13 Novembro 2017
O filósofo da política belga Philippe Van Parijs está na Itália para apresentar o seu último livro publicado pela editora Il Mulino e para participar do encontro da Basic Income Network – Itália sobre renda básica em Roma, nessa sexta-feira.
A reportagem é de Roberto Ciccarelli, publicada por Il Manifesto, 10-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“A Itália é um país rico em contradições, que tem o sol durante nove meses por ano, e, com uma renda básica, as pessoas se acomodariam, se sentariam e comeriam massa ao molho de tomate”. Foi o que disse a ex-ministra do Trabalho italiana, Elsa Fornero, em 2012. Pedimos que Philippe Van Parijs, o mais conhecido dos teóricos da renda básica, autor, com Yannick Vanderborght, do monumental Reddito di base. Una proposta radicale [Renda básica. Uma proposta radical] (Il Mulino, 488 páginas), respondesse a essa objeção clássica.
“Elsa Fornero passaria o tempo tomando banho de sol e comendo massa se recebesse uma renda básica de 500 euros? Obviamente, não – diz Van Parijs –, pediria muito mais dinheiro. E se fossem 5.000 euros? Eu conheço Elsa. Continuaria trabalhando, como agora. Como a maioria de nós, com empregos interessantes. O que dizer da sua empregada doméstica? Essa é outra questão. Mesmo com uma renda básica modesta, ela poderia decidir reduzir o horário de trabalho, para, primeiro, tirar os filhos de uma creche superlotada, em vez de limpar os banheiros dos outros até tarde. Ou, talvez, retomaria o curso de formação que teve que interromper ou ajudar na loja da irmã – um trabalho menos seguro, mas mais autônomo. Se Elsa quiser mantê-la, deverá pagá-la mais. Isso poderia significar – e eu me limito a adivinhar – que ela não poderá se dar ao luxo de pagar por aquela encantadora pintura que se adapta tão bem à sua sala de estar. Mas isso me parece justo. Não lhe parece?”
O secretário do Partido Democrático, Matteo Renzi, disse que “a Itália é uma república fundamentada sobre o trabalho”, e que a renda é “inconstitucional”. A perspectiva de vocês contrapõe a renda ao trabalho?
Se uma renda modesta que permite que alguns italianos pobres reduzam o horário de trabalho com menos desconfortos para as suas famílias é inconstitucional, então o que dizer da enorme riqueza herdada que permite que alguns italianos ricos vivam no luxo durante toda a vida? A herança tem mais possibilidades de não superar o critério do artigo 1 da Constituição italiana em relação à renda básica. Alguns dos privilegiados ainda poderiam tentar esse truque. Como afirmou Bertrand Russell, “a ideia de que os pobres devem ter tempo livre sempre foi chocante para os ricos”.
Por que a renda básica deve ser individual?
Por dois motivos. Em primeiro lugar, ela não é paga ao único “chefe” de cada família, mas a cada membro adulto de cada família. Isso fortalece tanto o poder de compra, quanto o poder contratual do membro mais vulnerável da família. Em segundo lugar, a contribuição per capita da renda básica não é influenciada pela composição da família. Ela não diminui, como tendem a fazer os benefícios de assistência social, com as dimensões da família (menos para cada membro de um casal do que para uma única pessoa). Portanto, não é necessário efetuar controles intrusivos para verificar a situação de vida dos beneficiários da renda básica. E nenhuma armadilha do isolamento: os beneficiários da renda básica são encorajados a viver com os outros, poupando para o aluguel e para outras despesas. A sua renda básica não será reduzida.
Quais são as diferenças entre “renda básica” e “renda de cidadania”?
Na Itália, como em outros lugares, essas expressões são frequentemente usadas de modo intercambiável. Quando fundamos a rede europeia de renda básica em 1986, a maioria das expressões mais diversas foram usadas para se referir a uma renda incondicional, paga individualmente, sem testes de trabalho. Na Itália, no entanto, a renda de cidadania agora parece se referir principalmente a uma renda mínima sujeita à aceitação de um emprego.
E as divergências entre “renda básica” e essa ideia à la italiana?
Qualquer regime de renda mínima – incluindo o de inclusão social aprovada pelo governo Gentiloni e a renda de cidadania dos Cinque Stelle, pelo menos na última versão que eu vi – são formas de assistência social. Diferenciam-se de uma renda básica por serem concebidas em nível familiar, dirigidas aos pobres e condicionadas à busca ou à aceitação de um emprego. Como instrumentos para aliviar as políticas, tais sistemas são muito melhores do que nada. Mas têm muitos problemas. Um diz respeito à taxa de absorção: por causa da complexidade do procedimento e do seu caráter inevitavelmente estigmatizante, muitas famílias indigentes nunca obterão aquilo a que têm direito.
Outra incógnita é a armadilha da pobreza: muitos beneficiários da assistência social permanecem bloqueados em uma situação de inatividade por causa da impossibilidade ou da complexidade de combinar a renda de trabalho com os benefícios sociais. Se encontrassem um emprego ou criassem o seu próprio emprego, a sua situação material dificilmente melhoraria, até pioria, aumentando a sua insegurança material. Quanto maior o tamanho dos benefícios sociais, mais profunda é a armadilha.
Uma renda básica não é uma rede de segurança, mas sim um mínimo seguro ao qual podem ser acrescentadas receitas provenientes de outras fontes, sem problemas. Assim concebida, evitam-se esses defeitos. No entanto, na Itália, assim como em outros lugares, um regime geral de assistência social é um importante passo. E, para o futuro próximo, qualquer nível realista de renda básica incondicional deverá continuar sendo acompanhado por uma integração da assistência social, especialmente para as pessoas com necessidades especiais ou que vivem sozinhas.
Por que a renda básica deveria ser somente em dinheiro e não em bens ou serviços?
A educação elementar e secundária universal, o seguro de saúde universal podem ser considerados como uma espécie de renda básica in natura. Não sou favorável a substituí-los por uma renda básica em dinheiro. E, às vezes, pode ser difícil decidir se alguns recursos disponíveis devem ser destinados a um aumento do nível de renda básica, em vez de a uma melhoria ou a uma ampliação do berçário ou creche, por exemplo. Mas absolutamente não sou a favor da distribuição da renda básica sob a forma de comida, vestuário ou habitação. A presunção em favor do dinheiro em dinheiro decorre da vontade de deixar que as pessoas escolham, em vez de deixar que a burocracia decida por elas. Mas esta é apenas uma suposição. E, nos setores da educação, da saúde, dos espaços públicos de qualidade e de muitos outros bens públicos, há boas razões – o paternalismo leve, as externalidades positivas – para fazer exceções.
Muitos temem que a renda básica seja a antessala da privatização dos serviços sociais e públicos. É assim?
Por que deveria ser? Eu recomendo cautela, e nem todas as propostas específicas de renda básica (incluindo o financiamento) são uma melhoria. Mas os supostos perigos são muitas vezes o argumento a que os conservadores recorrem para proteger o seu bem-estar.
Em uma sociedade que adotasse a renda básica, ainda haveria pensões?
As pensões ou as indenizações de desemprego relacionadas à renda de trabalho deveriam se somar à renda básica incondicional, em um nível reduzido do montante de tal renda básica, financiado inteiramente pelas contribuições previdenciárias e sujeito às mesmas condições atuais. Em algumas propostas, da renda básica assume a forma de uma pensão básica mais elevada a partir da idade oficial de aposentadoria. O ponto fundamental é que uma renda básica não substituiria a previdência social, mas se limitaria a redimensioná-la, permitindo que ela desempenhe as suas funções melhor do que agora.
Por que a sustentabilidade econômica da renda básica é ameaçada pelas migrações?
A imigração é um desafio para qualquer forma de redistribuição que beneficie todos os residentes legais, não apenas aqueles que contribuíram para um regime de previdência social. Isso vale não só para as propostas de renda básica, mas também para os regimes de renda mínima sujeitos a condições de renda mínima e para os benefícios trabalhistas para os trabalhadores com baixa remuneração. Se as transferências são generosas, elas serviriam como ímãs, embora os imigrantes venham para trabalhar, não para obter subsídios em dinheiro.
Vocês defendem que a política da renda básica também expõe o mais convicto progressista a um “dilema cruel”: escolher entre nós e eles, os pobres nacionais e os pobres migrantes. Como sair disso?
O dilema cruel é entre solidariedade nacional e solidariedade global. Se não funcionar mal demais, ou seja, dando peso suficiente à justificativa pública do eleitorado, uma democracia nacional pode ser feita para realizar um nível significativo de solidariedade nacional. Mas não podemos esperar que isso não seja assim para a solidariedade transfronteiriça. Isso pode levar a ênfases racistas nos debates democráticos nacionais, mas não é necessário. A tensão fundamental, particularmente relevante em um mundo desigual, é a existente entre democracia nacional e justiça global. É um problema que não pode ser contornado. Daí decorre a enorme importância histórica do experimento europeu. Construir as instituições socioeconômicas necessárias para buscar a solidariedade transnacional e as instituições políticas necessárias para apoiá-las é um processo difícil e laborioso. Nenhuma entidade política do mundo está perto da União Europeia em termos de progresso ao longo desse difícil caminho.
No livro, é proposta a reforma da União Europeia em uma união de transferência. Pode nos explicar melhor?
É a introdução de um dividendo em euros: uma renda básica em nível da União Europeia ou da Zona do Euro de 200 euros, modulado com base no custo médio de vida em cada país e financiado pelo IVA. Ela pode contribuir para a estabilização macroeconômica, mas também para a demográfica: permitiria que algumas pessoas dos Estados-membros mais pobres permanecessem mais perto das suas raízes e dos seus parentes, em vez de afluírem para cidades ocidentais superlotadas.
Na esquerda, alguns acreditam que a renda é uma utopia neoliberal. O que distingue a proposta de vocês da proposta de Hayek?
A utopia neoliberal é uma submissão total ao mercado, à mercantilização da vida individual e coletiva. A utopia da renda básica consiste em explorar o dinamismo da economia de mercado para nos protegermos, individual e coletivamente, das garras do próprio mercado. Trata-se, naturalmente, de uma utopia da liberdade. Mas chegou o momento de a esquerda parar de se definir em nome da igualdade contra a liberdade, abandonando, assim, a liberdade para a direita. A esquerda é, e deve ser, pela liberdade, entendida como algo real – a possibilidade efetiva, não o mero direito – e naturalmente distribuída de modo profundamente mais equitativo. A renda básica não é a única coisa de que precisamos para alcançar esse objetivo. Mas é um instrumento central.
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A renda básica não é uma utopia. Entrevista com Philippe Van Parijs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU