30 Janeiro 2018
Não se sabe como chegou lá, mas o fato é que um dia, em 1944, uma boneca apareceu nos banheiros femininos do gueto de Terezin. Apesar da sujeira e da vistosa mutilação (faltavam os braços), a descoberta não passou despercebida. "Uma boneca de verdade é muito rara aqui", admitiu a jovem Eva Ginzova em seu diário, acrescentando que, consertada e vestida com alguns pedaços de pano, o brinquedo foi dado como presente para outra menina judia, Milenka, por ocasião de seu aniversário.
Um fragmento mínimo de vida cotidiana nos tempos de Holocausto, reconstituído com rigor e participação pela pesquisadora norte-americana Alexandra Zapruder em uma obra já considerada um clássico, Salvaged Pages, "Páginas salvas", que só agora está chegando à Itália sob o título de ‘I Diari dell’Olocausto’. As histórias e as memórias inéditas de jovens vítimas da perseguição nazista (tradução de Marilena Rutili, Newton Compton, 528 p., € 9,90). É o resultado de uma pesquisa começada no início da década de 1990, no âmbito dos trabalhos que precederam a inauguração do Holocaust Memorial Museum de Washington e continuou por uma década, até que a primeira edição foi publicada em 2002, com acréscimos muitas vezes tocantes e inesperados.
A reportagem é de Alessandro Zaccuri, publicada por Avvenire, 26-01-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
Desde então e até hoje (2015 é a edição revista, que foi escolhida pela excelente versão italiana), o livro editado por Alexandra Zapruder se impôs como uma das contribuições mais documentadas e originais sobre a memória histórica do Holocausto. Apesar de toda superficial analogia, de fato Alexandra Zapruder sempre se recusou a apresentar os autores dessas "páginas salvas" como "outras Anne Frank". Não só porque a recepção do mais famoso dos diários do Holocausto é uma matéria complexa e não desprovida de controvérsias (é possível transformar em símbolo universal um único episódio real?
E o quanto é lícito forçar o processo de simplificação para conseguir tal efeito?), mas também porque os testemunhos recolhidos no livro estão longe de ser unívocos. Em várias ocasiões, emergem claramente até mesmo os aspectos mais contraditórios, tais como as ambiguidades e às vezes a mesquinhez dos supostos protetores de famílias perseguidas (emblemática a situação de contínua incerteza em que se encontra a família do adolescente Otto Wolf, que busca refúgio na floresta checa) ou a acusação de parcialidade nos confrontos do nazismo direcionada a alguns Conselhos judaicos (mencionada, entre outros, nas notas dos judeus poloneses Elsa Binder e Dawid Rubinowicz).
Um dos personagens que escrevem esses diários, o lituano Ilya Gerber, até pertence à restrita elite judaica do gueto de Kovno, uma circunstância que lhe permite reservar algum espaço para vicissitudes sentimentais, mas não impede que ele termine entre os arrasados pelo Holocausto. Histórias impossíveis de se sobrepor umas às outras e que retratam personalidades únicas, é claro, mas mesmo assim alguma continuidade ainda acaba surgindo. Uma delas, talvez a mais reveladora, diz respeito à consciência cultural demonstrada por muitos desses jovens, apesar da pouca idade.
Por exemplo, Peter Ginz, o irmão da já mencionada Eva Ginzova. Logo desencantado com a futilidade do mero relato na forma de diário, o garoto começou a manter um ambicioso registro de seus projetos artísticos e literários, incluindo listas de leituras a serem feitas e aprofundamentos a que se dedicar. Mais ou menos ao mesmo tempo em Vilnius, na Lituânia, o jovem de quinze anos, Yitskhok Rudashevski, esboçava um estudo da tradição tipográfica de sua cidade e ficava entusiasmado pelo poder salvífico da poesia. Mas é justamente uma antologia de obras alemãs que colocou em apuros a austríaca Elisabeth Kaufmann, exilada em Paris: a polícia francesa considerou suspeitos tais versos: não seria, a menina, uma espiã?
Um caso que ainda provoca imenso fascínio é das observações de um anônimo garoto de Lodz, anotadas nas margens de um François Coppée de outra forma esquecido, que passa fluidamente do iídiche ao polonês e do hebraico ao inglês. Deve-se a ele o neologismo "guetoniano" referindo-se aos judeus à mercê das humilhações mais inimagináveis e ao cerco implacável da fome. "Se um ‘guetoniano’ tivesse algum poder sobre o universo – escreveu, entre outras coisas, o misterioso poliglota - certamente não hesitaria um instante e o destruiria e isso decididamente seria a única coisa correta".
Expressões igualmente desesperadas aparecem em outros testemunhos, como o da romena Miriam Korber, que se questionava desencantada sobre os “desejos nunca atendidos por um Deus da vingança ou da compaixão” ou de outra anônima, sempre de Lodz, para quem “não há justiça no mundo, muito menos no gueto".
A contenda mais acirrada teologicamente é levantada por um jovem sionista holandês, Moshe Finker, por sua vez notavelmente versado em línguas (aos dezesseis anos ele já falava oito, às quais pretendia adicionar o árabe para prosseguir uma carreira diplomática ao serviço do futuro Estado de Israel). À medida que na Europa a situação dos judeus tornava-se mais dramática, Moshe abandonava a sua visão providencial original, chegando a se arrepender de ter em vão confiado em um "milagre" agora impossível. Por outro lado, transformou-se em uma história à parte, mesmo do ponto de vista religioso, a experiência do berlinense Peter Feigl, enviado à França por seus pais e batizado na tentativa de protegê-lo contra a perseguição: o menino se tornou um católico fervoroso e não cessou de orar e de se comunicar, para pedir o retorno dos familiares.
Dos quatorze eventos documentados nos ‘Diários do Holocausto’ apenas um pequeno punhado termina com a sobrevivência dos autores. Há, por exemplo, Klaus Langer, alemão de Essen, um dos poucos a navegar com sucesso para o Oriente Médio. Mas mesmo aqueles que saíram do inferno de perseguição continuaram assombrados pelo horror que se desenrolava diante de seus olhos. "Estou com medo? – perguntava-se outra presa em Terezin, Alice Ehrman de Praga - Vou ler Fausto, Isaías e Jeremias e tentarei fazer o melhor que posso para deixar um testemunho que me sobreviva. Isto é o que ocupa meus pensamentos, não que o mundo preste alguma atenção em mim".
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O Holocausto nas vozes dos jovens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU