29 Agosto 2018
É a primeira vez que o horror é filmado. E nós vimos aquelas imagens, as mesmas que ficaram impressas nos olhos do Papa para buscar um sentido. Mas não o encontramos.
A reportagem é de Francesco Merlo, publicada por La Repubblica, 28-08-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Assistimos, nós do jornal La Repubblica, aos vídeos de campos de internação líbios que assustaram o Papa. E, talvez, porque é a primeira vez na história que um martírio, o dos refugiados, é filmado, fechamos nossos olhos enquanto paus e facas atingiam e perfuravam um garoto negro. Mas o áudio não foi tirando, então continuamos a "ver com os ouvidos" o que a vista não podia suportar: o barulho dos chutes sobre os ossos, os sons das pauladas no peito, no rosto e nas pernas, todos os sons do horror ortopédico. E, em seguida, em outro vídeo, o longa som da facada satisfeita, não aquela seca dos açougueiros do ISIS, mas o lento trabalho da lâmina que perfura, do facão que decapita, e o esgar do torturador que, antes segura pelos cabelos a cabeça sem corpo e depois chute o corpo sem cabeça.
Torturas de um migrante na imagem parada de um dos vídeos vistos também pelo Papa Francisco. Não publicamos o vídeo porque é muito violento (Foto: Avvenire)
A segunda vez, quando olhamos aqueles vídeos para narrá-los, pelo contrário, os vasculhamos com os olhos, para buscar um sentido que não encontramos. Porque o horror que emerge da lama dos séculos tem-nos ensinado que no oposto da rejeição, da indignação e do escândalo, está a inteligência, está o entender, está a luz que nós aqui não vemos. Sabemos o que acontece nos campos da Líbia, mas não entendemos por quê. E como podemos, agora que vimos, sequer pensar em enviar para aquelas câmaras de tortura os refugiados que conquistam com a fuga o destino de sobreviventes, que sobreviveram à ferocidade do homem que seria muito fácil definir como homem-besta?
Ficamos atados ao tema político de imigração: as cotas, a Europa, as contagens, os controles, os navios, as leis. Depois chegam esses vídeos e descobrimos a fisicalidade da tortura. Olhamos para eles sem a mediação da lógica, e percebemos apenas a crueldade e a feiúra.
E somem os raciocínios, desaparecem as distinções do "este é um problema complexo". Aqui está a absoluta banalidade da verdade que está por trás dos nossos debates, a nossa briga pela identidade e fronteiras: a dor aqui é evidente demais para ser argumentada.
Explica-se por si só o que pode sentir um garoto que rasteja, contorcendo-se, é reduzido a uma barata, com a carne massacrada, enquanto ao seu redor espalham-se as manchas de sangue. Há uma jovem forçada a segurar um tijolo com as mãos na cabeça.
De joelhos, os olhos cheios de medo, esperando que a golpeiem, que quebrem o tijolo com um taco. Depois se esmeram com socos no rosto e nos olhos e, enquanto isso, riem, incentivam-se e, juntos, seguram imóvel a garota que treme, talvez busque alívio nas convulsões, enrijece-se, olhos fixos e lágrimas escorrendo. São pelo menos cinco a bater no corpo desfalecido. E quem sabe onde está a menina, quem sabe se lavaram com uma mangueira o que restava dela, ou se as torturas lhe granjearam um lugar no bote. E talvez tenha se afogou ou talvez seu corpo humilhado e maltratado tenha sido recolhido por alguém e talvez ela também esteja entre aqueles que agora não queremos na nossa casa.
Acreditem em mim: no sofrimento daquela mulher, como certamente o Papa deve ter notado, há um algo a mais de mistério, de humanidade e de espiritualidade. Esses corpos humilhados, mesmo nesses vídeos horríveis, parecem - é difícil dizer - mais belos e o mais normais dos corpos deformados dos algozes que os torturam não só para aterrorizar os outros escravos, e convencer seus parentes a pagar o bilhete da esperança cada vez mais desesperada, aquela do Mediterrâneo. Na verdade, seria o suficiente muito menos para causar medo.
Permanecem, portanto indecifráveis esses carrascos, açougueiros covardes, que executam rindo seus crimes em uma cenografia degradada de sujeira e paredes lascadas. Por que eles fazem isso? Esses demônios líbios não se assemelham à invenção literária e mórbida de Sade, não são os racistas do genocídio étnico de Milosevic, os exterminadores de Ruanda, os fanáticos de Pol Pot ... E há uma forte suspeita de que eles próprios tenham gravado as imagens, ou permitiram que os refugiados o fizessem, não só para assustar e chantagear, mas por um grotesco orgulho de si mesmos. De fato, existem closes dos torturadores que, em alguns frames de vaidade e complacência, saem das sombras para mostrar que cara têm os bastões e as lâminas. E golpeia a perda dessa consciência que, por si só, permite que alguém sinta horror de si mesmo. Mas seria muito fácil dizer que sem ela não há mais o homem, mas outra coisa em seu lugar. Eles são homens, infelizmente, e não se escondem mais.
Os nazistas torturavam em bosques distantes, em apartamentos afastados - Birkenau quer dizer "bosques das bétulas" - e a polícia stalinista nos campos de concentração inacessíveis da Sibéria, onde até mesmo o cuspe congelava no ar. Secretamente, porque eles fingiram ser bons. Eles tinham a consciência do delito e, assim, escondiam a história apagando os vestígios no afastado e no indefinido.
Mercado de escravos na Líbia (Foto: Avvenire)
Em vez disso, como dissemos, é a primeira vez que um martírio é transmitido ao vivo. Ninguém pode ver e rever os corpos dos cristãos enquanto eles eram jogados aos leões no Coliseu. Vimos fuzilamentos, execuções em massa, terríveis imagens de guerra, as decapitações e degolações do Isis exibidos como propaganda, mas não existem vídeos de Auschwitz, com as tortura e os fornos crematórios ao vivo, não há imagens gravadas de Mengele "durante” o seu trabalho. Na Lubyanka ninguém tinha câmeras e o Arquipélago Gulag não foi documentado com o celular. Até mesmo de Guantanamo chegaram apenas fotos, cães na coleira, os uniformes, os fios elétricos sobre os corpos, as cabeças encapuzadas. E ninguém jamais viu o pequeno Di Matteo dentro da banheira que Brusca havia enchido com ácido.
Tudo foi reconstruído pelo cinema, nas pinturas, nos livros e nos jornais. As testemunhas também contaram os detalhes, mas não havia smartphones em Dachau. Nem mesmo as violências infligidas por traficantes de drogas na América do Sul, que também foram registrados, nunca tinham sido divulgadas.
Em uma entrevista de 1983 sobre o tema da memória, perguntei a Leonardo Sciascia o que distinguia o homem dos outros animais. Vamos rever as respostas: a fé em Deus, o riso, o uso das mãos para construir e destruir, o suicídio ... finalmente chegamos à memória. E Sciascia disse que talvez a memória - que todos os animais têm, e até mesmo as plantas, a água, as pedras - mas o registro da memória faz a diferença. Ou seja, o registro do que acontece, por escrito, portanto, em todas as suas várias formas, desde o pontinho vermelho encontrado na parede de uma caverna pré-histórica aos hieróglifos e ao alfabeto digital no papel e, portanto, à imprensa ao smartphone, que ele não conheceu, e a esses vídeos que documentam aquilo que corremos o risco de nos tornar, aquilo que estamos nos tornando.
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Líbia, os vídeos de tortura e aqueles refugiados mártires - Instituto Humanitas Unisinos - IHU