02 Mai 2018
Não é frequente que uma reunião vaticana consiga captar três grandes ironias sobre o estado das coisas no catolicismo, mas esse parece ser o caso de uma cúpula que envolve autoridades vaticanas e prelados alemães nesta próxima quinta-feira, sobre a questão da comunhão para os cônjuges protestantes em casamentos mistos com católicos.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 01-05-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
De uma forma ou de outra, a sessão reflete estas três intuições:
- mesmo quando um papa ou um regime vaticano está genuinamente comprometido com a descentralização, é difícil, em uma aldeia global, que Roma consiga ficar de fora por muito tempo.
- Algumas questões na Igreja carregam uma imensa importância simbólica em uma parte do mundo, mas podem ter seu maior impacto em outra.
- O Papa Francisco é o primeiro papa do Sul global, mas grande parte do drama ad intra de seu papado gira em torno de um cenário de Primeiro Mundo por excelência – a abastada e teologicamente inflamável Igreja Católica alemã.
O impulso para a reunião desta quinta-feira decorre de uma sessão do fim de fevereiro da Conferência dos Bispos da Alemanha que adotou diretrizes que permitem que cônjuges protestantes recebam a comunhão sob certas condições, mais notavelmente que eles “compartilhem a fé católica” na Eucaristia.
Isso levou um grupo de sete bispos alemães, incluindo o cardeal Rainer Maria Woelki, de Colônia, a escrever para o Vaticano solicitando esclarecimentos sobre se isso é algo que pode ser decidido por uma conferência episcopal local, ou se é necessária uma “decisão da Igreja universal”.
A carta foi escrita sem o conhecimento do cardeal Reinhard Marx, de Munique, presidente da Conferência dos Bispos da Alemanha e membro do “C9”, o conselho dos cardeais conselheiros do papa. Em uma resposta de 4 de abril, Marx declarou sua surpresa, pois o texto discutido em fevereiro, disse ele, é apenas um esboço e ainda pode ser modificado.
No lado alemão, tanto Marx quanto Woelki participarão do encontro desta quinta-feira, acompanhados pelo arcebispo italiano Luis Ladaria, chefe da Congregação para a Doutrina da Fé do Vaticano, e pelo cardeal suíço Kurt Koch, que dirige o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos.
Com toda a honestidade, essa pode não ser uma decisão que Francisco realmente queira tomar. Quando ele abordou a intercomunhão no passado, por exemplo durante uma visita em 2015 à comunidade luterana alemã de Roma e em sua exortação apostólica de 2016, Amoris laetitia, ele a definiu como uma questão de consciência a ser determinada caso a caso.
Em outras palavras, Francisco pode se contentar em deixar que os bispos locais descubram por si mesmos, mesmo que, neste caso, alguns desses mesmos bispos estejam insistindo para que Roma aponte uma direção.
Notavelmente, o Vaticano não pediu esse encontro, e não há nenhuma indicação específica que esteja ansioso para se envolver na questão. No entanto, em um mundo saturado de mídias sociais no século XXI, a distinção entre “local” e “universal” é, até certo ponto, um anacronismo. Todos nós sabemos tudo o que acontece em toda a parte imediatamente, e as pressões sobre Roma para reagir, seja da base ou da hierarquia, muitas vezes tornam inevitável algum tipo de intervenção.
Em outras palavras, a ironia número um é que Francisco está se esforçando para ser um papa descentralizador em uma era altamente centralizadora.
Segundo, a resposta de Marx à carta de sete de seus prelados coirmãos foi especialmente reveladora quando ele disse que, em essência, não entende exatamente qual é a confusão, pois o fato de permitir que os cônjuges protestantes recebam a comunhão quando compartilham a fé católica na eucaristia e depois de falar com um pastor já é uma prática estabelecida na Alemanha, com base na legislação existente na Igreja e no ensino papal.
Os bispos alemães frequentemente citam o documento Ecclesia de Eucaristia, de São João Paulo II, de 2003, que disse que, além de permitir a intercomunhão em casos de “grave necessidade”, como o risco de morte, ela também pode ocorre quando há uma “necessidade espiritual séria”.
Aqueles que conhecem a realidade do catolicismo alemão geralmente dizem que as coisas estão assim: a maioria dos católicos e protestantes em casamentos mistos não vai à Igreja regularmente de qualquer jeito, então a questão da intercomunhão realmente não vem à tona. Para aqueles que o fazem, e quando o cônjuge protestante deseja receber a comunhão, muitos encontraram há algum tempo um pároco compreensivo e, silenciosamente, têm participado do sacramento desde então. Observadores dizem que os números daqueles que querem a comunhão, mas que, por uma razão ou outra, são impedidos são comparativamente pequenos.
Dado o legado da Reforma e o imperativo evangélico da busca da unidade cristã, evidentemente, essa é uma questão cultural e teologicamente carregada, mas o que quer que aconteça nesta quinta-feira pode não significar muito em termos de prática na Alemanha.
Onde isso poderia ter mais significado é em outras partes do mundo, especialmente onde os casamentos mistos são mais comuns. Há obviamente uma diferença entre dizer “os alemães fazem X” e “os alemães agora têm autorização papal para fazer X”, tornando difícil explicar por que outras Igrejas locais não deveriam ter a mesma permissão. Daí a ironia número dois: uma acomodação justificada por exigências alemãs poderia, se concedida, ter um maior impacto em outro lugar.
Terceiro, é impressionante que, mais uma vez, o catolicismo de língua alemã esteja atuando como o principal motor dos debates eclesiásticos internos na era Francisco.
Esse foi o caso da fermentação em torno da Amoris laetitia e da questão da comunhão para os católicos que se divorciaram e se casaram novamente fora da Igreja, onde o cardeal alemão Walter Kasper é o arquiteto intelectual da proposta, e o cardeal austríaco Christoph Schönborn, um de seus intérpretes mais articulados.
Esse também foi o caso do documento Magnum principium, do Papa Francisco, de 2017, que moveu a responsabilidade principal pela tradução litúrgica em muitos casos para os bispos locais. Marx foi um dos defensores mais entusiastas dessa medida, depois que os bispos alemães e austríacos se recusaram firmemente por quatro anos a adotar uma nova tradução da missa aprovada por Roma.
Agora, mais uma vez, a agenda teológica e pastoral da Igreja de língua alemã está moldando os termos do debate do papado de Francisco, neste caso sobre a intercomunhão.
Os admiradores dirão que algumas das reflexões teológicas mais refinadas do catolicismo nos últimos séculos surgiram no âmbito da língua alemã, e é completamente apropriado que os frutos dessa tradição estejam sendo colhidos.
Os críticos geralmente olham com desconfiança, se perguntando por que a queda livre nos números de vocações e de participação na missa qualificam a Alemanha para ensinar lições ao resto do mundo católico.
Qualquer que seja a opinião que se adote, aqui está a ironia número três: mesmo com um papa do “Terceiro Mundo”, é difícil que o Primeiro Mundo seja irrelevante. Como manda o estilo católico “ambos”/“e”, a realidade da Igreja do século XXI não é Sul em vez do Norte, mas sim Sul mais Norte.
Esses três pontos, aliás, não dependem em nada do que vai acontecer quando os bispos alemães e os pesos-pesados vaticanos se reunirem nesta quinta-feira. Por isso, teremos que esperar para ver!
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Três ironias em torno da cúpula de bispos alemães no Vaticano sobre a intercomunhão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU