07 Mai 2018
Nos momentos de tribulação, não se discute, se discerne. Nas situações mais difíceis e mais complexas, o grande risco é a confusão das ideias. “A confusão se aninha no coração: é o vai e vem dos diversos espíritos. A verdade ou a mentira, abstratamente, não são objeto de discernimento. Em vez disso, a confusão, sim.” Quem escreveu isso foi o então padre jesuíta Jorge Mario Bergoglio, em 1987, em um breve prefácio a oito cartas de dois prepósitos gerais da Companhia de Jesus (“Las cartas de la tribulación”, Buenos Aires, Diego de Torres, 1988).
A reportagem é de Luciano Moia, publicada por Avvenire, 04-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No caderno número 4.029, disponível desde sábado, a revista La Civiltà Cattolica repropõe esse prefácio. Precioso não só como curiosidade histórica, mas também pela sua relevância do ponto de vista das raízes culturais do Papa Francisco. Quando nos perguntamos onde nascem as suas convicções sobre o discernimento, é também em textos como esses que devemos ir procurar.
Trecho do prefácio original de Jorge Mario Bergoglio assinado em 1987, intitulado “Las cartas de la tribulación”, conservado no Arquivo dos Jesuítas em Roma (Foto: Avvenire)
Estamos diante de uma longa e consolidada tradição de pensamento que, dos Exercícios de Inácio, passa pelas reflexões dos prepósitos gerais da Companhia dos séculos passados chega até o papa argentino. E, não por acaso, a necessidade de ler os sinais dos tempos – paráfrase cativante de discernimento – está no coração da Humanae salutis, a constituição apostólica com a qual João XXIII convocou o Concílio. E, depois, em alguns documentos-chave do Vaticano II, nos quais o discernimento torna-se não só elemento estruturante da identidade da Igreja, mas também “dever permanente”, como se lê no número 4 da Gaudium et spes.
Em suma, os tantos críticos que se lançaram contra o papa pela sua insistência no primado do discernimento, pelos seus convites a formar as consciências e “não pretender substituí-las” (AL 37), deveriam lembrar que essas convicções não são o pensamento isolado e extravagante de um homem, mas sim a sólida e coerente trama da tradição.
E Bergoglio busca inspiração aí. Quando fala de discernimento na Evangelii gaudium ou na Amoris laetitia, o Papa Francisco recorda idealmente também as cartas de dois padres gerais da Companhia de Jesus, o florentino Lorenzo Ricci (eleito como geral em 1758) e o holandês Jan Roothaan (eleito em 1829).
“Ambos – escreve Bergoglio no prefácio de 1987 – tiveram que conduzir a Companhia em tempos difíceis, de perseguições.” Ricci viu-se gerindo as consequências da supressão dos jesuítas decidida pelo Papa Clemente XIV (o franciscano conventual Lorenzo Ganganelli) em 1773. Roothaan foi forçado a se confrontar com as repercussões culturais decorrentes do Iluminismo e do liberalismo nos anos da Companhia de Jesus que ressurgiu após a supressão.
Ambos, anota Bergoglio, viram-se vivendo momentos tumultuados de tribulação e acabaram propondo aos jesuítas justamente uma “doutrina da tribulação”, que é aquela capacidade de parar para refletir quando a confusão das ideias pode correr o risco de sugerir estratégias inoportunas, ou enrijecimentos pouco produtivos ou ainda se adequar ao modo comum de pensar.
É por isso que essas cartas – afirma ele no prefácio – “são um tratado de discernimento em época de confusão e tribulação”. O paralelo entre aquilo que Bergoglio escrevia na época e as reflexões sobre o tema a partir do qual teceu as exortações apostólicas dos nossos anos é realmente significativo.
No número 50 da Evangelii gaudium, por exemplo, ele fala do “discernimento evangélico”, que não é bom senso, ou virtude da prudência, ou simples capacidade de juízo correto, mas capacidade de exercer a própria liberdade ao tomar decisões para compreender a vontade de Deus na nossa vida, não abstratamente, mas naquele momento específico, naquele determinado estado de vida.
E, no número 300 da Amoris laetitia, quando ele explica, a respeito do caminho penitencial a que são chamados os divorciados em segunda união, que “os sacerdotes têm o dever de acompanhar as pessoas interessadas pelo caminho do discernimento segundo a doutrina da Igreja e as orientações do bispo”, é difícil não captar a conexão com outra passagem do prefácio de 1987, quando ele enfatiza que “é próprio do superior ajudar no discernimento”.
No novo número da Civiltà Cattolica, o diretor, padre Antonio Spadaro, ao introduzir os textos encontrados – aprofundados na mesma edição da revista também pelo Pe. Diego Fares, em uma análise intitulada “Contra o espírito da obstinação” – recorda que as cartas dos dois antigos prepósitos gerais já constituíram “a espinha dorsal da homilia” pronunciada pelo Papa Francisco na Igreja do Gesù, em Roma, para a celebração do 200º aniversário da reconstituição da Companhia de Jesus (1814-2014).
Conversando, depois, com os coirmãos jesuítas, por ocasião da viagem ao Chile, em 16 de janeiro, o papa recordou novamente essas cartas como “uma maravilha de critérios de discernimento”. E, ainda, os mesmos escritos serviram para a “Carta aos Bispos do Chile”, entregue justamente há um mês, após os episódios de pedofilia. Um novo “texto de tribulação” que mostra como aquelas palavras continuam iluminando o caminho do papa e da Igreja.
O prefácio está disponível aqui.
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Bergoglio e o discernimento, as raízes dos documentos papais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU