20 Mai 2019
O falso profeta admite o fracasso atual, mas o mergulho depressivo começa com Dilma e atende ao recado popular: quanto mais cai, mais afunda.
O artigo é de Luiz Gonzaga Belluzzo, economista, publicado por CartaCapital, 20-05-2019.
Anunciam os analistas do mercado em seus boletins: o Ministério da Fazenda reduz projeção do PIB de 2019 de 2% para 1,5%. No mesmo diapasão, o ministro Paulo Guedes encerrou seu depoimento na Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional com uma angustiada proclamação: “A realidade é que estamos no fundo do poço”.
Paulo Guedes joga todas as fichas na reforma da Previdência. Feita a reforma, nos moldes propostos pelo governo, o Brasil retoma o crescimento. Digo, sem ironia: no crepúsculo dos 76 anos, auguro que o sonho do ministro alcance a felicidade dos meus filhos. Dos meus, dos seus, dos nossos.
Desde os anos 80 do século passado, os governos do mundo e seus súditos estão empenhados em reformar os sistemas de proteção social para conter os efeitos indesejáveis sobre os déficits e a dívidas públicas. Solapadas pelas transformações geoeconômicas, tecnológicas e laborais, as reformas são reformadas de tempos em tempos. A experiência do capitalismo internacional deveria ter ensinado que não há bala de prata para derrotar o irrequieto dragão que ameaça deglutir as finanças públicas.
O poço de Paulo Guedes começou a ser cavado com esmero e persistência na posteridade das eleições de 2014. A presidenta eleita convocou Joaquim Levy para os trabalhos de perfuração com as ferramentas, pás, enxadas e picaretas, oferecidas pelos operadores do mercado financeiro e recomendadas pelos senhoritos da mídia e da academia.
O mergulho depressivo iniciado entre os estertores de 2014 e a crisálida de 2015 pode ser apresentado como um exemplo do fenômeno que as teorias da complexidade chamam de “realimentação positiva” ou, no popular, “quanto mais cai, mais afunda”.
A interação entre a subida da taxa de juros, a desvalorização do real, o corte dos investimentos públicos e o choque de tarifas determinaram a elevação da inflação em simultâneo à contração do nível de atividade e daí à restrição do crédito. O encolhimento do circuito de formação da renda levou, inexoravelmente, à derrocada da arrecadação pública.
O impossível não acontece: se o ministro da Economia desse ouvidos às colunas de Paul Krugman no New York Times, seria muito bom para ele e o País.
A combinação entre choques negativos de oferta e seus efeitos sobre a renda agregada da economia suscitou um processo de “realimentação positiva” decorrente das reações de autoproteção das empresas, bancos e consumidores, estes ameaçados pelo desemprego.
As fábricas se encharcam de capacidade ociosa. Endividadas, as empresas são constrangidas a ajustar seus balanços diante das perspectivas de queda da demanda e do salto do serviço da dívida. Para cada uma delas era racional dispensar trabalhadores, funcionários, assim como, diante da sobra de capacidade, procrastinar investimentos que geram demanda e empregos em outras empresas. Para cada banco individualmente era recomendável subir o custo do crédito e racionar a oferta de novos empréstimos.
Os consumidores, bem, os consumidores reduzem os gastos. Uns estão desempregados e outros com medo do desemprego. Assim, o comércio capota, não vende e reduz as encomendas aos fornecedores que acumulam estoques e cortam ainda mais a produção. As demissões disparam. A arrecadação míngua, sugada pelo redemoinho da atividade econômica em declínio. Isso enquanto a dívida pública cresce sob o impacto dos juros reais em queda, mas ainda mais elevados que a taxa de crescimento da economia.
Em suas habituais diatribes contra os turrões da ortodoxia, Paul Krugman distribui generosas cacetadas nos adeptos da austeridade. O colunista do New York Times questiona os “austeros” que equiparam o problema da dívida pública aos problemas da dívida de uma família. Se uma família acumulou dívidas demais, deve “apertar os cintos”.
Os governos não devem fazer o mesmo? A resposta de Krugman: uma economia não é uma família endividada. “Nossa dívida (privada) consiste principalmente de dinheiro que devemos uns aos outros. Ainda mais importante, nossa renda provém principalmente de vender coisas uns aos outros. Seu gasto é minha renda e meu gasto é sua renda. Assim, o que acontece se todo mundo reduzir gastos simultaneamente a fim de reduzir suas dívidas? Resposta: a renda cai.”
Quando se trata de cuidar do funcionamento da economia como um todo, ou seja, de questões ditas macroeconômicas, os vícios do senso comum e da microcefalia individualista levam a recomendações suicidas de política econômica. Nessa visão apologética, a “agregação” dos comportamentos individuais racionais, a soma das partes determina o resultado para o conjunto da economia. Não por acaso, os economistas da corrente principal empenham-se com denodo na descoberta dos fundamentos micro-econômicos da macroeconomia, assim como os alquimistas buscavam a pedra filosofal. Essa proeza intelectual pretende convencer os incautos de que o movimento do “macro” é resultado da agregação das decisões no âmbito “micro”.
Keynes, o fundador da macroeconomia, escreve nos manuscritos preparatórios da Teoria Geral de 1933 que a Economia Monetária da Produção funciona segundo um “circuito sistêmico” que começa com dinheiro para contratar trabalhadores e meios de produção, terminando com a venda das mercadorias produzidas por dinheiro.
Dinheiro-Mercadoria-Mais Dinheiro, segundo Keynes, é o circuito da Economia Empresarial, conceito que ele utiliza para se desvencilhar das armadilhas lógicas que infestam a ortodoxia. Isso tem um triplo sentido: 1. A propriedade das empresas e o acesso ao crédito conferem à classe empresarial a prerrogativa de gastar acima de sua renda (lucros) corrente. 2. As decisões de gasto na produção corrente e na formação de nova capacidade (investimento) criam a renda nominal da economia como um todo, mediante o pagamento dos salários e geração de lucros sob a forma monetária. 3. A “criação” da renda e do lucro sustenta os gastos de consumo e de poupanças das famílias.
Um mantra circula nas redações e na cachola dos apresentadores de tevê: não há dinheiro. Em uma economia desfalecida há quatro anos e tanto, os dados fiscais mostram que os cortes de gasto fazem o dinheiro sumir das burras das empresas, das famílias e do governo. Nas trajetórias recessivas, quanto mais corta, mais cai a receita fiscal.
Em seus breviários para terraplanistas, o Banco da Inglaterra e o Banco de Compensações Internacionais ensinam que o dinheiro é criado pelos bancos para financiar o gasto dos empresários, dos consumidores e do Estado. Se o governo corta o gasto em uma conjuntura de desalavancagem do setor privado – empresas e famílias –, a queda da renda “agregada” vai inexoravelmente levar a uma trajetória perversa dos déficits e das dívidas públicas e privadas.
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“Estamos no fundo do poço”, admite Guedes. Quem cavou o buraco? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU