01 Agosto 2018
Que Hélio Bicudo descanse em paz, após 96 anos entre nós.
Teve, por décadas, atuação destacada como jurista e promotor, culminando com o corajoso combate ao esquadrão da morte, em plena ditadura.
Participou da fundação do PT, tomou parte do secretariado da administração Erundina - a melhor e mais socialmente justa gestão que a cidade de São Paulo já teve - e foi vice-prefeito de Marta Suplicy.
Poderia partir sem a enorme mácula em sua biografia que é ter protocolado o pedido de impeachment contra a presidente eleita Dilma Rousseff - não pelo ato em si, posto que facultativo a qualquer cidadão oferecer tal denúncia, mas pela clamorosa inexistência de crime (algo que hoje até muitos dos que defenderam a interdição de Dilma reconhecem), combinada ao caráter claramente golpista dos políticos que o articularam.
Minha hipótese é que tal ato, que contraria a trajetória de Bicudo, advém de um misto de mágoa acumulada pelo tratamento que o PT vinha lhe dispensando e ingenuidade ante o discurso moralista e o denuncismo dos partidários do impeachment - nos dois casos, agravado por efeitos psicológicos que a idade avançada pode provocar.
Tudo somado, não deixa de ser uma triste ironia - e uma tragédia - que uma figura pública que dedicou grande parte da vida em prol da defesa dos Direitos Humanos tenha, com esse gesto crepuscular, ajudado a impulsionar, ainda que de forma involuntária, o protagonismo político dos que combatem e desprezam os DHs, cujo símbolo é um candidato que renega a ditadura contra a qual Bicudo, mesmo em um momento brutal da história do país, tão corajosamente se insurgiu.
Para quem tem alguma dúvida sobre o gigante que foi Hélio Bicudo, transcrevo o depoimento de Enio Basilio Rodrigues:
"Certo dia, em 1969 eu estava almoçando na excelente e há muito extinta Adega Arouche, quase ao lado do La Casserole. Aliás foi lá que o dono, um português, inventou o filet à cubana (com presunto em tirinhas, ervilhas, batata palha, etc.). Mas o assunto não é culinário. Em uma mesa próxima almoçava, sozinho, o então jovem promotor Helio Bicudo – um homem amável, pequeno e magrinho, de corpo e voz frágil - que na época havia assumido as investigações contra o Esquadrão da Morte – um grupo de torturadores e assassinos que se dedicavam ao extermínio de contraventores que não lhes pagavam propinas ou que se opunham a outras quadrilhas protegidas pelo grupo de policiais. O líder inconteste do Esquadrão era o delegado Sergio Paranhos Fleury, que comandava uma brigada de investigadores, delegados e dedos-duros. Os assassinatos chegavam a dezenas – inclusive com presos retirados da Casa de Detenção e exterminados na periferia. Fleury, pouco tempo depois, brilharia como chefe do Dops e como maestro da tortura e assassinato de opositores do regime militar. A Adega Arouche era um restaurante não caro, mas ponto habitual de advogados, jornalistas, pessoal de bancos, gente engravatada do centro. Lá estava eu e observei Helio Bicudo, almoçando, solitário, em uma mesa próxima. Foi quando vi entrar o time do Esquadrão, com Fleury à frente e acompanhado de sua tropa – Campão, Tralli, Fininho, Raul Careca, Porquinho, Correinha – todos indiciados pelo promotor Bicudo. Sentaram-se em duas mesas, cercando a mesa do Bicudo. E passaram a insultá-lo. Exibiam suas armas, tirando e recolocando os carregadores.
Diziam que ele ia morrer naquele dia. Os frequentadores do restaurante observavam apavorados, eu inclusive (que, acovardado, sai de lá dobrado pelo remorso de não ter ido sentar na mesa do Helio, e é quando a gente aprende que não é fácil ser herói e, por isso, virei publicitário). Mas, cada vez que revejo a cena lembro-me que o mais impressionante foi a serenidade do ofendido – continuou a comer, sem ver os agressores e seu olhar tristonho não transparecia medo nem as suas mãos tremiam. Pagou a conta e saiu, cabeça erguida e só o vento, na calçada, balançou um pouco seu corpo frágil. E ele levou adiante seu inquérito."
Você não saberia o que significa a expressão "Esquadrão da Morte" se não fosse por Hélio Bicudo. Você não saberia o que é "milícia" se não fosse por Hélio Bicudo. Esse brasileiro gigante denunciou e indiciou o Esquadrão da Morte em plena ditadura.
Quer coragem? Isso é coragem.
Em face disso, entenda, sua discordância-zinha com a ruptura de uma aliança político-eleitoral em um processo de impeachment não significa nada.
In memoriam, Hélio Bicudo, presente.
Segundo a coluna Painel, da Folha, no dia 4 de agosto petistas vão levar alimentos a famílias das periferias do país dizendo que “foi Lula quem mandou entregar”.
Espero que seja informação falsa.
Conheço um rapaz que mora lá no meio do mato. Gente boa, sempre muito prestativo, bom marido, bom pai. Eu o conheci ainda criança. É um pequeno empresário, dono de uma confecção de calcinhas e sutiãs.
Ele tem excelente imagem dos governos de Lula, mas detesta o governo Dilma. E ele tem muito medo do mundo no qual sua filha pequena irá viver.
Ele não entende muito de política, mas está profundamente preocupado e desesperançado. Acha que todos os políticos são ladrões.
E resolveu votar no Bolsonaro, embora reconheça que o Bolsonaro não entende nada de economia, saúde ou educação. Mas é um cara que fala grosso, que não se envolveu em corrupção e que vai saber colocar ordem em tudo isso.
Questões como ditadura, misoginia ou tortura nem passam perto do discurso desse rapaz.
Eu gosto muito dele, mas, antes de pedir para que ele não vote no Bolsonaro e escolha um candidato de esquerda, estou com uma dúvida e gostaria da ajuda de vocês.
Eu digo que ele é um imbecil alienado ou que é um fascista enrustido?
Pra mim há dois eleitores do Bolsonaro e a esquerda está vendo apenas um, que nem é a maioria.
Há o eleitor raiz do Bolsonaro. O cara que defende a ditadura e a tortura, que é profundamente misógino e racista. Esse cara fala mais alto, participa ativamente do Facebook, do WhatsApp e dos comentários em jornais e dá a impressão de ser o retrato do eleitor típico do Bolsonaro.
Mas ele não é a maioria e não deveríamos gastar muito tempo com esse tipo, porque tudo o que ele quer é briga e polêmica.
Mas há um segundo eleitor do Bolsonaro. É um cara totalmente desiludido com a política (não sem razão) e bastante assustado com um mundo que ele não entende, mas que só chega até ele na forma da violência.
Esse cara quer votar em alguém que seja contra tudo o que está aí. É um voto de revolta, medo e desesperança.
Tratar esse cara como se fosse (1) um fascista e/ou (2) um débil mental só empurra-o cada vez mais para o colo do Bolsonaro.
E, ao mesmo tempo, esconde o nosso grande problema: não temos um discurso para contrapor a desilusão, porque em grande medida a esquerda contribuiu para a desilusão.
Então, se seguirmos assim, nossa única esperança é que a direita resolva bater no Bolsonaro. Que ironia...
Muitos estão perplexos com a natureza do poder fascista e sua eficácia no Brasil de hoje. Para compreender o sentido e a força dessa política é preciso lembrar que fascistas e liberais andaram juntos nas ruas por um ano e meio, para criarem a cultura política do ódio à esquerda. Tinham política comum, e um campo deu poder ao outro. Os jornalistas que foram condescendentes e levantaram temas de reflexão para o fascista reafirmar sua lógica do acinte, da mentira e do revisionismo, ontem, trabalham em meios de comunicação hiper orientados para colocar s esquerda no lugar do mal, e recusarem as violências sistemáticas do poder real, de mercado e Estado. Essa posição é formalmente coincidente com o fascista, e por isso eles também não sabem confrontá-lo. O mercado se sente tranquilo com o fascista, que garante a plena liberdade e a proteção do dinheiro, enquanto promete dar às massas o gosto de sangue de um sacrifício ritual de pobres e minorias, degradando a ideia tradicional de ordem em autoritarismo, irresponsabilidade imediata do poder e violência. Os milionários e homens do mundo não se constrangem em ter uma fachada política populista de direita, que aumenta o poder repressivo do Estado, e terceiriza o poder e as decisões econômicas para o próprio mercado. Estado como fascismo para as massas, e neoliberalismo radical para o mercado, o modelo riqueza/violência Pinochet. Os ricos encontram por fim no fascista a verdade do seu destino político. Tudo isso está de fato em jogo e faz parte do movimento histórico da ascensão do fascismo entre nós, como braço ativo do golpismo, a partir de 2013 e 2014. Como bons liberais não podem contar esta história, que é também a deles, eles também não podem dizer quem é o fascista. Suas imagens no espelho da história se embaralharam. É o que chamei de o fascismo partilhado para a produção de política, o “fascismo comum”. Semana que vem sai o meu livro “Michel Temer e o Fascismo Comum” que conta essa história e tenta de todo modo entender e produzir sentido político para o combate desse nosso mal limite, e comum, que é mesmo um mal da história.
Ontem ficou nítida a inutilidade do establishment liberal para enfrentamento do populismo autoritário. A todo tempo parecia que víamos uma repetição da estratégia de Hillary Clinton - produzir o escândalo e parecer esnobá-lo - que por sua vez já foi incorporada como o principal mecanismo de popularidade do próprio candidato. Em outros termos, nos últimos dois blocos os jornalistas trabalharam pra ele.
Em vez de buscar aprofundar os assuntos e demonstrar as fragilidades, eles navegaram todo tempo na superficialidade, sempre buscando dar a "lacrada" que irá escandalizar. Esse é o campo do adversário. Mal-preparados, não foram capazes de superar polêmicas recicladas de redes sociais para as quais o candidato estava preparado. Citaram muitos pontos que - embora não devessem - energizam a base autoritária, acreditando num senso de civilidade claramente inexistente no Brasil. Não foram capazes de levantar as inconsistências de, por exemplo, "retaguarda jurídica policial" ou "castração química", como se esses projetos não fossem estrondosamente inconstitucionais. Quando acertaram - como na pergunta da mortalidade infantil, que expôs a ausência de preparo - não insistiram, voltando às lacradas.
O mais perigoso é que o outro lado, a esquerda, também não dá nenhuma esperança. Se os jornalistas estão tão comprometidos com a cartilha liberal que não puderam aproveitar uma declaração como "quero o trabalho beirando a informalidade", ao menos quem sabe a esquerda pudesse. Perguntem quais direitos trabalhistas serão revogados. Se ele vai terminar com o SUS. Isso é pop entre os minions, mas nada popular entre os pobres. Mas o PT não tem recursos retóricos quaisquer no momento (na verdade, o discurso em torno a Lula - único do qual se fala - é exatamente o que o outro lado quer ouvir) e Boulos segue com a pauta bizarra de criminalização, como se isso agora fizesse alguma diferença.
Ou seja, nossa única esperança para evitar um segundo turno com o populismo autoritário entre as opções é a atitude de Ciro Gomes, que tem o tom certo de enfrentamento pragmático e objetivo (que os jornalistas deveriam copiar).
PS: Não acho que Bolsonaro tenha feito muitas cabeças, mas a esperança é que ele perca votos - e não apenas que não aumente sua base.
Outro dado curioso do noticiário norte-americano:
Bernie Sanders e Alexandria Ocasio-Cortez aproveitaram o bom momento que vivem e fizeram um comício no Kansas, um dos estados mais conservadores do país e terra dos tais irmãos Koch.
Lá, eles buscaram impulsionar a campanha de James Thompson, um ex-filiado ao partido republicano, iniciante na política e de origem pobre. Sem moradia e sem escola, Thompson se alistou no exército e, daí, se filiou ao partido republicano. Hoje, sua principal pauta tem sido a saúde pública universal.
Enquanto aqui morremos de medo de conversar com um bolsominion...