01 Agosto 2018
Há dois anos Catherine Price decidiu que tinha de romper a relação que tinha com o celular. Pelo caminho, escreveu um Manual de Desintoxicação sobre o processo. Em entrevista, explica aquilo que aprendeu e partilha as estratégias que usou.
A entrevista é de Karla Pequenino, publicada por Público, 30-07-2018.
Aos 37 anos, a norte-americana Catherine Price, autora e jornalista de ciência, percebeu que já não sabia ocupar o tempo livre sem o telemóvel e que, por isso, a relação tinha de acabar. A decisão chegou em 2016 quando estava a amamentar Clara, a filha recém-nascida. “Reparei que enquanto eu olhava para a tela e deslizava os dedos por mensagens antigas e candeeiros em lojas online, ela estava a olhar para mim. E eu não estava a olhar para ela,” relembra a autora. “Não queria que essa fosse a sua primeira memória de interação com outra pessoa.”
A experiência para diminuir a necessidade de ter o celular sempre na mão, levou Price a uma investigação sobre os efeitos dos aparelhos na mente e no corpo humano, e à forma como as grandes empresas tecnológicas os criam para ser viciantes. Os problemas são vários: a luz azul que é emitida por aparelhos modernos influencia o ritmo circadiano do ser humano e desregula os padrões normais de sono, o uso excessivo do aparelho está associado a problemas de isolamento nos jovens, e as pessoas estão mais focadas nos aparelhos que no mundo em redor. Há quem os use mais de sete horas por dia.
Os resultados são detalhados no livro Como largar o celular: Manual de Desintoxicação, publicado este mês pela Arena. Na entrevista, Catherine Price fala das conclusões e partilha estratégias para reconquistar o tempo que se perde ao celular em 30 dias. “O primeiro passo é querer romper a relação amorosa que se tem com o celular.”
Na versão original, o título do livro é mesmo “acabar o namoro com o telemóvel”. O objectivo é que os leitores abandonem totalmente os aparelhos?
Atenção, o meu livro não é sobre atirar o aparelho para baixo de um caminhão. Isso não é realista. Estamos a falar de smartphones, telemóveis com acesso à Internet, que nos dão direções e permitem fazer compras. É impossível negar a utilidade para nos conectar ao mundo, mas a realidade é que usamos demasiado estes aparelhos. Quando estamos aborrecidos, a primeira solução é agarrar no celular. Durante a noite, dormimos com ele debaixo da almofada. Se ouvimos o som do SMS temos necessidade de o ver de imediato. É como um romance obsessivo, em que dependemos da outra pessoa para tudo, e isso não é uma relação saudável.
O telemóvel é uma enorme parte do nosso quotidiano. Como é que se sabe que se tem um problema?
Uma forma rápida de perceber a dimensão do problema é o CAGE, o questionário de quatro perguntas para detectar problemas de alcoolismo. Basta substituir álcool por smartphone. Têm de ver o celular assim que acordam de manhã? Sentem necessidade de passar menos tempo ao celular? Sentem-se culpados com o tempo que passam ao celular? As pessoas criticam o tempo que estão a mexer no celular? É assustador. Felizmente, o meu livro saiu na altura certa, por coincidência, com o escândalo dos dados do Facebook a alertar as pessoas sobre a forma como registram a vida toda nos aparelhos. E empresas como o Google e a Apple lançarem sistemas para nos ajudar a “largar o celular”. Não é por estarmos todos viciados que a forma como usamos o telemóvel se justifica.
Hoje é possível aceder à Internet e às redes sociais em relógios, em tablets, no computador... Porquê o foco nos smartphones?
A diferença entre o smartphone e os computadores ou tablets é que temos os celulares sempre conosco. As sugestões do livro podem ser adaptadas a outros contextos, mas se olharmos à nossa volta, ninguém abre o portátil para trabalhar no elevador. Os celulares tornam-se um problema único devido à sua portabilidade e, também, à capacidade de nos interromperem constantemente com notificações.
Um dos conceitos mais explorados é a ideia que as empresas estão a programar os smartphones para ‘raptar’ o nosso cérebro e levar-nos a passar mais tempo neles. Onde é que isto se vê?
Fiquei chocada pela facilidade com que os smartphones podem ser comparados às chamadas slot machines, com o deslizar dos nossos dedos pela tela a ser o equivalente ao puxar a alavanca da máquina da sorte. Reparem que a maioria das aplicações é criada para nos recompensar por usá-las mais tempo.
No livro surgem alguns exemplos.
A funcionalidade de “streak” na aplicação de mensagens do Snapchat. Quando as pessoas trocam mensagens entre si todos os dias na aplicação, surge um ícone com uma chama do lado do nome do utilizador que aumenta para motivar o utilizador a manter a tendência. Já o Instagram está programado para ocultar novos “gostos” aos utilizadores de modo a apresentá-los de uma só vez no momento mais eficaz possível.
As redes sociais são o grande problema dos smartphones?
As redes sociais não são o inferno. O que está mal é a necessidade de tocar no celular e abrir uma aplicação – qualquer que seja – quando se está a trabalhar, quando se está a conduzir, numa conversa menos interessante. Algumas pessoas justificam o tempo que passam no telemóvel com a necessidade de estar ‘conectado com o mundo’, mas ninguém precisa de estar conectado, mesmo que seja às notícias, 24/7. Está-se a fazer algo sobre as ações humanitárias que tanto se lê? E está-se mesmo a ler o artigo todo ou o mais recente tweet sobre Donald Trump? É preciso refletir sobre isto.
A Apple e o Google lançaram recentemente painéis de controlo no telemóvel, para perceber o tempo que se passa a utilizar o aparelho. Isto é uma forma dos gigantes ajudarem as pessoas a combatê-lo?
É uma admissão do problema. Curiosamente, ainda não nos ajudam a passar menos tempo com os celulares, mas no livro recomendo que os leitores que querem largar o celular utilizem aplicações do gênero. Ajudam a perceber o tempo que passam no celular.
Uma das primeiras sugestões do livro é experimentar uma “desintoxicação digital” de 24 horas em que se desliga o telemóvel. O que é preciso para que tenha sucesso?
Isto é uma separação teste para se perceber a falta que se sente do celular, e descobrir tempo para fazer outras coisas como ler livros sem distrações. Quando comecei o ritual semanal com o meu marido, estávamos constantemente tentados a pegar no celular. Dizíamos a nós próprios que era com o receio de perder uma mensagem importante. É uma preocupação comum. Para evitar a ‘desculpa’, recomendo avisar outras pessoas que se está a fazer uma desintoxicação e avisar como é que nos podem contactar em caso de emergência. Uma forma de fazer isto é criar uma mensagem de resposta automática, no celular, que remeta para um número de telefone fixo, ou uma visita a casa. É impressionante o quão pouco as pessoas precisam, realmente, de nos contactar. Outra forma de começar a desintoxicação, é deixar o celular para trás quando se vai jantar fora.
Quem lê o livro é convidado a preencher questionários diários sobre o seu processo de “desintoxicação” de 30 dias. O que é que aprendeu com as respostas dos leitores?
Há pessoas que passam sete horas por dia a mexer no celular e a média são quatro horas diárias. Até terem de parar para pensar no assunto, não percebem. O mais impressionante é o quão semelhante somos. As respostas são quase iguais: gostamos do telemóvel porque nos conecta com o mundo e com quem está longe, e não gostamos porque sentimos que começamos a perder muito tempo nas redes sociais, nas aplicações de jogos, e em sites de namoro. São os três grandes vícios.
O que mais a preocupa sobre os resultados?
Estamos a deixar o smartphone alterar a forma como somos humanos. Fala-se mais por mensagens que cara-a-cara, e há uma espontaneidade que se perde nesse tipo de conversas. A nossa dependência do celular para combater o aborrecimento impede-nos de usufruir de momentos, de refletir e de pensar sobre a vida. As viagens de comboio já não são feitas a pensar e a descansar mas a fazer scroll no celular. Quantas grandes descobertas surgiram de momentos de introspecção? Vão deixar de existir?
Os efeitos dos celulares nas crianças são outro dos grandes focos do livro. Qual é a idade certa para introduzir o aparelho?
Ninguém sabe – estamos viver uma enorme experiência descontrolada em que os nossos filhos crescem, pela primeira vez, agarrados ao celular. Mas sei que aos 10 anos, que é a idade média nos EUA, é cedo demais. É importante saber estar aborrecido quando se está a crescer. Desenvolve a criatividade, aumenta a persistência. O celular impede isto porque com jogos, redes sociais, Internet, está constantemente a estimular os mais novos. Os pais justificam que querem que os filhos estejam contactáveis, mas não é preciso celulares com Internet para isso. Há outras opções, telemóveis mais básicos, relógios com GPS.
O seu livro não é o primeiro a fazer estes alertas. Nos últimos anos, o conceito de “distracção digital”, em particular, pelo uso do smartphone, vem associado a problemas com a qualidade de sono, postura, problemas de aprendizagem nas crianças, vícios em videojogos, e um aumento da ansiedade. As pessoas estão a ignorar os avisos?
Os alertas não estão a ser bem-feitos. Não pode ser só dizer que passamos muito tempo no celular e precisamos de uma dieta. Ninguém gosta de dietas. Por isso é que digo ‘criar uma nova relação’. É preciso mostrar que o celular começa a ser o obstáculo para coisas que queremos fazer.
Qual é a relação perfeita com o celular?
Tal como com pessoas, não há relações perfeitas. O objetivo do meu livro é ajudar a chegar a uma relação mais saudável. Caso contrário corremos o risco de passar horas a fazer nada, a não ser deslizar com os dedos para cima ou para baixo.
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“Estamos deixando o celular alterar a forma como somos humanos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU