28 Novembro 2018
Em seu ensaio filosófico, Le peintre dévorant la femme (Estock), o escritor argelino volta a explorar a miséria sexual no mundo árabe. E se revela em sua intimidade.
A entrevista é de Olivia Elkaim, publicada por La Vie, 30-10-2018. A tradução é de André Langer.
Um árabe diante dos nus de Picasso. É assim que o escritor argelino se descreve quando, em uma noite de outubro de 2017, é convidado pelo Museu Picasso de Paris para andar pelo coração da exposição intitulada: 1932, ano erótico. Nus revelando Marie-Thérèse Walter e corpo-a-corpo orgásmicos lhe permitem desenvolver temas que lhe são caros: o corpo, as mulheres, a religião, o modo como o mundo árabe-muçulmano encobre o corpo das mulheres. Se o erotismo é a chave para a sua visão de mundo e do radicalismo religioso, este ensaio também é atravessado por uma raiva surda.
Entrevista, em Paris, com um pensador criticado, que é acusado por seus detratores de “essencializar” o Islã e o mundo árabe.
Kamel Daoud é escritor argelino de língua francesa. Jornalista do Quotidien d'Oran, publicou, entre outros, o romance Meursault, contre-enquête (Actes Sud, 2014).
Você coloca em cena, paralelamente ao seu passeio, um terrorista chamado Abdellah, cujo objetivo é destruir as pinturas do mestre. Que relação você estabelece entre a miséria sexual que você descreve no chamado mundo árabe-muçulmano e a ascensão do radicalismo religioso?
Existe uma relação direta. A cultura permite relativizar as crenças, aceitar o outro em suas diferenças. Sem acesso à cultura, não se tem acesso à alegria ou ao prazer, não se erotiza o mundo. Quando eu falo sobre miséria sexual no chamado mundo árabe, muçulmano, não é apenas sobre a miséria sexual no sentido propriamente “genital”, mas também sobre não ser capaz de dançar, ouvir música, ir nadar na piscina ou passear pelos museus, porque não há museus! Tudo isso contribui para a miséria erótica, a miséria da sensualidade em nós, em todas as suas variações. Quando não há nada disso, nós incorporamos a morte, nós matamos e nos entregamos à morte.
De certa forma, o ataque final é aquele que se exerce contra a arte, a pintura...
É o atentado sonhado, absoluto, o atentado contra o sentido e a representação. Este é o fantasma absoluto de todos os radicais.
Por que o sexo é tão assustador nos chamados países árabes? Qual é o propósito da caça ao sexo que você descreve?
Eu falo de uma vivência. Eu tenho a impressão de que a sexualidade representa em primeiro lugar uma afirmação da liberdade do indivíduo em uma sociedade do grupo; por isso representa uma ameaça. Aquele que ama se isola com a pessoa amada. Isso não é tolerado pelo grupo. O grupo quer ser o intermediário entre você e seu corpo. Além disso, a sexualidade é assimilada ao Ocidente. Então, entre nós, fazemos o contrário do que é o Ocidente. Os pregadores religiosos nos acusam de sermos traidores, porque defendemos valores universais que eles designam como valores ocidentais. Ao contrário, eles se colocam como defensores da autenticidade, da cultura nacional, da identidade pura. Portanto, eles nos empurram para a lógica do traidor e se apresentam como os depositários dos verdadeiros valores locais.
E de uma pureza assexuada...
O discurso sobre a sexualidade está associado a um discurso sobre a identidade e a cultura. Nós estamos presos. Se você fala sobre sexo, você é contra o seu povo, sua cultura, sua identidade. Falando de sexo, você afirma o indivíduo no grupo. E então o sexo supõe uma aceitação da intimidade, dos segredos. Isso desestabiliza os radicais.
Por que este é o seu principal assunto de estudo?
Desde a minha juventude, quero construir a minha liberdade. Não sou eu quem mais fala de sexualidade, mas os pregadores! Em todos os países muçulmanos, eles fazem pregações semanais sobre o assunto. Eu faço isso apenas em um livro, eles estão obcecados pelo assunto há um século. Eu não sou obcecada pelo sexo, mas eles são obcecados com a sexualidade das pessoas! Eles querem codificar a roupa que eu uso, como e onde devo beijar ou não; eles se colocam entre mim e a pessoa amada com suas leis, seus ritos e sua inquisição.
Você vive isso no cotidiano na Argélia?
Todas as pessoas o vivem, especialmente as mulheres. Temos que perguntar a uma mulher que não usa véu na Argélia o que ela sofre!
Se os religiosos rastreiam a sexualidade, isso significa que o sexo é inimigo de Alá?
O sexo supõe o corpo, e eles querem negar o corpo. Deus não é representado, ele não tem imagem. O corpo é um obstáculo no caminho de quem sonha com a pureza e a desencarnação. Se quisemos imitar a Deus, não temos corpo. Isso não é algo próprio apenas dos radicais islâmicos, mas de todos os monoteísmos. No cristianismo, por exemplo, o corpo de Cristo está pendurado em uma cruz e está sozinho. O nu de Cristo não é o nu grego. O Mediterrâneo produziu a luz, o sol e o monoteísmo, é um paradoxo.
Você é ateu?
Eu me recuso a responder a essa pergunta. Não gosto daqueles que se sentem obrigados a justificar seu ateísmo ou daqueles que se sentem obrigados a impor suas crenças. Isso é da ordem do foro íntimo, todos fazem o que querem.
Um árabe que escreve um livro sobre o sexo e a religião não tem um pequeno lado proselitista?
Então vamos imaginar: eu vou fazer um tratado sobre as nuvens para escapar dos temas “que vendem”, depois sobre as borboletas, o pólen. Mas em que a minha vida será útil? Não tenho o dever de tratar os assuntos os mais prejudiciais? Na Argélia, a sexualidade mórbida é uma obsessão – essa sexualidade do proibido, assimilada ao vício, empurrada para as margens. Esse tema sempre me preocupou. Se você vive em um gulag e escapa para entrar em uma terra livre, na França, na Europa, e você escreve sobre o seu sofrimento, que é lido, que é bem sucedido, que eu saiba, você é oportunista? Não.
Quer dizer que você equipara o seu sofrimento a uma forma de gulag interno?
É um gulag interno. Queremos queimar, trancar, esconder o corpo, inclusive ignorá-lo. E é mais difícil para as mulheres do que para os homens. A liberdade da minha esposa lhe custa mais do que a minha a mim. Eu quero que o mundo onde minha filha está crescendo a respeite e respeite a sua liberdade. Não é apenas um compromisso intelectual, é um compromisso de vida.
Seu livro será lido em seu país?
Ele chega às livrarias da Argélia em poucos dias. Eu faço o que posso para não ser lido apenas na França, porque eu gosto disso, ou porque paga bem e porque estou na moda... Mas também do outro lado do Mediterrâneo, no meu país.
Você começa seu livro por uma evocação de Paris. Não é apenas uma festa, mas é uma mulher, um convite à liberdade sexual. No entanto, a França é regularmente atravessada por polêmicas político-religiosas – apresentação de mulheres usando véu em campanhas publicitárias, uso de burcas na praia ou autorizações de burcas em piscinas municipais. O que isso lhe inspira?
O Ocidente pode se abrasar sobre os assuntos do corpo e da religião. Os tempos de ruptura – a ascensão dos populismos na Europa, do radicalismo religioso – sempre atacam o corpo e, principalmente, o corpo das mulheres. Na França, a sociedade discute temas de que tem medo ou não compreende ou manipula para uso político imediato. Mas há debate, há confronto, e isso é bom. Eu sou contra o véu, contra a sujeição do corpo da mulher e do corpo como regra geral.
Você diz que o Ocidente também tem uma relação com o corpo que é patológica. Como você a descreveria?
No Sul, escondemos a mulher. No Norte, nós a escondemos com o seu corpo. A mulher é vista apenas em relação ao valor do seu corpo. Você caminha e vê nos cartazes, o corpo cotidiano da mulher, exposto em propagandas, por exemplo, que é fantasiado, desejado. Este plástico funciona como um véu, uma restrição. Nós vemos a mulher apenas através deste corpo idealizado, este corpo-fantasiado, encerrado nos cânones da moda.
Você se sentiu solidário com o movimento MeToo?
Sim, nós entramos no século das mulheres. Eu quero sonhar que caminhamos de mãos dadas. O feminismo não deve ser exclusivamente um processo do homem e da masculinidade, mas uma tentativa de curar o masculino para chegar a ser um casal homem-mulher benevolente. Eu nasci em uma cultura argelina patriarcal e conservadora. Eu tratei minhas irmãs e minha mãe de maneira execrável. Era “normal” sentar-me à mesa e me fazer servir pelas mulheres. Demorei tempo para me curar.
Como?
Pelos livros.
Por este texto, mais uma vez, você está emprestando o flanco aos seus detratores que o acusam de “essencializar” o Islã e o mundo árabe, como se, de certa maneira, você estivesse pregando seus textos na noite de São Silvestre em Colônia.
Eu assumo. A palavra “essencializar” tornou-se similar a “islamofobia”, uma palavra para o uso da inquisição, em vez da compreensão. Sou acusado de dizer que nós árabes somos maus por essência... Mas eu nunca disse isso! Existe uma patologia para curar, que escondemos por uma especificidade e uma identidade cultural e religiosa. Aqueles que me acusam de “essencializar” vivem aqui, no Ocidente. São, às vezes, pessoas que nunca foram à Argélia ou que vão ali como turistas universitários. Não tenho eu o direito de falar sobre a minha realidade? De questionar a minha cultura?
O fato de ser árabe muçulmano não o protege da acusação de islamofobia.
É um paradoxo monstruoso! Pediram-me para ser a vítima, para calar a boca, e são eles – aqueles que se beneficiam de uma renda ideológica pós-colonial – que vão falar em meu lugar. O que eles recriminam em mim, no fundo, não é tanto o fato de “essencializar”, mas de atingir a imagem narcisista mental deste país e desta cultura... O adjetivo “islamofobia” encerra o debate, não podemos mais falar. Mas é ainda mais grave do que o que você acredita, porque na imprensa popular islamista, a palavra islamofobia é traduzida como “ódio do Islã” e não “medo do Islã”.
Você vive como um dissidente ou um traidor em sua comunidade?
As duas coisas. Entre nós, há uma fabricação do traidor. Entre vocês, há uma fabricação do dissidente. Eu faço o que tenho que fazer.
Sozinho.
Não, há pessoas que são muito mais corajosas do que eu. “Facebookistas”, youtubers que, na Argélia, estão na prisão. Eu sou famoso demais para as autoridades tocarem em mim.
Você está com medo?
Como todo mundo, estou com medo, mas o medo não está no centro da minha vida. Vamos dizer que eu vivo com muita cautela. E prossigo.
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Kamel Daoud: o sexo, as mulheres e o islamismo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU