20 Fevereiro 2019
"Para amadurecermos uma consciência de abertura e transcendência precisamos da solidão. Deixarmos de lado o excesso de coisas que nos distanciam de nós mesmos. O ato de existir é acolhido em plenitude quando encontro-me comigo mesmo na solidão. Isso não é fuga mundi, é encontro com o nosso próprio ser. Tal encontro, me abre ao outro, fazendo-me responsável por ele", escreve Ademir Guedes Azevedo, padre, missionário passionista e mestrando em teologia fundamental na Pontifícia Universidade Gregoriana.
Nós vivemos um período histórico marcado por grandes tribulações. A tendência é cair no pessimismo e pensar que devemos esperar o “passar do tempo” para as coisas melhorarem. Não acredito que tal opção seja a mais adequada. Recentemente o Papa Francisco publicou um livro, Lettere della tribolazione (Cartas da tribulação), no qual nos propõe um rico princípio para enfrentarmos os problemas: “As ideias são discutidas, mas as situações são discernidas” (p. 20). Com certeza, esta mesma proposta está ligada a sua famosa máxima encontrada em Evangelii Gaudium n. 231: “A realidade é superior à ideia”. O que o Papa alerta é sobre o risco de não cairmos na tentação das divagações abstratas que justificam as ideologias. Precisamos assumir a realidade e encontrarmos as soluções para os problemas, com serenidade, lucidez e sabedoria. Nada de fuga mundi.
Para isso, penso que seja oportuna a análise do filósofo coreano, Byung-Chul Han. Em A sociedade do cansaço, ele nos adverte acerca da escravidão psicológica que nós criamos para nós mesmos. O problema é o excesso de positividade. Criamos pressão sobre nós mesmos para provar aos outros que somos produtivos. Aquele pároco faz tudo para não vacilar porque almeja ser promovido. O funcionário perde suas noites de repouso pensando em estratégias para ser o melhor na empresa onde trabalha. O estudante devora livros para ser o número um na escola ou na universidade, etc. Nesta sociedade da positividade não existe pressão externa porque é a própria pessoa que se cobra. O resultado é o infarto psíquico, ou a depressão, fruto da positividade que colocamos sobre os nossos ombros.
Em A salvação do belo, o filósofo continua falando do excesso de positividade, dessa vez promovido pelas redes sociais. Ali, o espaço é preenchido pelos momentos de glória e conquistas pessoais. O culto da autoimagem nunca foi tão valorizado como se ver hoje na internet. Se um internauta, que não pertence ao meu ciclo de positividade, me critica, eu o bloqueio imediatamente, porque é visto como negatividade de minha imagem. A consequência é: a alteridade não é respeitada nem acolhida pelo fato de interromper o meu ciclo de positividade.
Em meio a este cenário de confusão e guerra fragmentada, talvez é relevante retomar a proposta de outro filósofo, Emmanuel Levinas, como caminho alternativo. A lição que extraímos dele é: nós temos uma existência para o outro, não somos uma mônada, fechados em nós mesmos. No entanto, para amadurecermos uma consciência de abertura e transcendência precisamos da solidão. Deixarmos de lado o excesso de coisas que nos distanciam de nós mesmos. O ato de existir é acolhido em plenitude quando encontro-me comigo mesmo na solidão. Isso não é fuga mundi, é encontro com o nosso próprio ser. Tal encontro, me abre ao outro, fazendo-me responsável por ele. Para Levinas esta descoberta se dá no face a face, ou seja, diante do rosto do outro. O rosto me revela a concretude da pessoa, tal como ela é. No mundo virtual, a existência é sem um existente, ou seja, não posso ter um rosto concreto. Por isso, estamos assistindo a falta de ética nos conteúdos publicados nas redes. Infelizmente, testemunhamos esta triste realidade em nosso país nos últimos meses. Tudo indica que as relações virtuais se desenvolvem assim: um ao lado do outro (o que gera também o anonimato virtual). Levinas, ao invés, propõe assim: um de frente ao outro. Aqui entra a responsabilidade e a ética para com o meu próximo.
Vejamos o modo de relacionar-se de Jesus de Nazaré. Foi o mais autêntico na relação face a face. No poço de Sicar, colocou-se diante do rosto da samaritana, de frente, não ao lado. Pedro, no episódio da Paixão, fugia do rosto de Jesus, colocava-se ao lado, ou seja, sentia vergonha e medo de declarar-se seu seguidor. Mas Jesus não foge do rosto de Pedro, o olha com profundidade, fazendo-o chorar.
O tempo da tribulação será interrompido se olharmos no rosto do outro. Precisamos abandonar o “lado a lado” e migrarmos para o “face a face”. Isso nos ajuda a assumirmos a nossa existência com a ética da responsabilidade e, sobretudo, a nunca esquecermos do outro.
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