03 Outubro 2018
Embora possa ser difícil para muitos católicos pensar além dos escândalos de abusos sexuais por parte do clero, existem algumas pistas de que esta não é única manchete que importa.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 02-10-2018. A tradução é de Victor D. Thiesen.
Vejamos, por exemplo, a Argentina, terra natal do Papa Francisco. No último fim de semana, três bispos se manifestaram sobre temas que hoje são prioridades para a Igreja local: relações entre Igreja e o estado, crime organizado e tráfico de pessoas. Esta última tem sido por muito tempo sendo observada pelo primeiro papa do Sul do planeta.
Depois que o Senado argentino votou no início de agosto contra a legalização do aborto, vários movimentos feministas e de esquerda estiveram fazendo campanha contra a Igreja Católica, culpando-a por tal resultado. Esta campanha incluiu uma “apostasia em massa”, com milhares de pessoas supostamente preenchendo papéis para renunciar à filiação na Igreja.
Os manifestantes pedem uma reavaliação da relação entre Igreja e Estado na Argentina, onde uma constituição de 1994 deixa claro que "o governo federal apoia a religião católica apostólica romana".
O arcebispo Jorge Eduardo Lozano, da arquidiocese de San Juan, que atuou como auxiliar de Buenos Aires sob comando do então cardeal Jorge Mario Bergoglio, hoje Papa Francisco, dedicou sua coluna semanal ao tema, dizendo que falar sobre a divisão de Igreja e Estado é "obsoleto e anacrônico, porque não estamos mais num estado confessional ou numa Igreja estatal".
“Aqueles que pedem este debate estão desconsiderando totalmente a liberdade religiosa e a liberdade de expressão daqueles que têm convicções de fé e estão ignorando o sentimento religioso do povo”, disse Lozano.
Lozano também insistiu que não se pode separar o que não está unido.
Como Lozano observou, um argumento apresentado pelos promotores do debate é que o governo argentino paga os salários dos bispos católicos, o que representa em torno de 0,04% do orçamento nacional. No entanto, como ele também aponta, a Igreja Católica se sustentou sem problemas até 1822, quando o governo retirou grande parte de suas terras e propriedades legítimas.
“Desde então, o estado financiou a Igreja de diversas maneiras como uma forma de compensação, argumentando que o dinheiro dado a cada ano nunca foi significativo nem para o estado nem para a Igreja”, continuou o prelado.
Na opinião de Lozano, criar um debate nacional sobre esta questão, à medida que o orçamento de 2019 está sendo analisado, é “desviar a atenção” de questões mais importantes, como “economias regionais, inflação, impostos e pensões”.
Lozano também mencionou que desde 1966 a Argentina tem uma concordata com a Santa Sé semelhante à assinada durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil, em 2008. O acordo, como ele aponta, define a relação entre o estado e a Igreja em duas palavras: “autonomia e cooperação”.
Autonomia significa que cada lado escolhe suas próprias autoridades por meio de mecanismos independentes e determina quais são suas prioridades. A cooperação significa que, quando possível, os dois trabalharão juntos na busca do bem comum, algo que o arcebispo exemplificou ao mencionar a atenção aos pobres e à educação.
“O secularismo agressivo silencia a natureza integral dos direitos humanos, tentando erradicar (às vezes com violência e atitudes patéticas) a religião, educação, economia, e até mesmo os pobres. A liberdade de religião e expressão daqueles que têm convicções religiosas é interrompida, e o sentimento religioso do povo é ignorado ”, argumentou Lozano.
"Estas são 'novas ideologias‘, com antigas predisposições totalitárias e aspirações imperiais", acrescentou.
Dois outros bispos abordaram outros assuntos neste fim de semana: o bispo Gustavo Carrara, auxiliar de Buenos Aires, conhecido como o primeiro “bispo vileiro” do país, pois foca seu ministério nas favelas da capital.
O segundo foi o arcebispo Eduardo Eliseo Martín, de Rosário - segunda maior cidade do país -, frequentemente descrita como "futura Medellín", em referência à cidade colombiana que foi atormentada pelo crime organizado.
Liderando uma “Missa pela paz” em uma paróquia local nos arredores de sua diocese, Martín pediu às autoridades que tomem medidas urgentes para acabar com “o tráfico, a distribuição de armas e a matança de pessoas”.
A paróquia havia sido atacada no dia 23 de agosto, presumivelmente como uma ameaça à comunidade, onde o padre local se manifestou contra a presença da máfia que importunava seu bairro.
“A Igreja precisa estar presente nos lugares mais necessitados, e também entre os muitos jovens que acabam escravos dessa vida crimes”, disse Martin.
“A cada dois dias uma pessoa é morta em Rosário, e o dinheiro sujo circula com mais frequência”, ressaltou Martin.
"Ninguém pode fingir estar distraído agora e nem desviar o foco do problema", acrescentou o arcebispo, exigindo que a classe dominante "fique atenta à esta situação".
Segundo Martín, o que as favelas de Rosário precisam é de “paz e tranquilidade. O que as pessoas querem, o que queremos, é poder viver à vontade, trabalhar, estudar, sair nas ruas, beber mate e visitar os vizinhos”.
“A segurança não está nas mãos do bispo, do padre, e muito menos na nossa, mas sim das autoridades. Por essa razão, exigimos com humildade e firmeza, que eles assumam seu compromisso, seu dever de manter as pessoas em segurança”, disse Martin.
Neste mesmo sentido, Carrara celebrou no domingo a missa anual na Praça Constitución pedindo por uma sociedade livre da escravidão contemporânea e das pessoas marginalizadas. A celebração desta missa anual foi iniciada por Bergoglio em 2008.
Segundo o bispo, “os católicos devem ficar atentos a marginalidade, ao tráfico humano e à exploração”.
"Nossa situação social é desafiadora e complicada. Todos vocês são batalhadores. Unidos, podemos fazer muito por aqueles que mais sofrem”, disse Carrara.
“Esse mercado clandestino nos dá falsas esperanças para resolvermos nossos problemas, quando na verdade estamos nos afundando na lama. Nós enquanto sociedade devemos nos unir para enfrentar esse mal”, acrescentou o bispo.
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Argentina. Desafios além da crise dos abusos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU