29 Junho 2018
“Pacote do veneno” avança na Câmara, abafado por silêncio sepulcral da mídia. Mas a folia não vai durar pra sempre — e um governo comprometido com outro modelo agrícola terá muitos instrumentos para enfrentar a grande propriedade.
O artigo é de Paulo Kliass, doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, publicado por Outras Palavras, 27-06-2018.
Estamos chegando ao final de junho e seguimos com essa aparente falta de entusiasmo da população para com a Copa do Mundo e com a seleção brasileira. É bem verdade que tudo isso pode mudar caso a equipe comandada por Tite melhore seu desempenho e avance para as novas etapas da competição. No entanto, o clima geral sugerido pelos grandes meios de comunicação é de antecipação das férias do meio do ano.
Aproveitando esse período de anestesia generalizada, quase passou desapercebido da maioria da população um dos raros momentos de deliberação do legislativo federal. Em uma plena segunda-feira, a comissão especial da Câmara dos Deputados encarregada de discutir e votar projetos relacionados ao uso de agrotóxicos reuniu-se com quórum e aprovou um parecer do relator que libera o uso de vários tipos de defensivos em nosso país. Mais uma das inúmeras loucuras perpetradas nesse quesito!
É bem verdade que o assunto ainda precisa ser votado no plenário da Câmara e depois seguir para ser apreciado novamente pelo Senado Federal. Assim, haveria maior espaço para que sejam divulgados mais amplamente todos os absurdos e as atrocidades contidas no texto, que foi consolidado pelo deputado Luiz Nishimori (PR/PR). Na verdade, trata-se de um projeto que teve sua tramitação iniciada ainda no Senado Federal, de autoria do Senador Blairo Maggi, conhecido defensor dos interesses do agronegócio. O Projeto de Lei nº 6299 foi apresentado em 2002 pelo então maior plantador de soja do mundo, antes que o mesmo fosse eleito governador por 2 mandatos para dirigir o estado de Mato Grosso.
O êxito obtido em mais essa etapa no interior do legislativo deve ser creditado ao poder exercido pela chamada bancada do agronegócio. A articulação dos ruralistas no interior do Congresso Nacional nos remete à formação da União Democrática Ruralista (UDR), ainda na década de 1980. A iniciativa visava defender os interesses dos fazendeiros, em especial por conta das perspectivas da Assembleia Nacional Constituinte, que iniciou seus trabalhos em 1986. À época, o seu principal foco era evitar que o tema da reforma agrária progredisse naquele espaço, além de estimular a classe dos proprietários de terra em seu endurecimento frente ao movimento dos sem terra. A maior liderança da UDR, Ronaldo Caiado, ganhou notoriedade a partir de então e tornou-se uma referência da violência patronal contra os agricultores em nosso país. Foi eleito deputado federal em 1991 e exerceu 5 mandatos consecutivos, antes de tornar-se senador em 2015.
A forte presença dos lobistas em favor da categoria se revela nos corredores do Poder Legislativo e também do Poder Executivo. Em função de sua capacidade de articulação e do número expressivo de integrantes com poder de voto nos plenários das duas casas do Congresso Nacional, os sucessivos governos terminaram por ceder aos seus pleitos. Assim foi com a votação do Código Florestal, com as concessões feitas para ampliar o aceso de estrangeiros às terras, com a liberação sistemática de defensivos/trasngênicos/similares, no tratamento flexível concedido ao trabalho escravo, nas periódicas renegociações das dívidas tributárias do setor, na concessão de crédito subsidiado para as atividades agrícolas pelo Banco do Brasil, entre tantas outras facilidades.
Além de operar pela aprovação de matérias que satisfaçam os interesses do agronegócio, o trabalho de “lobby” também inclui a tarefa de evitar que sejam apreciadas ou votadas medidas que possam contrariar os ganhos desse setor. Para tanto, contam com o florescimento da imagem de um ramo da economia que tem contribuído para evitar que a recessão econômica fosse ainda mais desastrosa, em razão da opção que o comando econômico fez pela estratégia do austericídio.
Assim, é fato que a queda do PIB só não foi mais acentuada em função da presença da agricultura e da pecuária, uma vez que o foco das suas atividades está nas exportações. Como os mercados estrangeiros não são afetados pela crise interna brasileira, o fluxo de venda de commodities no mercado internacional segue firme e forte. Porém, essa visão de “salvadores da pátria” que eles mesmos tentam se auto atribuir não pode significar a isenção em relação ao enorme sacrifício que vem sendo imposto ao conjunto dos demais setores de nossa sociedade.
Além de todos os aspectos gritantes das medidas anacrônicas e injustas acima apontadas, salta os olhos também a enorme facilidade com que os interesses do agronegócio escapam da tributação. Como fazem parte de uma estrutura de impostos marcada por profunda regressividade, a classe de proprietários agrícolas mantém os mesmos privilégios dos seus parceiros das demais frações do capital. Como as altas rendas e o patrimônio permanecem intocáveis “vis-à-vis” os instrumentos de arrecadação tributária, o agronegócio não contribui em nada nesse quesito para nosso orçamento.
A ausência de regulamentação do Imposto sobre Grandes Fortunas, tal como previsto no art. 153 da Constituição Federal, mantém o setor intocável a esse respeito. O caráter irrisório e pouco utilizado da legislação sobre heranças também o beneficia e contribui para reforçar o caráter de injustiça da tributação tupiniquim. A absurda isenção concedida a lucros e dividendos das empresas faz com que os rendimentos obtidos por cada um dos empresários do agronegócio sigam sendo ignorados pelo sistema de impostos, ao contrário da maioria da população. Por outro lado, os tributos específicos do setor tampouco se fazem presentes. O Imposto Territorial Rural (ITR) é muito pouco utilizado e o Brasil está muito atrasado em termos de sistemas de geo-referenciamento para mapear e tributar a imensidão das propriedades agrícolas conhecidas por todo o território nacional. A União praticamente abriu mão de tributar a propriedade rural e se propôs a realizar convênios com as prefeituras para esse fim. Sabemos muito bem qual será o resultado dessa aventura liquidacionista, uma vez que a capacidade de pressão dos fazendeiros junto aos prefeitos é muito maior.
Finalmente, o governo federal sempre teve à sua disposição o Imposto sobre Exportações. Tributar as vendas de commodities para o exterior não exige nem mesmo a aprovação de nova lei. Basta uma portaria do Ministério da Fazenda, estabelecendo o valor da alíquota que deverá incidir sobre a tonelada de soja, o litro de suco de laranja, a tonelada de carne e assim por diante.
A gravidade da crise fiscal e a discussão a respeito das perspectivas de arrecadação tributária para 2019 deve ser um dos pilares do debate eleitoral. Não se pode continuar a exigir sacrifício da absoluta maioria da população e manter os privilégios para uma minoria. Já passou da hora para que o agronegócio passe a dar sua cota de contribuição no que se refere à recuperação da capacidade de arrecadação do Estado brasileiro.
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Os gols do agronegócio contra o Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU