20 Dezembro 2017
A Argentina confirmou uma vez mais que é o país de América Latina onde é mais difícil levar adiante reformas impopulares. O Congresso do país precisou de mais de 17 horas para debater e aprovar, em meio a um enorme escândalo político, a polêmica reforma da previdência promovida pelo presidente Mauricio Macri. A reforma saiu por 128 votos a favor e 116 contra, graças ao apoio de alguns peronistas. Macri conseguiu aprovar o projeto na segunda tentativa, depois que a sessão da última quinta-feira foi suspensa por conta dos graves distúrbios na rua.
A reportagem é de Carlos E. Cué, publicada por El País, 19-12-2017.
O Governo teve de enfrentar uma tensa madrugada de protestos em massa e forte violência, como não se via desde 2001, quando a crise do corralito deixou como herança 38 mortos e a renúncia do presidente Fernando de la Rúa, que abandonou a Casa Rosada de helicóptero. Com essa imagem na memória, e em meio aos choques da polícia com milhares de manifestantes próximos do Congresso, Macri deu a ordem de seguir a sessão e conseguiu que se aprovasse já pela manhã desta terça-feira (19).
O debate continuou durante a madrugada argentina dentro do Congresso enquanto os manifestantes avançaram passo a passo sobre o terreno à base de pedradas e ficaram muito próximos de entrar no Palácio. Somente quando se aproximaram muito, a polícia local decidiu pedir reforços à federal, arremeter com tudo e lançar gás lacrimogêneo para recuperar o controle da praça. O kirchnerismo exigia que o Governo suspendesse a sessão enquanto a aliada de Macri, Lilita Carrió, falava de “golpe de Estado”.
A jornada de fúria deixou 162 feridos, entre eles 88 policiais que sofreram durante horas uma chuva de pedras transmitida ao vivo por dezenas de câmeras. Com a polêmica reforma, que muda a fórmula para atualizar as pensões e fará os aposentados perderem poder aquisitivo, em um país com uma inflação de 25%, o Governo pretende poupar 60.000 milhões de pesos (2.850 milhões de euros).
Na semana passada, o escândalo dos distúrbios e a tensão dentro do Congresso forçaram a suspensão da sessão. Dessa vez o Governo aprendeu a lição e mudou em duas frentes. Primeiro, buscou mais apoio dos parlamentares, com um pacto com alguns governadores peronistas e o compromisso de dar aos aposentados um pagamento extra que suavizasse a perda de poder aquisitivo. E depois deu ordens à polícia para que resistisse sem forçar uma repressão brutal. Ainda assim, os distúrbios cresciam e a situação se tornava mais insustentável a cada minuto. “Acabe com essa loucura”, pediam os deputados kirchneristas ao presidente do Congresso, Emilio Monzó, empenhado em continuar para demonstrar que uma manifestação não pode impedir os trabalhos de um Congresso no qual Macri conseguiu formar uma instável maioria com o apoio de alguns peronistas.
Em meio ao caos alguns jornalistas também foram agredidos com extrema violência, como o cronista do TN Julio Bazán, que sofreu diversos golpes pelas costas e escapou de ser linchado ao conseguir fugir pelo metrô. As imagens de sua tentativa de linchamento foram especialmente dramáticas. O terror e o caos afastaram as pessoas do centro, que se transformou em um cenário de batalha com menos trânsito do que em um domingo.
A sessão no Congresso foi o resultado de uma estudada estratégia política, lançada em várias frentes ao mesmo tempo. O fracasso da quinta-feira, quando o Governo não conseguiu quórum para iniciar a sessão e a polícia reprimiu com gases e balas de borracha os manifestantes do lado de fora do Congresso, obrigou Macri a acertar os votos com o peronismo e a mudar o esquema de segurança.
Dessa vez, a mudança de estratégia foi evidente. Dezenas de manifestantes lançaram pedras e bombas contra policiais que resistiram durante mais de uma hora atrás de seus escudos de acrílico antes de responder com bombas de gás e balas de borracha. A ordem foi aguentar o máximo possível para evitar as imagens de quinta-feira.
Enquanto a vanguarda do protesto era resolvida com violência, os partidos de esquerda e movimentos sociais mais combativos cortaram os principais acessos à cidade, especialmente as pontes que cruzam o rio no sul e as rodovias que chegam do norte e do oeste, e realizaram piquetes nas principais avenidas. A mobilização nas ruas veio acompanhada de uma greve geral da Confederação Geral do Trabalho (CGT), o sindicato peronista mais poderoso do país, uma decisão que pôs fim à trégua mantida com o Governo até agora. A greve se iniciou ao meio-dia de segunda-feira e não atingiu o transporte em seu primeiro momento, uma estratégia para facilitar a mobilização.
A reforma previdenciária é um grande desafio para Macri, pelo repúdio que qualquer mudança que possa significar uma diminuição de renda causa nos argentinos. Os ânimos não são os melhores para mudanças, como se tornou evidente nas ruas. A proposta oficial não pretende realizar mudanças estruturais, mas a maneira como é calculada a atualização dos rendimentos em um país com a segunda inflação mais alta da América Latina, depois da Venezuela. O kirchnerismo criou uma adequação que levava em consideração o aumento da renda no sistema e o aumento de preços com atualizações duas vezes por ano. O macrismo pretende mudar essa fórmula por outra que define a porcentagem de aumento de acordo com o aumento dos salários formais e a inflação, com atualizações trimestrais. O problema é que a conta deu negativa aos aposentados. De acordo com os cálculos dos especialistas, o novo índice dará um aumento de 5,7%, contra 14% da fórmula atual.
O argumento oficial afirma que é questão de tempo para que o novo sistema finalmente “encaixe” com o novo, ou seja, que a longo prazo os aumentos serão semelhantes e se estabilizarão à medida que a inflação diminua, como espera o Governo. Para compensar a perda inicial e após o fracasso legislativo da semana passada, Macri ofereceu aos deputados mais hesitantes a proposta de que o Estado irá fornecer 5 bilhões de pesos (970 milhões de reais) para dividir entre nove milhões de aposentados. O bônus foi a chave para destravar os votos que Macri precisa na Câmara dos Deputados, mas não convenceu a oposição, que prometeu manter a luta contra a reforma.
“Todos seremos aposentados”, “Não ao corte previdenciário”, “Chega de roubar os aposentados”, eram frases escritas em alguns cartazes das dezenas de milhares de pessoas que na segunda-feira saíram às ruas de Buenos Aires para protestar contra a reforma previdenciária realizada por Mauricio Macri. “Essa reforma não vai passar, vamos todos à greve geral” “Você é ladrão, Macri, você é ladrão”, cantavam as colunas de manifestantes rumo ao Congresso, onde os deputados votam na terça-feira o projeto de lei. Mas suas mensagens foram ofuscadas pela violência desatada na vanguarda da mobilização, no meio da praça em frente ao Congresso.
A polícia resistiu sob seus escudos às pedradas e bombas lançadas pelos manifestantes durante pouco mais de uma hora. A tensão explodiu com a notícia de que o Governo tinha o número de deputados suficientes para debater a reforma. Contra as pedradas, a polícia começou a reprimir o protesto com carros hidrantes, gás lacrimogêneo e balas de borracha. O avanço policial só exaltou os ânimos e a praça se transformou no cenário de uma batalha campal, enquanto as ambulâncias iam e vinham com feridos e o ar se tornava irrespirável.
Quase duas horas depois do início dos distúrbios, grande parte da mobilização pacífica parecia alheia ao que ocorria centenas de metros à frente e diante do colapso das redes de celular a pergunta mais repetida era: “E dentro? A sessão foi suspensa?”. A decepção ficou desenhada em seus rostos ao saberem que os deputados mantinham o debate. “Não têm vergonha de tirar dos menos privilegiados. O preço de tudo subiu e agora querem cortar nossa aposentadoria”, lamentava-se Josefina Snead, aposentada de 84 anos. Próxima a ela, Marisa Parrera, de 70, se queixava que reduziram o número de remédios incluídos na caderneta da segurança social e seu preço disparou “até 200% em dois anos”.
Com o passar das horas, a violência se estendeu também às ruas próximas e numerosos participantes da marcha, assustados e afetados pelos gases, optaram por se retirar, pelo menos durante algumas horas. “Os gases a fizeram vomitar, vamos embora porque a situação ficou muito complicada, mas voltaremos”, dizia Emilia, uma jovem de 21 anos, que se afastava do local enquanto amparava uma amiga pelas costas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Argentina ignora clamor popular e aprova reforma da previdência - Instituto Humanitas Unisinos - IHU