21 Mai 2018
“Na Igreja, pode haver ministros do Senhor, testemunhas do Evangelho e pessoas responsáveis pelas comunidades cristãs que cumpram essas funções sem precisarem ser ‘privilegiadas’ e ‘consagradas’”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 18-05-2018. A tradução é de André Langer.
Todos sabem que o Papa Francisco está encontrando muitas e, às vezes, fortes resistências que não vêm dos inimigos tradicionais da Igreja, mas precisamente e de maneira surpreendente de setores importantes do clero. Resistências que, inevitavelmente, contagiam não poucos leigos, que se afastam da Igreja ou desconfiam do Papa Francisco e de seus ensinamentos.
Independentemente disso, não há dúvida de que as relações do Papa Francisco com o clero nem sempre são fluidas e simples. Este Papa criticou não poucos comportamentos de homens do clero, sem reparar nos cargos, dignidades e comportamento dos “homens de Igreja” que, em muitos casos, revelaram questões obscuras ou mesmo escandalosas. Não seria melhor esconder – ou tentar esconder – determinados comportamentos que, quando tornados públicos, escandalizam as pessoas e causam danos a crentes e não crentes?
Não há dúvida de que este Papa está disposto a mudar muitas coisas. Como o próprio Papa disse, há alguns dias, “isso é sério”. Até chegar aonde é preciso chegar. Até às últimas consequências.
E qual seria a última dessas consequências? Bem, se formos ao fundo e sem medo, penso que chegou a hora de enfrentar uma questão que possivelmente nos assusta: podemos estar certos de que Deus quer que tenhamos um clero como esse que temos?
A palavra “clero” não aparece no Novo Testamento. Esse termo foi provavelmente introduzido por alguns escritores cristãos, no século III. Como sabemos, a palavra clero vem do grego kleros, que significa “lote”, no sentido de “herança”. Assim, “clero” estendeu-se como um grupo ou conjunto de pessoas “privilegiadas” ou isentas da carga tributária e de outras obrigações que eram concedidas à Igreja, especialmente a partir do ano 313, por ocasião da chamada conversão do imperador Constantino (Peter Brown. Por el ojo de una aguja. Barcelona: Acantilado, 2016, p. 103-104). Concretamente, os “privilegiados” eram os líderes da Igreja. Dito resumidamente, o “clero” distinguiu-se porque era privilegiado. Assim tem sido desde o século IV. E continua até hoje.
No entanto, se há algo claro nos Evangelhos é o fato de que Jesus não queria privilégios nem privilegiados em sua comunidade de “seguidores” e discípulos. Jesus opôs-se claramente a isso quando dois dos seus discípulos, Tiago e João, reivindicaram os primeiros lugares (Mc 10, 35-46; Mt 20, 20-28). E, principalmente, na Ceia de despedida, quando Jesus deu aos seus apóstolos o exemplo de vida que teriam que seguir: lavar os pés aos outros (Jo 13, 12-15). O que significava dizer-lhes que tinham que viver não exatamente como privilegiados, mas como escravos a serviço dos outros.
Mas acontece que, com o passar do tempo, as coisas mudaram. Isso foi entre os séculos IV e VI, quando bispos e clérigos alcançaram posições de privilégio, grandes riquezas e condições que levaram esses homens a serem os grandes senhores do Ocidente. Dizendo isso, não pretendo nem insinuar que o clero de hoje seja formado por “grandes senhores”. Não. Mas acontece que, com frequência, se encontra “homens de Igreja” que, na realidade, estão mais preocupados em “se instalar” neste mundo do que “seguir Jesus”, com todas as suas consequências.
Será que podemos dizer que Jesus queria uma Igreja dividida e separada em duas categorias de cristãos: uns como “clérigos” com poderes e dignidades, e outros como “leigos” submissos e profanos? Naturalmente, assim se manteve solidamente a religião, seus templos e suas liturgias. Mas a partir de semelhante divisão, temos vivido e vivemos melhor o Evangelho? Somos, dessa maneira, melhores “seguidores de Jesus”?
O “clero”, assim como o temos e funciona, não foi uma invenção de Jesus, o Senhor. Ele foi inventado pelo egoísmo humano. Também não pertence à “Fé divina e católica” a crença de que a Igreja tenha que estar dividida assim. Na Igreja, pode haver ministros do Senhor, testemunhas do Evangelho e pessoas responsáveis pelas comunidades cristãs que cumpram essas funções sem precisarem ser “privilegiadas” e “consagradas”, como vem acontecendo desde a Antiguidade tardia.
Não seria possível introduzir mudanças que o povo crente esteja em condições de assimilar, para preparar uma Igreja do futuro que seja menos “clerical” e mais “evangélica”? Ou será que nos damos melhor com a Religião do que com o Evangelho?
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“Era da vontade de Jesus ter um clero como o que temos?” Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU