11 Junho 2018
Pesquisa de historiadora da Universidade de Michigan revela amplo painel do pensamento antirracista entre 1900 e 1990.
Foto: Reprodução Editora Unicamp
A reportagem é de Marta Avancini, publicada por Jornal da Unicamp, 08-06-2018.
Ao longo do século XX, predominou no Brasil a ideia de que havia democracia racial no país, com brancos e negros convivendo em harmonia. Essa visão foi colocada em xeque com a ascensão do movimento negro da década de 1970. Nesse contexto, a luta contra a discriminação foi progressivamente ganhando força, em detrimento da ideia de convivência pacífica entre as raças. Para aqueles ativistas, a democracia racial não passava de uma ideologia vazia, responsável por mascarar as desigualdades e o racismo. Por isso precisava ser descartada, a fim de dar lugar a um verdadeiro – embora atrasado – despertar da consciência racial entre os brasileiros.
No entanto, desde as primeiras décadas do século passado, intelectuais negros mobilizavam-se, por meio de jornais, clubes e organizações próprias, inserindo-se em debates e iniciativas com o objetivo de promover a plena inserção dos afrodescendentes na sociedade brasileira.
A atuação desses grupos é o tema do livro Termos de inclusão: Intelectuais negros brasileiros no século XX, da argentina Paulina Alberto, lançado pela Editora da Unicamp. Na obra, a historiadora da Universidade de Michigan (EUA) apresenta um amplo painel do pensamento antirracista entre 1900 e 1990, com base na perspectiva de jornalistas e ativistas que atuaram em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Salvador.
Para Alberto, a crítica dos militantes dos anos 1970 e 1980 à democracia racial justificava-se tanto pelo contexto nacional quanto pelo cenário internacional. Aqui, os governos ditatoriais usavam o aparato da repressão para defender a ideologia de um Brasil mestiço e harmonioso, caracterizando como “subversão esquerdista” os debates e as pesquisas acadêmicas sobre discriminação racial. No âmbito internacional, as conquistas do movimento pelos direitos civis, nos Estados Unidos, e os movimentos de descolonização da África transformavam-se em referencial da consciência antirracista.
“Os anos 1970 e 1980 são um momento muito dramático, uma fase em que houve uma mudança dramática das interpretações vigentes até aquele ponto no Brasil e no resto do mundo sobre a suposta convivência harmoniosa entre brancos e negros. Essa ideologia vinha sendo construída pelo menos desde o século XIX e houve uma inversão total do que era o senso comum”, afirma a historiadora.
A crítica incisiva foi recebida com simpatia e contava com a adesão de muitos intelectuais brasileiros, como Florestan Fernandes. Entretanto, Alberto privilegia a perspectiva dos intelectuais negros para contar essa história, ao mesmo tempo em que amplia o olhar sobre os debates a respeito das questões raciais e as desigualdades, evitando polarizações e dualismos. São nomes como Jayme de Aguiar e José Corrêia Leite que entre 1924 e 1932 publicaram o jornal O Clarim d’Alvorada, em São Paulo, assim como Abdias Nascimento, uma das figuras centrais da luta antirracial no Brasil a partir da década de 1930.
Como explica a autora, “para os movimentos sociais e políticos, esse discurso de renovação, de quebra com um passado e de alinhamento com um futuro que fará a transformação total é necessário e estratégico. Mas, do ponto de vista do historiador, essa retórica não deve ser tomada literalmente. Seria ‘comprar’ um discurso que possui uma finalidade estratégica”.
Ao se afastar das polarizações, Alberto revela diversas estratégias adotadas pelos intelectuais negros para conquistar visibilidade e abrir espaço para suas reivindicações de participação e inclusão na sociedade brasileira, num campo de debates marcado, no início do século XX, pelo racismo científico e, posteriormente, pelas visões assimilacionistas, que defendiam a fusão de culturas diferentes.
Assim, a autora chama a atenção para as continuidades e os deslocamentos das posições adotadas pelos intelectuais negros, ao longo do tempo e conforme o contexto.
“Queria mostrar que não existem apenas alguns momentos-chave, mas que há uma luta constante e muito variável”, diz. “E também queria ressaltar a enorme força, a criatividade e a adaptabilidade da luta antirracista, como ela toma formas muito surpreendentes”, complementa a pesquisadora.
Ela cita como exemplo a Frente Negra, conhecida organização, que se transformou em partido político em 1936. Embora tenha sido fundamental para a luta antidiscriminação, a Frente Negra possuía dimensões fascistas, o que, segundo a autora, é compreensível dentro das circunstâncias e do que era possível então.
“Procurei resgatar a agência dos intelectuais negros, seu poder de negociação e interlocução com as elites. Suas ações podem às vezes parecer tímidas, mas ganham outro tom ao se considerar que, no começo do século XX, eles estavam buscando uma alternativa para o discurso do racismo científico, que os colocava como párias absolutos da sociedade”, enfatiza.
Nesse sentido, ela faz um contraponto com a Argentina, seu país de origem e objeto de suas mais recentes pesquisas: enquanto no Brasil a luta era pela inclusão, no país vizinho, o discurso do racismo científico tornou-se dominante, fazendo com que os negros aprendessem rapidamente a se desmarcar como negros. “No Brasil, não. Os intelectuais negros acharam espaços, espaços muito fechados, mas eles acharam,” para se firmar como negros ou descendentes de africanos.
Desse modo, no fio condutor traçado por Alberto, o movimento negro da década de 1970 é um momento marcante da luta antirracismo no Brasil. “Não acredito que esses militantes tivessem a intenção de diminuir as conquistas das gerações anteriores, mas esse tipo de revisão desconsidera o que aqueles atores fizeram em seu momento e em seu lugar, às vezes criando uma visão até de passividade ou vitimização”.
Nessa perspectiva, o movimento dos intelectuais negros do começo do século XX passa a ser compreendido “em seus próprios termos”, ou seja, considerando as circunstâncias e os limites enfrentados, bem como as estratégias possíveis e as linguagens políticas de então. Ou, como evidencia a autora, “não faz sentido esperar que eles tivessem uma mesma visão ou opção política que seus pares de 30 anos depois”.
Desse modo, na obra encontra-se uma análise dos conceitos, das ideias e das propostas por meio das quais a sociedade brasileira concebeu a inclusão dos negros ao longo do tempo. Como pontua Paulina Alberto, “o conceito de democracia racial é frequentemente usado como um termo a-histórico, como se sempre tivesse existido. Na verdade, ele surge durante a Segunda Guerra Mundial, na década de 1940”.
Em suas pesquisas, “fraternidade racial” foi a primeira expressão que ela identificou para traduzir o ideal de harmonia entre as raças.
“A fraternidade racial foi a primeira ideia. Ela aparece muito nos anos 1910 e 1920 e está ligada à tradição republicana e ao positivismo. No entanto, possui uma dimensão totalmente brasileira, relacionada à percepção de que existe uma organicidade, uma intimidade nas relações entre negros e brancos no Brasil”, explica.
Fraternidade era um termo fortemente polissêmico, assinala a historiadora. Por exemplo, era tanto usado como referência à intimidade existente entre as escravas que permaneciam na senzala à disposição do senhor branco (numa visão hierárquica da sociedade) quanto relacionado à visão da mãe preta que criou e irmanou essas raças – deixando implícito, portanto, que os brancos têm uma dívida com os negros. “Havia um espectro muito amplo de significações possíveis, por isso o termo vingou por muito tempo. As pessoas falavam a mesma coisa, mas, na verdade, os sentidos eram muito diferentes”.
Além da polissemia, o caráter sentimental associado à palavra fraternidade colaborou para que ela persistisse e fosse amplamente adotada. “É estranho para a nossa sensibilidade imaginar como intelectuais combativos como aqueles do começo do século prenderam-se a um símbolo tão sentimental. Mas sua força vem, justamente, do fato de que, naquela época, o Brasil estava tentando se posicionar como um lugar de inclusão e harmonia racial. A arma que os intelectuais negros tinham era essa sentimentalidade, num cenário dominado pelo racismo científico”.
Na Era Vargas (1930 a 1945), emerge o termo “nacional” para designar os negros. Na época, a palavra ganhou uma conotação diferente da que recebia na República Velha, quando era pejorativa, quase que um insulto, descreve a autora. “Havia a ideia de que não era recomendável contratar um nacional, porque eles não tinham comprometimento com o trabalho. Nacional queria dizer negro, ex-escravo, com toda a ideologia da vadiagem. Então, quem buscava um empregado (especialmente nos estados do Sul) não queria os nacionais, e sim os imigrantes”.
Com Getúlio Vargas, isso muda, especialmente por causa da chamada “Lei dos 2/3”, aprovada em 1930, que determinava que dois terços dos empregados de um estabelecimento deveriam ser brasileiros. “O nacional passa a ser valorizado. Além disso, passa a existir uma identificação tácita do negro e da cultura africana com a ideia de Brasil”, analisa a historiadora.
Na segunda metade da década de 1940 há outra mudança, com a ascensão da ideia de “democracia racial”, pautada por direitos e reivindicações. “Democracia é diferente de fraternidade, que é uma metáfora de família. Na democracia como uma forma de governo e um discurso de direitos e igualdade perante a lei, abrem-se outros espaços e é aí que o movimento negro começa a se organizar”, diz. Exemplo disso são as campanhas de alfabetização da época, que tinham entre seus objetivos possibilitar que mais negros se tornassem votantes em potencial. A ideia de democracia agregava também um otimismo, a esperança de que, por meio da política, fossem abertos espaços para uma verdadeira igualdade racial.
Esse otimismo reflui durante a ditadura militar, como lembra a historiadora: “Como eles oficializaram a democracia racial, então não se podia falar a respeito do assunto e começaram a reprimir organizações negras e acadêmicos que tematizavam a questão”. Esse é o pano de fundo, argumenta Alberto, para o surgimento dos movimentos de resistência. Mas, ainda assim, o compromisso com o ideal da inclusão racial plena – se não da “harmonia” – continuou norteando as lutas dos ativistas.
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Livro sobre intelectuais negros põe em xeque ideia de democracia racial no país - Instituto Humanitas Unisinos - IHU