08 Mai 2018
É necessário ter coragem para enfrentar o mecanismo bem azeitado, durante décadas, do poder onímodo do regime sandinista (empobrecido) da Nicarágua, encarnado pelo casal Ortega-Murillo, que, segundo dizem, tanto monta. Há que ter uma coragem especial, sobretudo sendo bispo da Igreja católica e auxiliar do cardeal Brenes, em Manágua. E é necessário ter habilidade de líder para convocar a praticar a não-violência ativa em meio aos protestos que inflamam o país.
A reportagem é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 05-05-2018. A tradução é do Cepat.
O bispo valente se chama Silvio José Báez Ortega (Masaya, 1958) e há anos enfrenta o sandinismo reciclado do presidente Ortega. De fato, diz-se que Bento XVI o nomeou auxiliar de Manágua justamente para isso, para acompanhar de perto e criticar a fundo a deriva totalitária do movimento que nasceu com a pátina da “primeira revolução cristã” da América, lá pelo ano 1979, quando as colunas guerrilheiras entram em Manágua e consumam a derrota da sangrenta ditadura de Somoza.
A Teologia da Libertação penetrava a revolução sandinista e, de fato, em seus governos entraram como ministros os jesuítas Fernando e Ernesto Cardenal, e também o religioso Miguel d’Escoto, como chanceler. Eram os líderes da chamada Igreja popular, identificada com a revolução e com a causa dos pobres, e em enfrentamento com as marcas conservadoras da maioria do clero, de um episcopado muito tradicional e da própria Roma.
No Vaticano, o Papa Wojtyla não olha com bons olhos a Teologia da Libertação (que, de fato, seu número dois, o então cardeal Ratzinger, condena publicamente e por escrito duas vezes). Menos ainda, que padres e freis participem direta e ativamente na política. E menos ainda, em partidos de esquerda, como era, então, a Frente Sandinista de Libertação Nacional.
Por isso, em absoluto, não gostou do enorme cartaz que o recebeu no aeroporto, em sua visita ao País, em 1983, que dizia assim: “Bem-vindo à Nicarágua livre graças a Deus e à revolução”. Indignado, João Paulo II aproveitou a primeira oportunidade que teve para repreender publicamente Ernesto Cardenal. Aquela célebre foto deu a volta ao mundo, com o Papa levantando o dedo e exigindo que Cardenal abandonasse a política, enquanto o jesuíta se ajoelhava no chão, retirava a boina e o olhava sorridente e surpreso, aguentando estoicamente o sermão.
É o que conta o próprio Ernesto Cardenal: “Não permitiu que eu lhe beijasse o anel e acenando o dedo como se fosse um bastão, disse-me em tom de reprovação: ‘Você deve regularizar sua situação’. Como não respondi nada, voltou a repetir a brusca admoestação, enquanto focavam todas as câmeras do mundo”.
Com o passar do tempo e o desfrute do poder, a revolução sandinista, na mão de Ortega, foi se tornando um regime cada vez mais autoritário. E os primeiros a deixá-lo e se retirar foram os dois irmãos jesuítas. Tanto é assim que Ernesto Cardenal passou de ministro e poeta da revolução a perseguido político. Contudo, o jesuíta não se deixou amedrontar e, há anos, vem acusando o regime de Ortega de “ditadura”. Neste momento, está abertamente alinhado com os que pedem sua saída.
“O diálogo não faz sentido porque o diálogo é para se entender, e nós não podemos nos entender”, disse o autor de O Evangelho de Solentiname. E acrescenta: “O que queremos é que haja outro Governo, uma república democrática. Para que diálogo? Nada de diálogo”.
Toda esta história é bem conhecida por dom Báez. O bispo auxiliar de Manágua sabe que o sandinismo já está muito longe da mística libertadora de seus inícios e que perdeu o apoio dos católicos. Não só dos anciãos líderes progressistas, como Ernesto Cardenal, mas também de toda a Igreja. Tanto da Igreja popular, como da mais tradicional.
Dom Báez sabe disso e também o sabia Bento XVI, quando, em 2009, o retirou de sua relativamente cômoda vida religiosa e intelectual em Roma para o enviar como auxiliar a Manágua. A Igreja precisava de um intelectual de prestígio para acompanhar de perto e criticar com argumentos e razões a deriva autoritária do sandinismo de Ortega, que, além disso, seguia empenhado em manipular a seu favor os sentimentos profundos e majoritariamente religiosos do povo nicaraguense.
E o encontrou em dom Báez. Um bispo com uma trajetória vital semeada de êxitos. Silvio Báez entrava, precisamente em 1979, ano do triunfo da revolução, nos carmelitas descalços. Após seus estudos no Instituto Teológico da América Central, em São José da Costa Rica, seus superiores decidiram o encaminhar a Roma, onde as congregações religiosas costumam enviar seus alunos mais inteligentes e destacados.
Báez se licenciou em Sagrada Escritura e, desde então, dedicou-se em se especializar nessa disciplina religiosa, uma das mais apreciadas e das mais exigentes do mundo religioso. E com notável êxito. De fato, após passar pela prestigiosa Ecole biblique de Jerusalém, doutorou-se na Gregoriana de Roma, a universidade dos jesuítas e berço dos bispos e Papas, com uma brilhante tese de doutorado, que ainda hoje é utilizada como exemplo de pesquisa exegético-teológica.
Com sua boa bagagem intelectual, Báez estava destinado a fazer carreira também em sua congregação religiosa, onde foi mestre de estudantes, conselheiro e professor em diversas universidades da América Latina e da Espanha. Até que, em 2006, os carmelitas o levam a Roma como vice-presidente da Faculdade de Teologia do Teresianum, a universidade da congregação em Roma, onde ficou por vários anos, feliz com suas aulas, com suas conferências sobre espiritualidade por meio mundo e com seus livros e pesquisas.
Até que a Igreja o tirou de seu retiro intelectual para o colocar ao chão da obra, em Manágua, como ajudante e auxiliar do arcebispo da cidade, dom Leopoldo Brenes, que, poucos anos depois, seria elevado à dignidade cardinalícia pela Papa Francisco.
E do intelectual brotou sua veia pastoral. Em pouco tempo, colocou o pé no chão, desceu das nuvens teóricas para aterrissar na realidade de um país corroído pelo autoritarismo e de uma Igreja carente de profetas, com capacidade de anúncio e de denúncia.
E Báez tem as duas. É capaz de conquistar o coração das pessoas por sua proximidade, sua bondade, seu desprendimento e suas entranhas de misericórdia. É um apaixonado por Francisco e sua Igreja hospital de campanha. E as pessoas descobriram isso rápido e começaram a lhe confiar suas penas e suas alegrias. E começaram a buscá-lo como líder. E lhe choveram os ‘gritos de dor’ de seu povo, de todos os lugares de seu país.
E o bispo precisou combinar o anúncio com a denúncia. Uma denúncia profética que já iniciou há alguns anos, avisando sobre a deriva autoritária do regime. Contudo, o ponto de inflexão, o momento no qual se colocou como o alvo do regime e de seus meios viciados, foi quando nas últimas eleições presidenciais de 2016 disse publicamente (para ser voz de outros muitos que nem sequer podiam sussurrar) que não iria votar, porque “na Nicarágua estamos diante de um sistema viciado pela raiz, autoritário e antidemocrático”.
Seu protagonismo foi crescendo até que, nas últimas manifestações, tornou-se a máxima referência. Primeiro, para animar seus compatriotas a se pronunciar com liberdade. Depois, para pedir que não entrassem na dinâmica perversa de violência e morte do regime de Ortega. Nem sequer após o sangue vertido de jovens e inocentes estudantes, cujo único crime foi pedir democracia e liberdade.
E, para convidar à não-violência e denunciar as torturas às quais as autoridades submeteram alguns jovens, o prelado pedia, suplicava, animava, pregava e até chorava ao vivo. “Chorei porque morreram muitos jovens sem necessidade e de modo injusto e com uma crueldade sem limites. Chorei porque muitos foram torturados de uma maneira desumana. Ontem à noite, soube de três jovens de nossa pastoral juvenil da paróquia que, na prisão, tiveram as unhas das mãos arrancadas. As histórias são terríveis e nossa juventude não merece isso”.
E o bispo valente se torna líder a seu pesar, para buscar uma saída negociada e dialogada, na qual a Igreja será a mediadora, sempre que houver as mínimas condições para isso. Ortega não facilitará nada, mas, agora, a Igreja sabe que em suas fileiras conta com uma referência credível e capaz, no qual as pessoas simples acreditam a fundo perdido.
E também o presidente Ortega, que o colocou em seu ponto de mira, sabe disso. Com ataques contra o bispo procedentes do Governo e orquestrados por jornalistas pró-governamentais, meios de comunicação da situação e contas anônimas em redes sociais, como Facebook e Twitter, onde justamente dom Báez, há anos, é muito ativo. Talvez seja um dos melhores bispos de todo o mundo na utilização das novas tecnologias e das redes sociais.
O Governo de Ortega repete e copia contra o bispo Báez as técnicas utilizadas pela ultradireita salvadorenha contra o logo novo santo dom Romero, que terminaram em seu assassinato. De fato, acusam dom Báez de ser “o cabeça da subversão” e já recebeu várias ameaças de morte.
Mas, nem as técnicas mafiosas do Governo, nem as ameaças de morte deterão o ‘bispo valente’ em sua luta pela justiça, a paz e o respeito aos direitos humanos de seu povo e de sua gente. Porque Silvio Báez é um líder ético, ou seja, um tipo de líder que baseia seu poder unicamente em sua autoridade moral. Um líder que não busca seus próprios interesses, nem os de partido algum. Move-se por ideais. É movido pelo zelo apostólico e a defesa dos pobres e descartados, aqueles que o Papa chama de ‘a carne de Cristo’.
Por isso, assim como o Papa, o escudo do bispo Báez são as pessoas, o povo humilde e simples que confia nele, segue e o protege. É defendido pelo povo cidadão e também pelo povo santo de Deus. Inteiramente. Os católicos nicaraguenses estão com ele. Sejam da sensibilidade eclesial que for. Venham da Igreja popular ou da mais tradicional. Todos apoiam o prelado até a morte.
E não é fácil, nem na Nicarágua e nem em qualquer outro lugar do mundo, que um bispo reúna o apoio e as simpatias de todos, católicos e não católicos. Como se diz na Espanha, deve ter algo na água de dom Silvio, quando tanto e tantos a abençoam. Inclusive, em nível internacional, porque sua popularidade transcendeu as fronteiras de seu país.
E, é claro, também conta com o apoio direto e explícito do Papa Francisco, que conhece perfeitamente a situação atual da Nicarágua e sabe bem que no país centro-americano está em jogo seu próprio futuro democrático. Por isso, dom Báez, o cardeal Brenes e a Conferência Episcopal da Nicarágua contam com todas as bênçãos de Roma.
Por isso, a Conferência Episcopal atuará como mediadora no processo de diálogo, que, segundo nota divulgada ontem, terá como objetivo “revisar o sistema político da Nicarágua a partir de sua raiz, para conseguir uma autêntica democracia” e “esclarecer a fundo o tema das dolorosas mortes sofridas durante as manifestações universitárias”. Mediação, sim, mas vigilante. E um dos encarregados dessa rigorosa vigilância será o ‘bispo valente’, dom Silvio Báez, que proclama: “Que os criminosos que assassinaram e torturaram nossos jovens não pensem que o diálogo nacional será um manto de impunidade. Antes de tudo, verdade e justiça”.
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Nicarágua. Silvio Báez, o bispo que enfrentou o ‘comandante’ Ortega - Instituto Humanitas Unisinos - IHU