06 Fevereiro 2019
O Pontífice esclarece que para uma ação diplomática da Santa Sé na Venezuela não é suficiente a vontade de apenas um só. Fato pelo qual a carta que Maduro enviou ao Vaticano não é suficiente: é preciso também o pedido de uma intervenção por parte da corrente de Guaidó. O Papa Francisco explicou isso ao voltar de Abu Dhabi a Roma, no final da visita de três dias aos Emirados Árabes Unidos. O Pontífice, na tradicional coletiva de imprensa com os jornalistas durante o voo, destaca que o Estado Islâmico não é islamismo. Sobre a guerra no Iêmen, combatida também pelos Emirados, disse que “encontrou boa vontade para iniciar processos de paz”. Aos católicos que o acusam de se deixar instrumentalizar pelos muçulmanos responde: o documento sobre a Fraternidade está alinhado com o Concílio. Sobre as freiras que sofreram abusos por parte de sacerdotes: é verdade, existe este problema, e “a mulher é considerada ‘de segunda categoria”.
Antes de se submeter às perguntas, o Papa agradece os jornalistas pela “companhia. Foi uma viagem muito breve, mas, para mim, uma grande experiência. Creio que cada viagem é histórica, também em nossos dias, em que se “escreve a história diariamente… nenhuma história é pequena, cada história é grande e digna, ainda que seja ruim, a dignidade oculta sempre pode surgir”. O comentário é de Domenico Agasso Jr. e foi publicado por Vatican Insider, 05-02-2019. A tradução é de Graziela Wolfart.
Eis a entrevista.
Quais serão os resultados desta viagem e quais foram suas impressões sobre os Emirados Árabes Unidos?
Vi um país moderno, me impressionei com a cidade e com a limpeza dela. Também cito pequenas curiosidades: por exemplo, como fazem para regar as flores neste deserto. É igualmente acolhedor para tantos povos que vivem ali, e também é um país que olha para o futuro: o exemplo é a educação dos filhos, os ensinam a olhar para o futuro, sempre. É o que me explicaram. Depois, o que mais me impressionou é o problema da água… estão tratando a água do mar, para em um futuro próximo torná-la potável, e também a água da umidade, fazendo com que se beba… sempre estão buscando coisas novas. E também escutei alguém dizer que um dia faltará petróleo, “estamos nos preparando para (quando faltar, ndr.) o petróleo, agora, para ter algo a fazer”.
Depois, me pareceu um país aberto também à religiosidade; o islamismo é aberto, marcado pelo diálogo, um islamismo fraterno e de paz. Sobre isto, destacam a educação à paz, que se sente como um dever, apesar de haver problemas, de algumas guerras na região. Mas sobre isto não escutei nada…
Também, para mim foi muito comovente o encontro com os sábios. Os sábios do islã, é algo profundo, vieram de todas as partes, de diferentes culturas, isto também indica a abertura deste país a um diálogo regional, universal, religioso.
Depois também me surpreendeu o encontro inter-religioso, este é um fato cultural forte. E também o que mencionei no discurso, isso que fazem aqui, sobre a pederastia e também nos meios, na internet… nestas coisas… porque a pornografia hoje é uma indústria que dá tanto dinheiro, explorando as crianças, e este país se deu conta disso há tanto tempo. Então, são coisas positivas. Claro que há problemas, mas em uma viagem de menos de três dias, estas coisas não se veem e, se são vistas, a pessoa vira para o outro lado (risos, ndr.).
A viagem ficou marcada pela assinatura do documento sobre a fraternidade: como ele se aplicará no futuro e o que o senhor pensa sobre o anúncio do príncipe Mohamed, envolvendo a construção de uma igreja ao lado de uma mesquita?
O documento foi preparado com muita reflexão e oração; o Grão Imam com sua equipe e eu com a minha. Temos rezado tanto para conseguir fazer este documento, porque, para mim, só há um grande perigo neste momento: a destruição, a guerra, o ódio entre nós. E, se nós, os crentes, não somos capazes de nos dar as mãos, abraçar-nos e tampouco de rezar, nossa fé será derrotada. Este documento nasce da fé em Deus que é pai de todos e pai da paz e condena toda a destruição, todo terrorismo. O primeiro terrorismo da história é o de Caim. É um documento que se desenvolveu em quase um ano, ida e volta, orações.
Foi uma viagem cheia de encontros, de impressões, de imagens. A propósito da cena de sua chegada, o senhor foi recebido com honras militares, com os aviões militares que desenharam as cores vaticanas no céu. Eu me pergunto: o que isso tem a ver com o Papa Francisco, com o Papa que chega com uma mensagem de paz? O que o senhor acha? O que sente, o que pensa nestes momentos? E, sempre sobre este tema, seu chamado pela paz no Iêmen: que reações o senhor notou em seus encontros? Há esperanças de que seja recebida esta mensagem, de que se deem passos para a paz?
Interpreto todos os gestos de boas-vindas como gestos de boa vontade; cada um os faz segundo as próprias culturas. O que encontrei aqui? Uma acolhida tão grande, que queriam fazer de tudo, pequenas e grandes coisas, porque sentiam que a visita do Papa era algo bom. Alguém chegou a dizer que era uma bênção… Deus sabe… Mas eles queriam me fazer sentir bem-vindo. Sobre o problema das guerras: você menciona uma. Sei que é difícil dar uma opinião depois de dois dias e de ter falado sobre o assunto com poucas pessoas. Eu direi que encontrei boa vontade para iniciar processos de paz. Isto é o que encontrei. Um denominador comum das coisas que falei sobre as situações bélicas. Você mencionou a do Iêmen: encontrei boa vontade para lançar processos de paz.
Depois da histórica assinatura do documento, quais poderão ser, em sua opinião, as consequências no mundo islâmico? Estou pensando principalmente nos conflitos no Iêmen e na Síria. Quais consequências haverá também entre os católicos? Considerando que há uma parte dos católicos que o acusa de se deixar instrumentalizar pelos muçulmanos…
Mas não só pelos muçulmanos… (risos, ndr.). Acusam-me de me deixar instrumentalizar por todos, inclusive pelos jornalistas. Faz parte do trabalho, mas gostaria de dizer uma coisa. Do ponto de vista católico, o documento não se separou nem um milímetro do Vaticano II, inclusive ele é citado em vários momentos. O documento foi feito no espírito do Vaticano II. Eu quis, antes de tomar a decisão, antes de dizer “está bem assim, vamos assinar”, pelo menos de minha parte, entregar o documento para um teólogo ler e também oficialmente ao teólogo da Casa Pontifícia, que é um dominicano, com a bela tradição dos dominicanos, no sentido não de ir à caça às bruxas, mas de ver o que é justo e certo… não é um passo para trás, mas um passo para frente.
Se alguém se sente mal, eu compreendo, não é algo de todos os dias… mas não é um passo atrás, é um passo para frente. Um passo adiante que vem sendo dado há 50 anos, vem do Concílio e deve ser desenvolvido. Os historiadores dizem: para que um Concílio tenha raízes na Igreja é preciso 100 anos; estamos no meio do caminho. Isto é o que me chama a atenção. Também no mundo islâmico há diferentes pareceres, alguns mais radicais e outros não. Ontem, no conselho dos sábios, havia pelo menos um xiita, isso deu uma universalidade muito grande, falou bem. Haverá discrepâncias também entre eles, mas é um processo e os processos amadurecem.
O senhor acaba de encerrar a visita aos Emirados Árabes Unidos e irá daqui a pouco para o Marrocos. Parece que escolheu falar com interlocutores bem precisos do islã. É uma decisão de campo? O documento histórico assinado ontem é muito ambicioso em relação à educação? Poderá tocar verdadeiramente os fiéis muçulmanos?
Eu sei e escutei alguns muçulmanos dizerem que será estudado nas universidades, pelo menos na de al-Azhar com certeza, e nas escolas. Deve ser estudado. Não imposto, mas estudado. É um pouco casual a proximidade das duas viagens, porque eu queria ir a Marraqueche (à Conferência da ONU sobre as migrações, ndr.), mas havia coisas protocolares e não podia ir a um encontro internacional sem visitar antes o país, mas não tive tempo. E por isso postergamos a visita. Então o Secretário de Estado é quem foi a Marraqueche. É uma questão diplomática e de educação também, mas foi algo planejado. Em Marrocos sigo as pegadas de São João Paulo II, que foi o primeiro a ir. Será uma viagem agradável. Depois chegaram convites de outros países islâmicos, mas não há tempo este ano. Eu ou o outro Pedro, algum irá.
Sobre a crise da Venezuela: Maduro enviou uma carta pedindo ajuda para o diálogo e Parolin conhece bem o país; qual é o estado da disponibilidade da Santa Sé para uma possível mediação?
Em geral há pequenos passos, o último é uma mediação; são pequenos passos iniciais, facilitadores, mas não só por parte do Vaticano, toda a diplomacia. Um deve se aproximar do outro para iniciar possibilidades de diálogo. Assim funciona na diplomacia. Na Secretaria de Estado poderão explicar bem todos os diferentes passos que se podem dar; eu, antes da viagem, sabia que estava chegando com o selo diplomático uma carta de Maduro. No entanto, não li esta carta. E veremos o que se pode fazer. Mas, para que se faça uma mediação, é preciso a vontade de ambas as partes. As condições iniciais são claras: que as partes o peçam. Sempre estamos disponíveis. Como quando a gente vai ver o padre porque há um problema entre marido e mulher: vai um, “e a outra parte, vem ou não vem? Quer ou não quer?”. Sempre se necessitam ambas as partes. Esta é uma condição que os países devem ter em conta antes de pedir uma facilitação ou a presença de um salvador, ou uma mediação. Ambas as partes, sempre.
Houve um encontro com o conselho dos anciãos. Que temas trataram? O senhor volta a Roma com a impressão de que sua mensagem chegou a seus interlocutores?
Os anciãos são verdadeiramente sábios. Primeiro falou o Grão Imam. Depois, cada um deles, começando pelo mais idoso, que falava em espanhol, sim, porque era de Mauritânia. Ancião, de oitenta e nove anos. Até o mais jovem, que é o secretário do Conselho dos Anciãos. Falou pouco, mas disse tudo em um vídeo: sua especialidade, é um comunicador. Gostei disso, foi algo muito bonito. A palavra chave é “sabedoria”. Depois, “fidelidade”. Então, destacaram um caminho da vida com o qual esta sabedoria cresce e se reforça. E daí nasce a amizade entre os povos. Um era xiita. Depois, a sabedoria e a fidelidade constituem um caminho importante para a construção da paz. Porque a paz é uma obra da sabedoria e da fidelidade. Fidelidade humana, entre os povos. Fiquei com a impressão de ter estado entre verdadeiros sábios. E esta é uma garantia para o Grão Imam, contar com este conselho.
Está satisfeito?
Sim, muito satisfeito.
O Imam al-Tayyeb denunciou a islamofobia. Por que não se diz nada sobre a cristianofobia, sobre a perseguição dos cristãos?
Falei sobre a perseguição dos cristãos. Não nesse momento, mas também falo sobre ela frequentemente, inclusive nesta viagem falei a respeito, mas não me lembro onde. Mas falei disso. Também o documento condena a violência e alguns grupos que se dizem islâmicos (os sábios dizem que não é o islamismo) e perseguem os cristãos. Lembro de um pai com três filhos, tinha 30 anos, e chorava: “Sou islâmico, minha esposa era cristã, vieram os terroristas do EI, viram a cruz e disseram: ‘Converte-te’, e a degolaram na minha frente”. Este é o pão nosso de todos os dias dos grupos terroristas, a destruição da pessoa. O documento condenou isto.
Uma reflexão sobre a liberdade de credo e de culto…
O processo tem um princípio, claro, se prepara um ato e então há um antes e um depois. A liberdade está em processo, cada vez mais, sempre em frente. Me impressionei com uma conversa que tive com um menino de 13 anos em Roma, antes de partir. Ele me disse: “Santidade, eu sou ateu. O que tenho que fazer para me converter em um homem de paz?”. Eu lhe disse: “Faz o que sentires”. Conversei um pouco com ele, mas gostei da coragem do menino. É ateu, mas busca o bem. Esse caminho também é um processo, um processo que devemos respeitar e acompanhar. Acompanhar todos os processos pelo bem, todos, de qualquer cor. Creio que estes são passos para a frente.
A revista feminina de L’Osservatore Romano publicou um artigo denunciando o abuso sexual que mulheres consagradas sofreram na Igreja por parte do clero. Há alguns meses a União das Superioras Gerais fez uma denúncia pública. Sabemos que a próxima reunião no Vaticano será sobre o abuso de menores, mas é possível pensar que a Santa Sé pode fazer algo para enfrentar também este problema com um documento ou linhas mestres?
É verdade, é um problema. O abuso das mulheres é um problema. Eu ousaria dizer que a humanidade ainda não amadureceu: a mulher é considerada “de segunda categoria”. Comecemos por aqui: é um problema cultural. Depois se chega inclusive aos feminicídios. Há países em que o abuso das mulheres chega ao feminicídio. É verdade, dentro da Igreja houve clérigos que fizeram isso. Em algumas civilizações de maneira mais forte do que em outras. Houve sacerdotes e também bispos que fizeram isto. E eu creio que ainda se faz: não é algo que acaba quando te dás conta. A coisa segue adiante assim. E há tempo estamos trabalhando nisto. Temos suspendido alguns clérigos, expulsado, e também (não sei se já acabou o processo) desfazer alguma congregação religiosa feminina que estava muito relacionada com este fenômeno. Uma corrupção.
É preciso fazer algo a mais? Sim. Temos vontade? Sim. Mas é um caminho que vem de longe. O Papa Bento teve a coragem de fechar uma congregação feminina que tinha certo renome, porque havia entrado nesta escravidão, inclusive sexual, por parte de clérigos ou por parte do fundador. Às vezes o fundador tira a liberdade das freiras, pode chegar a isto. Gostaria de destacar que Bento XVI teve a coragem de fazer muitas coisas em relação a este tema. Há uma história: ele tinha todos os documentos sobre uma organização religiosa onde havia corrupção sexual e econômica. Ele tratava de falar disso, mas havia filtros, não podia chegar. No final, o Papa, desejando ver a verdade, fez uma reunião e Joseph Ratzinger saiu dali com todos os documentos. Quando retornou, disse a seu secretário: “ponha no arquivo, ganhou o outro partido”. Não devemos nos escandalizar por isto, são passos de um processo. Mas quando se tornou Papa, a primeira coisa que fez foi: “Traga-me isto do arquivo”. O folclore o apresenta como frágil, mas não tem nada de frágil. É um homem bom, um pedaço de pão é pior que ele, mas é um homem forte.
Sobre este problema: reze para que possamos seguir adiante. Eu quero seguir adiante. Há casos. Estamos trabalhando.
Hoje, uma menina lhe levou uma carta, nós vimos. Correu até o senhor quando estava no automóvel. Já leu?
Ainda não… as cartas estão aí, estão classificando elas para mim, para que as leia depois.
Pode nos dizer o que sentiu quando viu esta menina se aproximando do senhor? Esta menina que escapou entre a multidão?
É uma menina valente! Deixem que se aproxime! Mas, essa menina tem futuro, né? Tem futuro… e ousaria dizer: pobre marido (risos, ndr.). Tem futuro, mas é corajosa, gostei! É preciso coragem para fazer isso, e depois outra a seguiu, eram duas… viu a primeira e ganhou coragem.
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Papa Francisco sobre Carta de Maduro: é necessário também o pedido de Guaidó - Instituto Humanitas Unisinos - IHU