21 Novembro 2017
No dia seguinte ao feriado de Finados, em 2 de novembro, vários jornais denunciaram a “invasão” de pessoas nas Fazendas Igarashi e Curitiba, no distrito de Rosário, município de Correntina (BA), mostrando máquinas, instalações e pivôs – equipamentos que tiram a água dos mananciais – quebrados e incendiados. O que não foi evidenciando, no entanto, é que milhares de moradores da Comunidade Ribeirinha do Rio Arrojado entraram nas duas grandes fazendas para protestar contra o uso indiscriminado de água para irrigação, que causa uma crise de abastecimento na cidade e o esgotamento dos recursos hídricos da região, provenientes do rio São Francisco.
A entrevista é de Maíra Mathias, publicada por EPSJV/Fiocruz, 20-11-2017.
Além da exploração hídrica, a área foi completamente devastada pelo agronegócio, levando à extinção da fauna e flora, restando hoje 48% da sua mata nativa. A constatação é feita por André Monteiro, pesquisador do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães da Fundação Oswaldo Cruz (CPqAM/Fiocruz), que foi para a cidade acompanhar outra manifestação, realizada no dia 11 de novembro, que levou cerca de 10 mil pessoas às ruas de Correntina para denunciar o baixo nível do rio Arrojado. Para ele, que gravou na ocasião o mini-documentário ‘Insurgentes’, a mobilização de grande parte da pequena cidade, que ganhou atenção nacional, é resultado da omissão do Estado, que não impõe limites à “hiperexploração hídrica”.
Qual é o panorama dos recursos hídricos na região de Correntina?
Há uma hiperexploração hídrica em decorrência de um esgotamento progressivo que vem acontecendo na região. Há tempos, vários especialistas denunciam que o desmatamento do Cerrado têm levado à perda de vazão nos rios e a um empobrecimento do aquífero da região, o Urucuia, que é o maior contribuinte do rio São Francisco. Esse é um processo antigo, mas que a partir de 2008 se acelerou por conta da exportação de commodities agrícolas, como a soja.
As tecnologias utilizadas na irrigação das fazendas, como o pivô central, são perdulárias no uso da água, de baixíssima eficiência. Além desse uso abusivo de água, o desmatamento tem consequências diretas nos volumes disponíveis porque provoca a compactação do solo, uma infiltração baixa, muito escoamento superficial. Chegou a um ponto que os rios do Cerrado começaram a secar.
E o que se vê em Correntina é exatamente isso: uso predatório dos recursos hídricos. As fazendas da região constroem piscinas imensas, de cerca de mil metros cúbicos. Em cada uma, há uma bomba associada. Há lugares com 24 piscinas e, consequentemente, 24 bombas ou pivôs [de irrigação] ligados de uma vez só. Então, quando eles ligavam as bombas, o rio não tinha vazão suficiente. Em várias situações, o rio secava completamente em um trecho por conta dessa irrigação. E depois de algumas horas, voltava a fluir.
A população da cidade protesta pelo menos desde 2015 contra esse abuso. Queriam chamar atenção dos órgãos ambientais de controle, do próprio Ministério Público. Mas, desde então, praticamente nada foi feito. E aí foi muito impactante quando eu vi aquela manifestação de mil pessoas na Fazenda Igarashi. Não é comum tanta gente, é algo muito forte do ponto de vista da indignação, quando a população se mobiliza assim.
Em sua avaliação, o que significou esse protesto?
Na manifestação que houve no sábado [11], e também conversando com pessoas na rua, o sentimento da comunidade é que que todos eles invadiram aquela fazenda. Quando eu cheguei lá, fui jantar na primeira noite e perguntei ao garçom: “E a manifestação?” E ele: “Foi a gente que fez.”; Eu disse: “Mas você foi?”; e ele: “Não fui pessoalmente, mas fui porque estava lá com todos eles, toda a população estava”.
Eu pensei como é incomum uma situação em que uma grande parte da população se reconhece, se identifica com o grupo que protesta invadindo uma fazenda. Não dá para dizer que havia um movimento, que havia um grupo. Na ocupação foram mil pessoas. E na medida em que depois do dia 2 de novembro, a mídia tradicional foi em cima, inicialmente taxando como se tivesse sido o MST [Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que negou participação no ato mas apoiou publicamente a luta dos moradores]. Foi um déjà-vu da década de 1990, no governo Fernando Henrique, essa demonização do MST… E você tem um discurso de algumas autoridades chamando a população de uma forma geral de ‘terroristas’. Isso, a meu ver, gerou uma indignação muito grande. Foi a catalisação de um processo a partir de indignação pela exaustão dos recursos hídricos, várias comunidades tradicionais e agricultores relatam que não tem mais condições de criar seu gado por conta da falta de água.
Já poderíamos dizer que na região há rios secos?
Na manifestação, as pessoas falavam nomes de riachos que já estariam mortos. Isso é grave, o que só comprova que o uso de pivôs já devia ter sido superado há muito tempo. Além disso, a prática de construir grandes piscinas, além de levar o rio à exaustão, já chegou ao limite. Já têm até propriedades abandonadas pelo agronegócio, porque não tem água suficiente também para ele. Só para termos uma ideia, a Fazenda Igarashi, em 2015, captava 180 mil metros cúbicos de água por dia, fazendo uso de 32 bombas.
A Associação Ambientalista Corrente Verde, em Correntina, chegou a entrar com uma ação civil pública pedindo a suspensão da captação de água em uma fazenda da empresa Sudotex. A Justiça chegou a conceder uma liminar autorizando, mas logo depois o Tribunal de Justiça pronunciou-se contrário à decisão, dizendo que o empreendimento seria inviabilizado e a empresa poderia se transferir e, consequentemente, a região perderia empregos. E quem recorreu da primeira decisão foi nada mais nada menos do que o Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Inema). Não foram os proprietários da fazenda…
Há uma chantagem de cunho econômico que não é de hoje. O Estado, em todos os níveis, tem uma centralidade em relação às commodities e não cede em nada do ponto de vista socioambiental, usando todo o seu aparato para dar continuidade a um modelo de desenvolvimento do agronegócio, da mineração e de outros processos produtivos como de energia e água, o que só faz aumentar os conflitos no campo relacionados a povos e comunidades tradicionais. Isso vai além da conjuntura política atual, vem já há bastante tempo…
O Brasil irá receber pela primeira vez o Fórum Mundial da Água, que acontecerá em março em Brasília, e organiza um fórum alternativo paralelo com a participação de movimentos sociais, entidades ambientais e sindicatos para debater o papel da água. O protesto em Correntina, portanto, impulsionaria um debate mais qualificado no fórum paralelo e deixaria o Fórum Mundial da Água constrangido em relação a esta correlação de forças entre os interesses do agronegócio e da população?
Eu tenho participado de alguns protestos. Além disso, estamos construindo o Dossiê das Águas, junto com os movimentos sociais. Eu acho que tem um processo que ainda não está maduro como deveria. A origem do Fama [Fórum Alternativo Mundial da Água], sua organização e peso político, está mais ligado a movimentos urbanos e sindicatos de empresas de saneamento. E esses são conflitos do campo. Parece-me necessário que haja um amadurecimento nesse sentido, para dar conta da complexidade e da urgência da questão da água, tanto os riscos de privatização dos serviços, tanto a apropriação privada do bem comum.
A água tem assumido um caráter transversal em diversos movimentos sociais e também na academia, que antes não discutiam a água. Entidades e grupos que não tinham a água como objeto de estudo, passaram a incorporá-la pela emergência da situação, pela explosão dos conflitos. Isso está relacionado ao modelo de desenvolvimento. Eu acho que precisamos para o FAMA de uma articulação mais madura desses movimentos urbanos e do campo.
Confira a manifestação realizada no dia 11 de novembro:
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‘Fundamentalmente, foi a omissão do Estado que levou a isso’. Entrevista com André Monteiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU