01 Mai 2019
"Cuba, Venezuela e a Bolívia são hoje os únicos regimes latino-americanos que resistem à hegemonia dos EUA, acompanhados até certo ponto por México, Uruguai e Nicarágua. Se os EUA conseguirem impor seus interesses geopolíticos sobre a Venezuela, o próximo alvo de guerra de 4ª geração será provavelmente a Amazônia, dada a ambição de empresas pelas reservas de água, biodiversidade e minerais contidas em seu enorme território", constata Pedro A. Ribeiro de Oliveira, sociólogo, membro da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política, em artigo publicado por Movimento Fé e Política, 30-04-2019.
Daí então, segundo ele, "a intuição genial do Papa Francisco ao escolher a Amazônia como tema do próximo sínodo da Igreja Católica".
O Movimento Fé e Política está preparando o 11º Encontro Nacional de Fé e Política, a ser realizado em Natal, RN, nos dias 12 a 14 de julho de 2019.
O título talvez cause estranheza, por referir-se a “tempos de guerra”. O problema é que a guerra ganhou uma nova forma – guerra de 4ª geração, ou guerra híbrida – e ainda não sabemos como lidar com ela. Estamos em situação semelhante à dos povos originários que não sabiam como defender-se dos europeus que chegaram protegidos por vestes metálicas e armas de fogo. Esta análise tem por objetivo desvendar as atuais estratégias de dominação econômica, política e cultural a serviço das grandes empresas transnacionais e seus efeitos na realidade da América Latina e Caribe.
A análise de conjuntura deve partir dos acontecimentos recentes, mas ir além deles e buscar a lógica do processo histórico no qual se inserem. Por isso a análise de conjuntura deve situar os fatos (visíveis) no plano das estruturas (invisíveis). É o que tento fazer aqui, para decifrar o sentido profundo do que está acontecendo em Nossa América, particularmente no Brasil.
Distingo três planos estruturais: o sistema de vida da Terra, o sistema-mundo com seu modo de produção e consumo capitalista, e o sistema (social, político, cultural e econômico) dos países da América Latina e Caribe, que são o foco de nosso interesse imediato. Sabemos, porém, que só podemos entender sua realidade considerando a história da Terra e o sistema-mundo em crise. Por isso, farei breve menção às mudanças conjunturais em cada um deles.
Lembro que não existe neutralidade na análise de fatos históricos. Por isso explicito que esta análise é feita na perspectiva de quem se identifica com as classes trabalhadoras, os povos originários e os grupos socialmente discriminados em suas lutas por um mundo de Paz, Justiça e Vida da Terra.
Tornaram-se frequentes os sinais de mudanças estruturais no sistema Terra. Ao abrir a reunião da COP-24, no final de 2018 na Polônia, disse o secretário-geral da ONU: “Estamos em apuros. Estamos em grandes apuros com as mudanças climáticas”. Porque ele tem uma visão global, sabe avaliar o significado de uma catástrofe climático-ambiental. E sabe que ela poderá acontecer ainda antes de 2050, caso não sejam tomadas as medidas recomendadas pela comunidade científica internacional – medidas que as empresas rejeitam porque prejudicariam seus lucros. A situação se agrava porque os Estados nacionais dão mais prioridade aos lucros das empresas do que ao equilíbrio climático e ecológico. O caso do presidente dos EUA é emblemático, mas são muitos os governantes que, para não desagradar as empresas poluidoras, negam o fator humano no aquecimento global.
Aqui reside uma grave deficiência de nossa metodologia de análise: não entender a questão ambiental como questão política. É preciso ampliar nossas categorias de pensamento para incluir a Terra – ou, pelo menos, sua comunidade de vida – como sujeito da história, e não mais como coisa. Ela está sofrendo e esse sofrimento certamente atinge a espécie humana, embora o instrumental científico disponível não consiga explicar essa conexão.
Tudo se passa como se espécie homo sapiens esteja a pressentir sua extinção e isso provoca comportamentos opostos. Num polo estão práticas que destroem a sociabilidade própria de nossa espécie, como o ódio ao diferente, a voracidade do consumo, o refúgio no mundo virtual e tantas outras; no polo oposto, esse mesmo pressentimento favorece a emergência da consciência da Terra como sujeito de direitos e ser vivo do qual a espécie humana faz parte, como bem expressou a Carta da Terra, publicada em 2000. Essa nova consciência recupera concepções ancestrais – como o Sumak Kawsay - Bem Viver – que só entendem os seres humanos em comunhão com a Mãe-Terra, seus filhos e filhas de outras espécies e com o espiritual.
Atenção: Essa realidade de âmbito planetário precisa ser seriamente considerada, porque ainda é possível ao menos amenizar a catástrofe ambiental que se anuncia. No mínimo, ela precisa ser considerada como um obstáculo intransponível ao crescimento econômico de médio e longo prazo. O próprio megaprojeto chinês da nova rota da seda, que prevê investimento de US$5 trilhões até 2049, fracassará se desconsiderar as mudanças ambientais.
A crise de 2008 fecha o ciclo de acumulação do capital puxado pelos EUA no século 20. Acaba o desenvolvimentismo no terceiro mundo e as economias avançadas se protegem fechando-se. Enquanto o capitalismo mundial manteve aquele ciclo de crescimento, gerou ao mesmo tempo megaempresas transnacionais e diminuição da pobreza e da miséria no mundo; depois da crise de 2008, porém, a pobreza e a miséria retornam ao patamar anterior, enquanto o poderio das megaempresas se manteve, provocando superconcentração da riqueza mundial. O resultado é a financeirização típica dos processos de transição no interior do capitalismo: o capital se torna mais lucrativo no mercado financeiro do que na produção de bens e serviços.
Nesse contexto, as previsões apontam a transferência do polo econômico mundial do Ocidente (EUA - Europa), para a Ásia (China - Índia - Rússia). O projeto da nova rota da seda visa construir a infraestrutura para essa transferência. Enquanto esse projeto não se torna realidade, o capitalismo permanece em crise, deixando conturbada a situação econômica mundial. Fator relevante dessa crise é o US$ ainda ser a moeda de referência das transações internacionais, apesar da enorme dívida externa dos EUA.
A disputa geopolítica entre as grandes potências envolve o controle sobre suas áreas de influência e a conquista de novas áreas. Os investimentos chineses na África, por exemplo, assim como o retorno da doutrina Monroe “A América para os Americanos” devem ser entendidos na perspectiva geopolítica: cada Estado busca estender seu poder além do próprio território nacional para assegurar o acesso ao petróleo, a matérias-primas ou realizar alianças estratégicas com outros Estados. Além dos meios políticos e diplomáticos, a geopolítica usa também a força militar. Ao fazê-lo, surgem as guerras.
Há hoje muitas guerras no mundo: são guerras civis, étnicas, religiosas, contra drogas ou terrorismo – todas respaldadas pelas grandes potências. Não se pode descartar o risco de tais guerras evoluírem para uma guerra nuclear que liquidaria a espécie humana. A essas modalidades já conhecidas, acrescenta-se atualmente a guerra de 4ª geração ou guerra híbrida. Para explicar muito abreviadamente o que são elas, recorro a A. Korybko: Guerras híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. Expressão Popular: São Paulo, 2018.
Toda guerra é uma combinação de ações que visam destituir um poder definido como hostil e substituí-lo por um poder amigável. Desde milênios a guerra visa eliminar um governante ou regime que se recusa a submeter-se aos ditames de outro governo. A novidade da guerra de 4ª geração reside no tratamento da informação como arma de combate. O uso metódico, racional e sistemático da informação, associado a experiências empíricas, como meio de enfraquecimento do “poder hostil”. Trata-se de produzir informações parcialmente verdadeiras (pós-verdade) ou falsas (fake-news), mas plausíveis para quem as recebe, e difundi-las pela combinação da mídia corporativa (TVs, rádios e jornais), mídias digitais (whatsapp, facebook e twitter) e instituições com credibilidade, como Igrejas cristãs, ONGs ou institutos de pesquisa.
Ao receber uma informação que corresponde a seu desejo, a pessoa é levada a replica-la em sua rede de contatos. Isso aumenta sua credibilidade, porque as pessoas tendem a dar crédito à informação proveniente de fontes diferentes. Esse processo funciona como o vírus que infecta o sistema. Quando se trata de derrubar um governo “hostil”, as informações devem abalar sua legitimidade (geralmente acusando-o de corrupto) a tal ponto que bastará uma ofensiva local liderada por algum setor militar, político ou do judiciário para liquidá-lo. Esse processo de ataque é blindado pela tática de desqualificação das fontes de informação não-alinhadas contra o “poder hostil” como não-fidedignas por serem a favor da corrupção.
Atenção. Diante dessa forma de guerra, não basta indignação ética: se não aprendemos a combatê-las, seremos facilmente derrotados pelas armas ideológicas produzidas por Steve Bannon e outros manipuladores de opinião a serviço do liberalismo de mercado.
Antes que a suspeição de teoria conspiratória dificulte a compreensão dessa realidade, é preciso ter claro que a guerra de 4ª geração não é o resultado de decisão tomada em alguma assembleia secreta por dirigentes de fundações, empresas petrolíferas, bancos, ONGs, agentes da NSA, FBI, embaixadores, procuradores e Secretários de Estado. Tampouco teria um comando centralizado na CIA ou alguma agência governamental dos EUA. Ela é o resultado objetivo de diferentes fluxos de dinheiro, de poder ou de conhecimento, que se conectam direta ou indiretamente em laços de retroação, conformando uma grande rede. Nessa rede cada ator – no campo econômico, político, cultural e militar – age tendo em vista apenas seus interesses particulares ou da instituição que representa.
Agências governamentais e fundações privadas financiam o treinamento de atores locais para aprenderem a atuar em parceria com atores dos EUA na aplicação de suas normas e leis, no emprego de suas técnicas ou na difusão de seus valores e ideologia.
É a conexão desses fluxos – materiais, de poder e conhecimento – em laços de retroalimentação, que faz surgirem atores, singulares ou coletivos, como nodos dessa rede. Assim como surgem, os nodos podem ser desligados após gerarem os resultados esperados, simplesmente pelo corte do fluxo de recursos, de poder ou de informação que os alimentava. (Adaptação livre do que diz Euclides Mance em O Golpe.
A análise da situação geopolítica atual aponta para a ocorrência de uma guerra latente entre as grandes potências mundiais hoje polarizadas por EUA e China. Embora se mantenham as relações diplomáticas e as transações comerciais e financeiras entre esses dois polos do capitalismo contemporâneo, as tensões eclodem em forma descontínua e localizada. Examinarei aqui dois exemplos – Brasil e Venezuela – para mostrar como essa tensão geopolítica se desdobra em guerras de 4ª geração na América Latina e Caribe.
3. 1: Brasil
A hipótese desta análise é que a derrubada do governo de Dilma Rousseff, em 2016, faz parte de uma estratégia de guerra de 4ª geração iniciada nos primeiros meses de 2014 e que se estende pelo menos até a posse do atual governo. Sua causa está no conflito de interesses entre os governos liderados pelo Partido dos Trabalhadores – PT – e grupos petroleiros e financeiros dos EUA. A divergência era a exploração do petróleo do pré-sal e o alinhamento do Brasil com o bloco formado por Rússia, China, Índia e África do Sul – BRICS. No quadro geopolítico resultante da crise financeira de 2008, o controle do petróleo (e de seu preço) e a manutenção do US$ como moeda de referência mundial representam pontos de grande importância. Por isso, ao defender o monopólio estatal na exploração do petróleo e favorecer a aproximação com a China, aqueles governos passaram a ser tratados como uma forma de poder “hostil” e, por conseguinte, alvo da guerra de 4ª geração.
Fundamental para o êxito dessa guerra é a aliança das megaempresas com as classes dominantes do Brasil: cerca de 71.500 pessoas com rendimentos mensais superiores a 160 salários mínimos e patrimônio (bens e direitos) médio de R$17,7 milhões (Dados de Receita Federal de 2013). Em meio à crise econômica e política de 2013, esses muito-ricos romperam o pacto informal feito com o PT, que em troca da governabilidade postergou as reformas estruturais (agrária, fiscal, política) e a auditoria da dívida pública. Assim, o projeto social-desenvolvimentista foi trocado pelo programa de Temer Ponte para o futuro que favorecia a política de subordinação aos interesses dos EUA. Seu apoio à eleição de Bolsonaro para dar cobertura à política econômica ultraliberal de P. Guedes, é o coroamento daquela aliança entre os muito-ricos do Brasil e os dos EUA.
Pelo menos temporariamente, as classes dominantes conseguiram a adesão das classes médias e os votos da massa popular. Para isso contam com a colaboração da mídia corporativa, de militares, Igrejas neopentecostais e setores conservadores das Igrejas Evangélicas e Católica. Embora seu ideário político-social dependa de pensadores do quilate de Olavo Carvalho, isso parece bastar para conquistar a adesão da grande massa de insatisfeitos com o sistema atual, que atiça o desejo de consumo mas não o satisfaz. Na ânsia de uma nova política, essa massa deixa-se levar pela propaganda que recobre e disfarça as velhas práticas da politicagem nacional.
Desde a vitória eleitoral de Bolsonaro os grupos no poder têm recorrido à agressividade para eliminar – ou ao menos enfraquecer – os instrumentos de que dispõem as classes trabalhadoras e setores subalternos para se expressar ou se organizar (como os Partidos de esquerda, Movimentos como MST, MTST, de Indígenas, negros, mulheres, LGBT e outros). Essa agressividade estende-se a setores de Igrejas, da intelectualidade e de universidades vistas como forças de oposição ao novo governo. Mais grave ainda é a permissividade à violência (policial-militar ou miliciana) contra povos originários e a defensores e defensoras de Direitos Humanos, na cidade como no campo. É típica do fascismo essa atitude de pretender eliminar toda oposição, sem ceder espaço à luta política dentro da institucionalidade democrática.
Atenção. Esta análise indica que as classes trabalhadoras e os setores populares ou nacionalistas foram derrotados pela guerra de 4ª geração. Sintomas dessa derrota é a fragilização das instituições republicanas – os Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo – e a estagnação da economia, que não voltou a crescer significativamente desde 2014. Mas ainda é prematuro avaliar até que ponto suas forças foram exauridas e até que ponto têm capacidade de reação com real possibilidade de reverter a situação.
Convém pensar o Brasil atual como um país derrotado numa guerra de 4ª geração e com um governo a serviço dos muito-ricos e subordinado aos interesses das grandes empresas petrolíferas e financeiras dos EUA. Esse quadro, porém, não pode deixar de fora os sinais de vitalidade dos setores populares:
(1) uma bancada suficientemente forte na Câmara para evitar aprovação de PECs, desde que construa um arco de alianças com partidos democráticos, significativa presença no Senado e conquista de Governos estaduais;
(2) Movimentos Sociais organizados, Povos Indígenas, Partidos de esquerda, Sindicatos e novos coletivos dão mostras de resiliência e capacidade de reorganização desde as bases;
(3) as propostas antidemocráticas do governo sofrem oposição da maioria da intelectualidade, de artistas e da população universitária;
(4) CEBs e Pastorais sociais, bispos e padres católicos e pastores evangélicos, embora minoritários em sua Igreja, mantém vivo o Cristianismo da Libertação;
(5) as pequenas unidades de economia solidária, cooperativas populares e assentamentos são alternativas à economia capitalista.
3.2 Venezuela
A estratégia de guerra de 4ª geração usada no Brasil – informações que descrevem o governo como corrupto – foi reforçada na Venezuela pelo bloqueio econômico que estrangula a economia nacional. Também ali está em jogo o controle do petróleo (e de seu preço) e a aproximação com China e Rússia. Fosse a Venezuela produtora de cacau ou café, provavelmente desenvolveria seu projeto bolivariano com autonomia.
Sinal evidente dessa estratégia de guerra é sustentação dada pelos EUA e meia centena de governos aliados ao inexperiente suplente de deputado eleito presidente da Assembleia e autoproclamado presidente da República. A ascensão política de J. Guaidó como expressão do descontentamento popular certamente foi possibilitada pela política econômica de Chávez e Maduro, que beneficiou antes a nova burguesia bolivariana e seus comandantes militares, do que o empoderamento econômico popular. Mas ela seria inexplicável se não considerasse a importância geopolítica de um país que, sendo grande exportador de petróleo e tendo enorme potencial para mineração, encontra-se a menos de 4.000 km do território estadunidense.
Apagões de eletricidade (provavelmente causados por ataques cibernéticos) e a recente intensificação do bloqueio a toda compra de petróleo sinalizam que a guerra vai continuar e intensificar-se em 2019. É verdade que a Venezuela conta com aliados poderosos – Rússia, Turquia, Irã e China – mas todos estão do outro lado do Atlântico. É bem diferente da guerra de 4ª geração contra a Síria, cujo regime sofreu igual ataque acompanhado de intervenção militar, mas ali a vizinha Rússia interveio militarmente e não permitiu que seu aliado fosse derrotado. No caso do regime bolivariano a situação é diferente, pois os principais vizinhos da Venezuela – Brasil e Colômbia – querem derrubá-lo.
A solução a ser encontrada pela Venezuela em conjunto com outros países de Nossa América será muito valiosa para aprendermos a lidar com essa nova forma de guerra, mas ainda não se consegue sequer vislumbrar qual será ela.
Cuba, Venezuela e a Bolívia são hoje os únicos regimes latino-americanos que resistem à hegemonia dos EUA, acompanhados até certo ponto por México, Uruguai e Nicarágua. Se os EUA conseguirem impor seus interesses geopolíticos sobre a Venezuela, o próximo alvo de guerra de 4ª geração será provavelmente a Amazônia, dada a ambição de empresas pelas reservas de água, biodiversidade e minerais contidas em seu enorme território.
Percebe-se, então, a intuição genial do Papa Francisco ao escolher a Amazônia como tema do próximo sínodo da Igreja Católica. Ela pode ser a instituição multinacional mais adequada à defesa da vida na Amazônia, dada a fragilidade atual da ONU, cujas resoluções são sujeitas a vetos das grandes potências. O Sínodo, reunindo bispos de todo o mundo, poderá despertar e mobilizar novas energias capazes de assegurar a Paz na Terra e com a Terra. Que o teor de fidelidade ao Evangelho no episcopado mundial seja suficientemente forte para resistir às pressões que virão dos poderosos!
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Análise de conjuntura em tempos de guerra. Artigo de Pedro A. Ribeiro de Oliveira - Instituto Humanitas Unisinos - IHU