31 Janeiro 2018
O problema da tecnologia sempre existiu desde que o mundo é mundo, e desde o início esteve ligado às armas, isto é, à nossa própria defesa (não só com nossos músculos) contra os inimigos que invadiam o território, e também contra os animais carnívoros que faziam do homem a sua presa. Mas, então, se formaram as comunidades e sua defesa se transformou em guerra de bandos, armado com bastões pontiagudos, lanças, punhais e flechas. Com o passar do tempo houve quem construiu os arcos e as flechas, os elmos e as armaduras para proteger a cabeça e o corpo. Não era mais um trabalho individual, mas um desenvolvimento tecnológico confiado a artesãos especializados que conheciam a técnica para transformar o ferro em aço e outras diabruras similares.
O comentário é de Eugenio Scalfari, jornalista, publicado pelo jornal por ele fundado, La Repubblica, 28-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Passaram os séculos e as tecnologias aumentaram a sua complexidade e sua difusão em todo o campo: as tintas para pintar quadros na tela e afrescos nos muros, casas e igrejas a serem construídas, instrumentos musicais de sopro ou com cordas, barcos e navios para navegar a mar e mais e mais, e foram surgindo técnicas cada vez mais complexas, exércitos de trabalhadores qualificados ao serviço de patrões e de inventores. O ponto de virada mais próximo de nosso tempo foi o robô, que em parte substituiu o homem, mas agora está cada vez mais presente: o foguete, a nave espacial que chegou à Lua, as bombas atômicas e, finalmente, a "rede’ de comunicação que tudo abarca, coloca todos em contato mudando até mesmo os tempos da vida.
Para aquele que procura em um computador ou celular o que lhe interessa, basta apenas pressionar um ou dois botões e terá diante de si uma porção do passado que naquele momento deseja conhecer, ou então será ele mesmo a registrar o seu presente. O resultado psicológico extremamente importante é que o homem de hoje deliberadamente abandona sua própria memória do passado e também a capacidade e o desejo de imaginar um futuro, porque através da tecnologia atual a memória do passado é inútil, está tudo ali no teclado, da mesma firma que é inútil o futuro, porque a vida muda a cada minuto e tal mudança é automaticamente registrada. Nem passado, nem futuro; então a pergunta é esta: quem decide o presente, o homem ou a tecnologia? Difícil de responder.
Quem enfrentou esta questão da tecnologia é uma pessoa dotada de uma capacidade de compreender o que acontece no mundo, identificar as causas, os efeitos e a evolução ao longo do tempo: é o Papa Francisco, que aproveitou a reunião dos grandes capitalistas de todo o mundo em Davos para mostrar o que a Igreja por ele liderada quer comunicar aos seus crentes e à cultura secular. Um pensamento tão profundo e projetado para o futuro não pode ser resumido nem interpretado, dada a profundidade que contém, e, portanto, é preciso mencionar as suas partes essenciais. Aqui estão as palavras de Francisco.
“No plano da governança global estamos cada vez mais cientes de que há uma fragmentação crescente entre Estados e instituições. Novos atores estão surgindo, bem como uma nova competição econômica e acordos comerciais regionais. Mesmo as tecnologias mais recentes estão transformando os modelos econômicos e o próprio mundo globalizado, que, condicionados por interesses privados e ambição de lucro a todo o custo, parecem favorecer a maior fragmentação e individualismo, em vez de facilitar abordagens mais inclusivas. As recorrentes instabilidades financeiras trouxeram novos problemas e graves desafios que os governos precisam enfrentar, como o crescimento do desemprego, o aumento em várias formas de pobreza, o aumento do abismo socioeconômico e as novas formas de escravidão, muitas vezes relacionadas a conflito, migração e outros problemas sociais. A tudo isso se associa estilos de vida egoístas, caracterizados por uma opulência insustentável e muitas vezes indiferente com mundo ao seu redor, principalmente os mais pobres. É profundamente lamentável a prevalência das questões técnicas e econômicas no centro do debate político, em detrimento da uma autêntica orientação antropológica. O ser humano corre o risco de ser reduzido a uma mera engrenagem de um mecanismo que o trata como item de consumo a ser explorado com o resultado de que – como muitas vezes podemos perceber – sempre que uma vida não se revela útil para esse mecanismo é descartada com poucos escrúpulos. Nesse contexto, é essencial salvaguardar a dignidade da pessoa humana, principalmente oferecendo a todos reais oportunidades para o desenvolvimento humano integral através de políticas econômicas que favoreçam a família. A liberdade econômica não pode prevalecer sobre a concreta liberdade do homem e seus direitos; o mercado não pode ser absoluto, mas deve honrar as exigências da justiça. Os modelos econômicos devem, portanto, respeitar uma ética de desenvolvimento integral e sustentável, baseada em valores que colocam no centro a pessoa humana e os seus direitos”.
“Só através de uma resolução firme, compartilhada por todos os atores econômicos, podemos esperar dar uma nova direção para o destino do nosso mundo. Assim, até a inteligência artificial, a robótica e outras inovações tecnológicas devem ser utilizadas para contribuir ao serviço da humanidade e para a proteção da nossa casa comum. Não podemos permanecer em silêncio diante do sofrimento de milhões de pessoas cuja dignidade é ferida, nem podemos continuar a avançar como se a disseminação da pobreza e da injustiça não tivessem uma causa. Criar as condições adequadas para permitir que cada pessoa viva de maneira digna é uma obrigação moral, uma responsabilidade que envolve todos, criando novos postos de trabalho, respeitando as leis trabalhistas, lutando contra a corrupção pública e privada e promovendo a justiça social, juntamente com o justo e equitativo compartilhamento dos lucros”.
"Há uma grande responsabilidade de ser exercida com um sábio discernimento porque as decisões tomadas serão cruciais para moldar o mundo de amanhã e das gerações futuras. Portanto, se queremos um futuro mais seguro, um futuro que irá incentivar a prosperidade de todos é necessário manter a bússola sempre orientada para os valores autênticos. Este é o momento de tomar medidas corajosas e arrojadas para o nosso amado planeta. É este o momento certo para traduzir em ação a nossa responsabilidade de contribuir para o desenvolvimento da humanidade".
“Naturalmente tão elevados pensamentos podem agir em todos os níveis da sociedade. A política deveria levar isso em conta e integrá-los com a sua força que é a de gerir o poder para aumentar o bem-estar das pessoas, que deve ser o seu propósito constante. Essa é a tarefa das classes dirigentes, seja qual for a sua visão, os seus valores e os seus interesses particulares.
A democracia é justificada quando se manifesta através de partidos que compartilham a avaliação do bem e do mal com profundas diferenças entre si de acordo com a forma como interpretam essas duas opostas finalidades. Mas a verdadeira diferença está entre os políticos que lutam principalmente para atender seu interesse ou agindo à luz de valores e ideais a serem aplicados às instituições.
Em um mundo cada vez mais globalizado o tema inclui cada vez mais as classes dirigentes e suas diferentes finalidades. Desse ponto de vista a Itália tem sua própria história e a Europa tem a sua, que inclui obviamente aquela italiana, em um complexo continente que durante séculos foi o centro do mundo. Eu não sei até que ponto os partidos e a opinião pública se dão conta das responsabilidades que têm pela frente. A indiferença é o sentimento mais perigoso e que mais representa o período de decadência que estamos atravessando. Os valores ficaram empobrecidos, a indiferença é o mal maior. Um povo indiferente volta para trás no tempo, só se preocupa com o indivíduo e não com a comunidade. Não é mais povo e, muito menos, soberano.
Sintomas desse tipo têm ocorrido com frequência, resultando na queda da democracia, da liberdade e da justiça e transformando-as em anarquia, em ditadura e em tiranias.
Claro, esses iminentes perigos devem ser combatidos, a fim de proteger o interesse público que coincide com o dos povos. Mas um dos principais objetivos do interesse geral relaciona-se com a tecnologia e o aspecto importante desse tema (e problema) é que ele está em nossas mãos e não nas suas. O problema principal é este. Não vamos baixar a guarda”.
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Ser homens ou robôs na época da indiferença - Instituto Humanitas Unisinos - IHU