04 Janeiro 2018
"Resta, contudo, o difícil desafio de ligar os dois aspectos, sem cair no populismo nacionalista nem no idealismo tão amplo quanto vago", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais, 01-01-2018.
Determinadas situações preocupam a todos e sinalizam na direção de algumas luzes e sombras que nos aguardam neste início de 2018. A voo de pássaro, vejamos mais de perto sete dessas realidades, entre tantas outras de importância igual ou até maior: a juventude órfã, a família, o mundo do trabalho, o protagonismo da mulher, a multidão dos sem pátria, o retrocesso da democracia e as mudanças climáticas. Todas se entrelaçam no jogo de xadrez do cenário globalizado, seja quanto aos sintomas de gravidade, seja na busca de saídas para a crise prolongada na qual estamos imersos.
Na verdade, os pais estão presentes e ao mesmo tempo ausentes. O que está em debate é o papel real da autoridade paterna e materna. Numa sociedade onde as grandes referências se diluem, os laços outrora sólidos também se derretem. Tudo se torna provisório, efêmero, descartável, incluindo o amor, a amizade, a família, a orientação vocacional, a construção de um futuro. Mais do que projetar a própria vida, os jovens tendem a buscar respostas imediatas para perguntas urgentes. Em lugar de refletir sobre os problemas, exigem soluções ao alcance da mão. Evidente que a crise e o desemprego juvenil agravam as coisas. Despreparados para esse comportamento “líquido”, os pais não sabem o que fazer. Não raro conseguem ser companheiros, amigos – mas não pais e mães ao ponto de estabelecer uma “liberdade com os devidos limites”. Daí uma geração de jovens predominantemente sós, órfãos e perdidos. Das duas uma: esse senso de orfandade mais ou menos generalizada ou se revela terreno fértil para o desafio de construir novas referências e novos horizontes, ou degenera em apatia, indiferença e desencanto.
Ventos tempestivos rugem furiosamente às portas da célula familiar. A desorientação juvenil depende, em boa parte, de ambientes familiares sem o calor humano de um verdadeiro “lar”. Na medida em que entra pela porta o desamor e a indiferença, não raro associados às drogas e ao álcool, a harmonia e a relação fraterna saem pela janela. De outro lado, às vezes tem-se a impressão que os meios de comunicação, com destaque para a TV, se coligaram para assaltar o matrimônio e a família, destruindo valores construídos em séculos de convivência. Nota-se uma maior liberdade no interior da unidade familiar, sem dúvida, mas essa nem sempre vem acompanhada de seu correspondente, isto é, o aspecto da responsabilidade. As crianças e adolescentes chegam à juventude, e mesmo à vida adulta, não somente orfãs de pai e mãe vivos, como vimos, mas especialmente privadas de um ambiente familiar saudável. Na falta desse terreno fértil onde a árvore mergulha suas raízes, as plantas tendem a crescer de forma frágil, desequilibrada e desigual. Gigantes em termos técnicos, profissionais e até intelectuais; nanicos no que se refere às relações afetivo-sexuais e ao amadurecimento humano. Dois desafios: por uma parte, o de conjugar a família no plural, levando em consideração as diferentes formas de convivência debaixo do mesmo teto; por outra, reconstruir o conceito de família adaptada aos desafios da modernidade tardia ou da pós-modernidade, tendo em conta o binômio liberdade/responsabilidade.
No campo e na cidade, as relações trabalhistas sofrem mudanças rápidas e profundas. Expressões como “flexibilização das leis do trabalho", “terceirização de muitos serviços” e “reforma da previdência” soam como um alarme, no que diz respeito aos direitos duramente conquistados pelos trabalhadores e trabalhadoras. Os resultados, por sua vez, não se fazem esperar: persistência de milhares de trabalhadores sem terra, sem trabalho e sem teto; abandono ou até extinção das comunidades indígenas e quilombolas; crescimento do desemprego, do subemprego e do trabalho temporário, sem falar de outras formas de trabalho infra-humano (infantil, escravo, da mulher com salário inferior...); precarização dos serviços públicos de educação, saúde, transporte coletivo, segurança... Prevalecem o medo de perder o emprego ou a ansiedade de encontrá-lo. Em ambos os casos, a existência se reveste de uma instabilidade permanente. Relações instáveis no mundo do trabalho tornam igualmente instáveis as relações no interior da vida familiar. Blocam-se o sonho e o horizonte de não poucos jovens recém-formados. Certo, surgem novos serviços, novos cargos e novas profissões. Mas resta a enorme tarefa de recriar postos de trabalho e, ao mesmo tempo, restabelecer os direitos que fazem do trabalho a chave para a dignidade humana.
O protagonismo da feminino não é novo, mas vem ganhando uma visibilidade cada vez mais expressiva e relevante. Visibilidade que, por sua vez, adquire uma crescente incidência social, econômica, política e cultural. Talvez a história dos últimos séculos, particularmente com o advento das revoluções, do modo de produção capitalista e do pensamento liberal, seja fortemente marcada pelas digitais masculinas. O objetivo tem sido explorar até o extremo os recursos naturais, a força de trabalho humana e o patrimônio cultural dos povos – tudo em função do lucro e do acúmulo de capital. Quem sabe a mão e o toque femininos, em lugar de privilegiar esses meios e essa meta, possa mudar a roda e a rota do desenvolvimento, no sentido de um maior cuidado com a vida e com a preservação das condições que permitem o florescimento da biodiversidade! É o que alguns chamam de passagem paradigmática: do viver bem para o bem viver; do desfrute e devastação sem medida à convivência pacífica e harmoniosa com todas as formas de vida. Mais próxima à concepção, geração e trato com a vida em concreto, as mulheres podem ajudar a abrir horizontes novos e alternativos no sulco da história.
Por toda parte, multiplicam-se os migrantes, prófugos, refugiados, expatriados, deportados, itinerantes... Multidões em êxodo errando pelas estradas de todo mundo. Difícil o país, o povo ou a família que, de alguma forma, não estejam envolvidos nesse gigantesco vaivém. Em tal fenômeno da mobilidade humana, aumentam não apenas os números, mas também a pobreza e a violência, a intolerância e a hostilidade, o rechaço e a discriminação, para não falar do preconceito, da xenofobia e da incerteza quanto ao futuro. Crescem igualmente o número de mulheres, crianças e jovens adolescentes que se deslocam de um lado para outro. Sintoma de um conflito de culturas e civilizações, ou de uma sociedade decadente, mas cuja esperança é capaz de transfigurar-se em vista de um porvir alternativo, recriado? Como pensava Scalabrini, as migrações podem servir ao desígnio de Deus, no sentido de mudar os rumos da história.
Refém do mercado total, especialmente financeiro, a democracia exibe com clamorosa evidência dois graves sintomas. Primeiro, o fosso crescente que se criou entre os cidadãos eleitores, de um lado, e, de outro, os representantes políticos eleitos. O dia-a-dia da prática política, seja no poder legislativo, no judiciário ou no executivo, parece cada vez mais surdo e indiferente ao dia-a-dia da população, especialmente dos setores de baixa renda. Os candidatos, em sua maioria, queimam as escadas que os ajudaram a subir ao poder. Não sabem como descer do trono e não permitem que o povo suba. A linguagem nos eventos e corredores da política está a quilômetros de distância da linguagem do cotidiano socioecônomico popular. Quanto ao segundo sintoma – a corrupção – não vale a pena desperdiçar mais tempo e palavras. Tendo presente as eleições de 2018, é possível recriar canais e instrumentos de uma prática democrática com a participação e a deliberação popular?
Tema transversal aos anteriores, afirmam alguns. Mas talvez seja mais correto sustentar que todas as temáticas acima se cruzam num palco cada vez mais complexo e intrincado. A devastação ou preservação do meio ambiente, com efeito, preocupa muitos jovens, está na raiz de muitos deslocamentos humanos de massa e faz parte da agenda política tanto nacional quanto internacional. Os acordos para frear o aquecimento global existem, mas até que ponto são cumpridos? Que consequências se podem esperar da retirada dos Estados Unidos do acordo de Paris? Estas e outras interrogações – que se levantam no interior mesmo dos temas apontados – batem com insistência às portas de 2018. Como encontrar alternativas viáveis ao estado de coisas em vigor? Hoje as soluções comportam, simultaneamente, um aspecto local e um aspecto global. “Agir localmente e pensar globalmente” tornou-se um refrão dos movimentos sociais e organizações não governamentais. Resta, contudo, o difícil desafio de ligar os dois aspectos, sem cair no populismo nacionalista nem no idealismo tão amplo quanto vago.
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Luzes e sombras para 2018 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU