09 Outubro 2017
Para Francisco a terra é em primeiro lugar o campo: a sede em que se desenvolve e da qual depende a vida dos camponeses, dos trabalhadores que, juntamente com os recicladores de resíduos e de estruturas abandonadas, constituem a principal base social dos movimentos populares.
O comentário é de Guido Viale, publicado por il Manifesto, 09-10-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Aqueles movimentos reunidos pelo Papa para oferecer-lhes uma sede onde possam se coordenar, definir seus objetivos e serem ouvidos. Para eles, de fato, são endereçados três dos principais discursos que marcaram o ponto de virada que Francisco tentou imprimir ao papel da igreja com o seu pontificado. Mas o campo é inseparável do trabalho que o torna fértil; e trabalho é um direito de todos, que deve ser reivindicado com força e ao qual deve ser restituída a dignidade negada pela exploração de um sistema baseado no domínio incontestável do deus do dinheiro. E é inseparável também da moradia, o direito a uma casa, que desde seu primeiro discurso aos movimentos populares Francisco declinou no sentido de comunidade, de vizinhança, de ajuda mútua: o "fora" sem o qual o "dentro" da casa se resolve em uma prisão.
Mas a Terra - desta vez com a inicial maiúscula - é também o planeta em que se desenvolve e do qual depende a vida de todos nós: um ambiente indissoluvelmente transformado pelo desenvolvimento histórico, pelas obras, pelas manufaturas e pelas produções em que se concretizou as atividades do gênero humano, que é também, e sobretudo, trabalho; como é inseparável do conceito de moradia: o lugar onde as faculdades humanas de cada um podem ser desenvolvidas através da convivência e do intercâmbio com o território e com os outros seres humanos que o habitam.
Nessa conexão entre o local e o global, entre o mundo da experiência cotidiana e as perspectivas de desenvolvimento histórico, entre o comportamento de cada um - analisado até os mínimos e aparentemente insignificantes detalhes - e as escolhas políticas das quais depende o futuro da humanidade e do planeta, reside a grandeza do pensamento de Francisco, que não tem igual em nenhum dos líderes políticos e do grupos de governo que hoje oprimem a população do planeta.
Francisco é um papa: considera-se, e é amplamente considerado por muitos, como o representante de deus na terra; o seu pensamento está indissoluvelmente ligado ao seu papel; e não poderia ser de outra forma. Para ele, a Terra é parte da "criação". Mas, mesmo assim, ou justamente por isso, a Terra assume em seu pensamento uma autonomia própria e, através de seus ciclos e dos seus equilíbrios, um papel regulador na definição do que é lícito e o que não é lícito nos comportamentos humanos: não é possível destruir ou retirar dos seres humanos campo, trabalho e moradia, ou seja, um ambiente saudável, a possibilidade de agir na história e condições de convivência baseada na justiça - que certamente não exclui, mas, aliás, impõe o conflito, e sobre isso Francisco é peremptório - sem anular as possibilidades de sobrevivência para todo o gênero humano.
O ser humano é para ele parte da Terra; não pode se contrapor excessivamente aos mecanismos que regulam os ciclos e equilíbrios e a eles deve se conformar. Não, portanto, à ‘húbris’ da dominação sobre a natureza e sobre os outros seres, como por séculos tem sido interpretada a mensagem bíblica, mas sim consonância com eles, que torna o gênero humano o guardião, ou um dos guardiões, da criação.
Ficam assim sancionados tanto o abandono de uma concepção antropocêntrica, que prevaleceu principalmente com o advento da era moderna, como a adesão à visão própria daquela ecologia profunda que está se afirmando, embora com grande dificuldade, em muitos campos da cultura e em grande parte dos movimentos auto-organizadas do nosso tempo: uma visão que Francisco assume sem hesitação na encíclica Laudato si’.
É só assim que, na verdade, torna-se possível trazer de volta o trabalho, juntamente com as suas finalidades, os seus produtos e os seus efeitos sobre o meio ambiente e sobre os seres humanos, dentro dos limites da sustentabilidade, devolvendo aos marginalizados da Terra dignidade e qualidade de vida. Porque as vítimas da agressão aos recursos do planeta são principalmente os pobres e são eles, inevitavelmente, os mais interessados na preservação e reabilitação de todo o ambiente em que vivem: do "campo" ao planeta Terra; do ar que respiramos e do alimento que comemos - ou que gostaríamos de comer – aos equilíbrios climáticos globais. Por isso, a justiça social não pode ser perseguida fora da justiça ambiental, do respeito pela Terra, da preservação de seus ciclos e de toda forma de vida.
É nesse contexto que se situa o compromisso de Francisco em favor do acolhimento e da inclusão de todos os migrantes, que considera a consequência mais óbvia dos desequilíbrios ambientais e sociais no mundo de hoje: aqueles que forçam milhões de seres humanos a fugir de países que, no momento, e talvez por um longo tempo, ou talvez para sempre, não lhes dão mais nenhum acesso a um campo, a uma moradia e a um trabalho, obrigando-os a procurar por essas coisas em países distantes e cada vez mais hostis.
É um compromisso não isento de oscilações e contradições, como aquelas testemunhadas pelas diferenças entre o discurso de Francisco em vista do Dia Mundial do Migrante de 2018, e aquele "primeiro, quantos lugares tenho?" proferido no avião, de volta da América Latina, que permitiu a uma parte da hierarquia eclesiástica de fornecer um apoio imediato às vergonhosas expulsões do Ministro Minniti; para depois se contradizer novamente no convite para acolher todos os migrantes "de braços abertos"; aberto como a colunata de São Pedro, aquela sob a qual Francisco tinha convidado a buscar abrigo os sem-teto de Roma antes que as hierarquia do Vaticano os expulsassem novamente para não perturbar o decoro. São sinais evidentes de que quando se passa das declarações de princípio aos fatos, se abrem conflitos por todo lado que não poupam ninguém, forçando a contínuas oscilações.
Mas a abordagem que combina justiça social com justiça ambiental continua a ser o tema subjacente que atravessa e domina toda a encíclica Laudato si’: um texto que reposiciona radicalmente as prioridades e as perspectivas da política, da cultura e do agir cotidiano. Para os católicos, na esteira de uma continuidade, que Francisco reivindica com encíclicas de pontífices anteriores; para os não-crentes, em plena sintonia tanto com o pensamento ecológico mais radical, como com as culturas indígenas, principalmente as da América Latina, que desempenharam um papel fundamental nessa elaboração.
A publicação, por iniciativa de ‘Il manifesto’, desse livro - que contém, além de algumas notas e contextualizações, o texto completo dos três discursos que Francisco endereçou ao mundo por ocasião de encontros mundiais com os movimentos populares – é, em parte, também o sinal de uma vontade de renovar o próprio repertório político buscando fontes e âmbitos até poucos anos atrás praticamente impensáveis.
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A terra de Bergoglio. Uma mensagem contra a ‘húbris’ do domínio sobre a natureza e sobre os outros - Instituto Humanitas Unisinos - IHU