26 Abril 2018
Em tempos de investigações de fraudes que colocam sob suspeita os produtos e os modos de produção de alimentos provenientes da indústria que integra o agronegócio brasileiro, as 27 mil toneladas de arroz orgânico (livre de veneno) da safra 2017 produzidas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) apontam para um outro modelo viável de produção. Atualmente, o MST é líder na produção de arroz orgânico na América Latina.
A reportagem é de Gilson Camargo, publicada por ExtraClasse, 25-04-2018.
A agricultura orgânica vai além das feiras ecológicas de final de semana – como poderiam argumentar os críticos do movimento. Ela incide sobre os indicadores da agropecuária no país. Em 2015, o Ministério da Agricultura constatou que o total de agricultores certificados para a produção livre de agrotóxicos duplicou no período de 12 meses, ultrapassando 10,5 mil produtores. Até 2019, a certificação orgânica deverá envolver 30 mil produtores. No Rio Grande do Sul, a agricultura familiar vem respondendo por mais da metade das receitas provenientes da atividade agropecuária na última década. Nesse período, as unidades de produção familiares geridas de forma sustentável responderam por 49% dos R$ 14 bilhões de receitas geradas pela atividade agropecuária.
"Até hoje a sociedade tem certa resistência, parece que nós somos uns animaizinhos, mas pode escrever: a agricultura livre de agrotóxicos não tem a ver só com o movimento dos sem-terra, é de interesse de todo mundo, especialmente em um momento de crise da indústria em todos os setores”, resume Nilvo Bosa, presidente da Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan) e um dos pioneiros do assentamento Capela, região Metropolitana de Porto Alegre. “Não é uma opção puramente econômica, mas por um modo de vida íntegro, que enxerga a agricultura como uma atividade ecológica para o benefício das famílias que produzem e daquelas que consomem, com respeito ao ambiente e à biodiversidade”, detalha Bosa, que vê com naturalidade a discriminação aos sem-terra, mesmo de quem frequenta feirinhas e consome os alimentos produzidos nos assentamentos. “Ideologicamente a gente não discute com ninguém, mas está comprovado que, aplicando inseticida na lavoura, o que vem pela frente é intoxicação”.
Os sem-terra são os maiores produtores de arroz agroecológico da América Latina, atividade que envolve 616 famílias em área plantada de 5 mil hectares (cerca de 5% da área total de arroz no estado) nos 22 assentamentos localizados em 16 municípios gaúchos. A safra 2016-2017 é a maior da história dos assentamentos, com a colheita de 27 mil toneladas ou 550 mil sacas, produção 40% superior à colheita do ano passado. As famílias de agricultores envolvidas no cultivo de grãos e sementes estão organizadas no Grupo Gestor do Arroz Agroecológico. “O sistema de produção utilizado pelos sem-terra busca consolidar alternativas à agricultura do agronegócio, estabelecendo uma relação de integração e respeito entre os seres humanos e os recursos naturais. A produção do arroz é feita com técnicas que estimulam a fertilidade do solo e a produção de alimentos saudáveis, com mais qualidade de vida aos produtores e consumidores e renda às famílias assentadas”, ressaltou Emerson Giacomelli, coordenador da iniciativa, durante a abertura da 14ª Abertura Oficial da Colheita do Arroz Agroecológico, no dia 17 de março.
14ª Abertura Oficial da Colheita do Arroz Agroecológico (Foto: MST)
O evento reuniu centenas de agricultores sem-terra na sede comunitária Cooperativa de Produção Agropecuária Nova Santa Rita, localizada no Assentamento Capela, no município de Nova Santa Rita, a 40 quilômetros de Porto Alegre, com a presença de João Pedro Stédile, da coordenação nacional do MST e do frei Leonardo Boff. “A agroecologia é simbólica da resistência do povo brasileiro. Vocês que vêm se dedicando, nestes 15 anos, a produzir arroz orgânico são motivo de orgulho do nosso movimento e representam a prova de que é possível outra agricultura, sem usar veneno e transgênicos. Vocês são vanguarda”, disse Stédile aos sem-terra.
“Os agrotóxicos não foram inventados para produzir alimentos para todos, mas para lucrar mais, vender com mais facilidade do que atender as demandas humanas. Não matam só as pragas da lavoura, matam os seres humanos e tudo que dá vitalidade à terra”, acrescentou Boff. (Leia também a entrevista com o frei Leonardo Boff realizada no evento)
O Assentamento Capela é simbólico da luta e da resistência dos trabalhadores sem-terra. A área foi conquistada a partir da mobilização iniciada em setembro de 1989, com a ocupação da Fazenda Bacaraí, em Cruz Alta. “Oriundos de diversos municípios, os sem-terra enfrentaram miséria, morte, opressão das forças policiais e inúmeras falsas promessas de assentamento dos governos”, explica Giacomelli. “A mobilização durou mais de cinco anos, com greve de fome, marchas, ocupações e atos públicos para expor à sociedade a desigualdade existente no campo, além da importância da democratização da terra e de um modelo agrícola que contemplasse a todos”. Em 1993, a área foi ocupada pela terceira vez. “O latifúndio estava penhorado, resultando na desapropriação de 2.170 hectares e na criação do assentamento para cem famílias em 5 de maio de 1994”. Atualmente organizado em núcleos familiares, os assentados produzem arroz orgânico e convencional, gado leiteiro e de corte, hortaliças e suínos para comercialização e cultivo para o próprio.
Além do esforço para ampliar o acesso da população aos orgânicos produzidos nos assentamentos, o MST faz escola na América Latina, levando suas experiências a agricultores de outros países. Em novembro do ano passado, o militante sem-terra Daniel Victor da Silva, de Ronda Alta, e Ricardo Volpi, filho de assentados da reforma agrária em Pontão, no norte do estado, embarcaram para a Venezuela para ajudar camponeses a desenvolver a produção agroecológica a partir do que aprenderam no curso técnico em agropecuária com habilitação em agroecologia. A formação é ofertada desde 2005 pelo Instituto Educar, uma escola construída pelo MST na antiga Fazenda Anoni (Sarandi/RS), em parceria com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS) – campus Sertão.
MST fazendo colheita de arroz orgânico (Foto: MST)
As primeiras experiências do MST na produção orgânica de arroz foram desenvolvidas em 1999, nos assentamentos da reforma agrária na região Metropolitana de Porto Alegre. Todo o processo de produção, industrialização e comercialização é coordenado pela Cooperativa dos Trabalhadores Assentados da Região de Porto Alegre (Cootap), por meio da marca comercial Terra Livre.
Atualmente, parte da produção é destinada ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), mas o arroz também vai para São Paulo e é exportado para a Venezuela. Em Porto Alegre, arroz agroecológico pode ser adquirido no Mercado Público e em feiras ecológicas da capital e de Canoas. A certificação orgânica é realizada em todas as etapas da produção do arroz, com base em normas nacionais e internacionais, desde o ano de 2004. Ela ocorre por meio de dois procedimentos: certificação participativa (Opac – Coceargs) e auditoria (IMO – Ceres).
Com sede em Candiota, na região da Campanha, a Rede Bionatur é a única cooperativa de sementes orgânicas do país, certificada pelo Instituto Biodinâmico (IBD) de acordo com normas da agricultura orgânica do Ministério da Agricultura. A produção envolve mais de 160 famílias de agricultores do MST em diversas regiões do estado e abastece as cooperativas do próprio movimento em todo o país e agricultores orgânicos da Venezuela.
As sementes também são acessíveis às escolas, por meio do Programa Sementes Banrisul e à população, com venda direta nas feiras ecológicas e do kit horta urbana – com 20 variedades de hortaliças. A cooperativa produz cerca de cem variedades de sementes crioulas, 33 tipos de grãos, 15 de forrageiras e 12 de flores. Com sede em Candiota, na região da Campanha, a cooperativa tem a meta de passar a produção de 4 para 8 toneladas de hortaliças na safra de verão.
Para forrageiras, a estimativa é aumentar das atuais 40 toneladas para 70. A safra de sementes de milho e feijão crioulos é de 30 toneladas. Fundada em 1997 por agricultores assentados de Hulha Negra, a cooperativa foi o caminho para superar o modelo de produção convencional praticado pelas empresas de sementes de hortaliças que atuavam na região, com base no uso intensivo de agrotóxicos. Os agricultores ficavam submetidos às condições desfavoráveis de negociação e manejo da produção ditados pelas empresas, explica Roberta Coimbra, assentada em Piratini e integrante do grupo produtor de sementes. “A organização da cooperativa se deu em condições precárias, sem estradas, sem eletricidade. Os 25 agricultores envolvidos nessa iniciativa queriam mostrar que é possível preservar o material genético das culturas orgânicas e manter o controle do ciclo de produção”.
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MST colheu 27 mil toneladas de arroz sem veneno - Instituto Humanitas Unisinos - IHU