03 Novembro 2017
Com uma nova coleção de artigos, Silvia Ronchey parte “em busca do sagrado perdido”, ilustrando com que instrumentos diferentes as várias fés, incluindo o cristianismo, foram lentamente construídas.
O comentário é do jornalista e escritor italiano Corrado Augias, ex-deputado do Parlamento Europeu, publicado no jornal La Repubblica, 01-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Título exigente: La cattedrale sommersa [A catedral submersa] (Ed Rizzoli, 256 páginas). Remete aos surdos acordes dissonantes com os quais Claude Debussy abre o seu prelúdio evocando profundidades submarinas. Mas aqui a metáfora se refere à imensa civilização bizantina que o Ocidente, com a Itália na primeira fila, afundou, encerrando o adjetivo “bizantino” na conotação quase caricatural de uma burocracia meticulosa e ineficiente.
Com esta coleção de artigos, Silvia Ronchey quer reparar a injustiça e a lacuna, recuperando, como ela escreve com gentil modéstia, “alguns fragmentos de friso de arquitrave, de coluna”. Na realidade, ela vai muito mais longe, como, aliás, reivindica o subtítulo do livro, Alla ricerca del sacro perduto [Em busca do sagrado perdido].
Como a civilização bizantina, na prática, desapareceu do horizonte dos nossos conhecimentos habituais? O que contribuiu para isso foi uma espécie de censura coletiva da Igreja Católica e da historiografia confessional, mas também, depois da Unidade italiana, a historiografia oficial, porque a influência de Bizâncio tornava evidentes as diferenças de tradição político-administrativa em uma Itália que ambicionava mostrar, ao contrário, uma identidade unitária.
Ao desenterrar essas raízes, o que se encontra são, em primeiro lugar, os contínuos intercâmbios, as recíprocas hibridações que caracterizaram a vida das religiões, não apenas dos três monoteísmos, surgidas, todas, do ventre fecundo do Oriente, quer seja próximo ou extremo.
Como afirma Denis de Rougemont (aqui citado), justamente esse contínuo entrelaçamento e intercâmbio de mitologias confirma “uma confusão insensata de religiões nunca totalmente mortas e raramente compreendidas e praticadas totalmente”.
Impressiona, por exemplo, saber da confusão inicial, em algumas regiões do Oriente, entre as duas figuras do Buda e do Cristo. Na Caxemira, encontra-se também o túmulo do Jesus indiano e islâmico. Ou a difusão de um símbolo, como a fina foice da lua crescente que se repete na bandeira turca e no topo dos minaretes, mas também como emblema de Diana Ártemis e, no cristianismo bizantino, entre os atributos da Nossa Senhora de veste azul e de coroa de estrelas de prata, representada com uma foice da lua debaixo dos calcanhares.
Transmite-se, escreve Ronchey, que foi o imperador Constantino, ao dedicar a nova cidade por ele fundada nas margens do Bósforo à Virgem Mãe de Deus, que acrescentou a estrela à meia lua de Diana, fundindo, assim, paganismo e cristianismo.
Exemplo ainda mais impressionante é o extraordinário percurso da cruz uncinada, ou suástica, ideograma do Eterno Retorno, conectada ao movimento perpétuo na Grécia pré-helênica, símbolo xamânico dos nativos americanos, em outras palavras, um sinal verdadeiramente universal, até que, em 1895, um monge cisterciense austríaco, Adolf Lanz, apaixonado pelo ocultismo, o transformou no emblema da sua seita, onde se praticava a exaltação da raça ariana hiperbórea e do seu papel de purificadora da humanidade contra a degeneração judaica. Hitler a obteve a partir desse bricabraque esotérico, sendo fascinado pelo ocultismo, inserindo a suástica na bandeira do partido nazista em 1920.
Um caso talvez exemplar, fascinante e enigmático é a misteriosa composição inserida na Bíblia que se chama Cântico dos Cânticos. Como ler versos de uma audácia erótica que beira a pornografia? “Dilectus meus misit manum suam per foramen/ et venter meus intremuit ad tactum eius” é a tradução latina de Jerônimo, que podemos relatar assim em português: “O meu amado enfia a mão no meu ventre, as minhas entranhas tremem com as suas carícias”. Espasmos da paixão carnal?
Na interpretação analógica midráshica, esses versículos tornam-se a celebração nas núpcias entre Javé e Israel; na mesma linha, o cristianismo os transforma no amor do Cristo pela Igreja. O Talmude, porém, adverte que nunca se deve subestimar a letra de um texto bíblico. Portanto, esses versículos continuam flutuando irresolvidos no vazio de inúmeras interpretações possíveis.
O fascínio e o subsequente desaparecimento do deus Mithra é outro caso de mistura. A divindade tem origem na Índia védica, passa para a profunda Pérsia masdeia, chega em Roma importada pelos legionários que voltavam das campanhas militares. São inúmeras as coincidências com Jesus. O dies natalis de Mithra era celebrado no dia 25 de dezembro (solstício de inverno). Dizia-se que ele nascera em uma gruta adorado pelos pastores, prometia aos seus fiéis a sobrevivência da alma e a ressurreição final da carne. Como escreveu Ernest Renan (aqui citado): “Se o cristianismo tivesse sido parado no seu desenvolvimento por uma doença mortal qualquer, o mundo teria se tornado mitraico”.
É inquietante a crônica das controvérsias com as quais foi se fixando progressivamente a figura de Jesus tal qual é hoje, a saber, “verdadeiro Deus e verdadeiro homem”. Nestório, patriarca de Constantinopla, morto em exílio em 451, via duas naturezas, divina e humana, e duas pessoas em Cristo. Aliás, ele não estava tão longe daquela que se tornaria a posição oficial da Igreja. Alguns, porém, atribuíram-lhe a negação da natureza divina, e a sua posição foi condenada como herética pelo Concílio de Éfeso (431). Foi igualmente condenada a posição oposta, chamada “dos monofisistas”, segundo os quais a natureza humana de Jesus era absorvida pela sua divindade, de modo que nele permanecia apenas a natureza divina.
Entre os elementos comuns mais difundidos e poderosos dos três monoteísmos e das outras religiões da Terra, há ainda o culto das relíquias. O Maqam Ibrahim, ou seja, a pedra com a pegada de Abraão, encerrada em um tabernáculo na Meca, a coluna da flagelação de Jesus, que se encontra em Roma. Mas também, elenca Ronchey: “O sangue e o leite de São Panteleimon, a cabeça de Gregório de Nazianzo, o prato da última ceia, o baú dos vestidos da Virgem, os vasos de ouro com os presentes dos Magos, a grelha em que São Lourenço foi assado”, e assim por diante, até feixes de ossos, frascos com suor, restos de cabelo ou de unhas, o prepúcio de Jesus, ou, a infinitesimal fímbria de pele que o rabino cortou do pênis de um menino de oito dias de idade, para passar, no extremo oposto, aos corpos embalsamados e plastificados de homens e mulheres considerados santos.
As relíquias satisfazem a necessidade de se aproximar, tocar com a mãe a matéria sagrada com ritos que reúnem, como defendeu o antropólogo Ugo Fabietti (aqui citado): “Os fetiches africanos, os mistérios greco-romanos, os cultos pré-colombianos andinos, o vodu”. Por outro lado, também as religiosidades seculares conhecem esse tipo de veneração, dos resíduos corporais de Garibaldi até o corpo embalsamado de Lênin.
Ronchey escreve: “Até mesmo no Islã, assim como no paganismo greco-romano ou no budismo, as relíquias eram usadas na fundação de edifícios sagrados e públicos, transmitiam-se, difundiam-se com o avanço histórico e geográfico dessa civilização”.
Relatei apenas alguns exemplos da riquíssima casuística contida no livro que ilustra com que instrumentos diferentes as várias fés, incluindo o cristianismo, foram lentamente construídas. Que reações poderá despertar a constatação de como as religiões devem umas às outras, de quão inúmeros foram os empréstimos, as hibridações, as imitações, de quanto afã e inteligência, de quantos contrastes as doutrinas, as liturgias, os mitos de fundação exigiram para serem organizados, tornados mais ou menos coerentes?
Em alguns, talvez, desilusão e desencanto, a demonstração de que não caíram do céu essas formas de salvação, porque homens se aplicaram a elas, misturando a sua imensa fé com erros, lacunas, contradições.
Para outros, por sua vez, será a confirmação de que a dedicação secular posta em construir em torno da nossa vida efêmera uma sacralidade responde à ancestral necessidade de atenuar o terror da morte, dando uma consolação qualquer à nossa frágil humanidade.
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O retorno do sagrado. Artigo de Corrado Augias - Instituto Humanitas Unisinos - IHU