticano apenas uma vez, em maio de 2017, em uma viagem que acompanhava as peregrinações políticas à Arábia Saudita e à Israel, e precedia a passagem em Bruxelas para a cúpula da Otan.
O breve comunicado da Sala de Imprensa da Santa Sé no final da audiência citou importantes questões para a vida da Igreja Católica na Rússia, a questão ecológica e "algumas temáticas atuais internacionais, com especial referência à Síria, à Ucrânia e à Venezuela”.
O Vaticano falou com Putin de três cenários continentais - Europa, Oriente Médio e América Latina - como poderia ter feito com os Estados Unidos até poucos anos atrás. Numa espécie de inversão de papéis em relação aos pontificados anteriores, a Rússia é mais importante para a geopolítica do Vaticano hoje do que os Estados Unidos: Ucrânia, o Oriente Médio (Síria, mas também as tensões entre os EUA e o Irã), as relações com a ortodoxia e o sonho de uma viagem apostólica a Moscou.
O Papa Francisco fala com todos: Donald Trump, Vladimir Putin, Nicolas Maduro e o presidente do Irã Rouhani, Raul Castro e os generais da junta de Mianmar, o Grande Imã Ahmed el-Tayeb da Al-Azhar no Cairo e o príncipe herdeiro de Abu Dhabi, xeque Mohammed bin Zayed al-Nahyan.
O "pensamento aberto" do jesuíta Francisco significa uma dessacralização do poder, incluindo o poder político. É a recusa a qualquer maniqueísmo político em favor de um ecumenismo intraeclesial, mas também inter-religioso e político, que exige que o Papa dialogue com todos e com qualquer um, sem se vincular a ninguém.
Isso também significa evitar forçar a Igreja a fazer alianças estratégicas com protagonistas políticos ou nações, incluindo aqueles que pensam ser os aliados naturais do cristianismo e da Igreja. Francisco rejeita tanto a teoria do "choque de civilizações" quanto a ideia da Igreja como um refúgio ideológico do choque entre o retorno de Deus e das religiões no cenário mundial e a modernidade secular no hemisfério ocidental.
Isso expõe o papado de Francisco a riscos políticos. Tanto a involução autoritária da democracia russa como a conversão da China comunista a um capitalismo de estado proporcionam uma religião controlada pelo Estado: essa conversão dos inimigos ideológicos e geopolíticos históricos do século XX oferece ao papado hoje oportunidades de diálogo novas (como o acordo histórico com a China em setembro de 2018), mas também corre o risco de ser manipulado, fato do qual no Vaticano estão obviamente cientes.
Chegaram nos últimos meses, por exemplo, através da revista jesuíta La Civiltà Cattolica, indicações claras sobre o modo como o papado de Francisco percebe com preocupação a ameaça populista à Europa que também se alimenta de ideologias nacional-religiosas provenientes da Rússia.
Apesar da invasão da Ucrânia e das consequências desse conflito também no nível eclesial para católicos e ortodoxos, Francisco garante abertura para a Rússia (como testemunham as três audiências com Putin e o primeiro, extraordinário encontro com o Patriarca de Moscou Kirill em Cuba em fevereiro de 2016). Isso revela a complexidade da situação internacional para este pontificado. Por um lado, a Rússia tem claras metas expansionistas que também podem ser vistas nas tensões das últimas semanas com a Geórgia, onze anos depois da guerra do verão de 2008.
Pelo outro lado, o Papa Francisco enfrenta ventos politicamente adversos na Europa e especialmente na Itália; ele politicamente "perdeu", do início de seu pontificado até hoje, seu continente, a América Latina, no qual muitos países passaram para as mãos de líderes da direita radical (como no Brasil) ou de populistas sem povo (como na Venezuela).
Mas o caso russo apresenta algumas ambivalências típicas da situação global com a qual o papado tem que tratar: Putin é o herói dos nacionalistas anti-Francisco e daqueles que, na Europa e não só, veem a ordem liberal no fim da linha - como Putin explicou em uma importante entrevista ao Financial Times há alguns dias. Sua visão das relações entre religião e política e da questão da migração estão muito distantes daquelas do Papa Francisco.
A tentativa de Putin de tornar a Igreja Ortodoxa um instrumento da Rússia neo-imperialista da ideologia do "Russkij Mir" (uma ideia universalista do "mundo russo") está em contraste com a visão pós-constantiniana de Francisco sobre a relação entre a Igreja e poder político.
Ao mesmo tempo, no entanto, a Rússia continua a ser um ponto de referência primário para o papado romano, tanto teológica como geopoliticamente. A principal diferença em relação aos tempos da Ostpolitik, entre os anos 1960 e 1980, é que os desafios contra a mensagem da Igreja sobre democracia e direitos humanos não vêm mais apenas do hemisfério comunista ou de outros universos religiosos, mas também do mundo cristão e católico no hemisfério ocidental.
Por outro lado, Francisco vê a Rússia como um católico do hemisfério sul, para quem a primeira América, a que irrompeu na história do mundo, é a América Latina e não os Estados Unidos. De 2016 em diante, depois da bênção política concedida pelo cristianismo branco norte-americano ao nativismo etnocêntrico de Trump, os Estados Unidos perderam a possibilidade de reivindicar qualquer direito de primazia moral no destino do cristianismo global.
O pontificado de Francisco não produziu novos alinhamentos políticos para a Igreja - nem na Itália nem do ponto de vista global - mas dissolveu o catolicismo dos alinhamentos do período pós-Guerra Fria, não mais em nome do anticomunismo, mas dos "valores não negociáveis".
A mudança das orientações teológicas trazidas pelo pontificado de Francisco e o colapso moral da América de Trump produziram uma situação muito diferente daquela do mundo pós-1945 e de sua extensão após 11 de setembro de 2001. Para o mapa geopolítico do catolicismo guiado por um Papa jesuíta e argentino, a Rússia continua sendo uma potência global, mesmo aquela de Vladimir Putin.