18 Setembro 2017
O cidadão Luis Fernando Verissimo, 81 anos, nascido em Porto Alegre no dia 26 de setembro de 1936, está oficialmente livre desde 1º de setembro de 2017. Demitido da RBS depois de 40 anos de contribuição quase diária, o escritor, cronista, músico, desenhista e pensador tem agora um imenso desafio pela frente: manter atualizado o recente contrato de comodato que firmou com a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
A entrevista foi concedida à Flavio Ilha, publicada por ExtraClasse, 15-09-2017.
Foto: Igor Sperotto
O acervo de textos, rascunhos, traduções, cartuns e outras criações está sendo transferido para a biblioteca do novíssimo campus de Porto Alegre. Tarefa difícil, já que o acervo é composto por 382 livros, entre títulos do autor, antologias e edições estrangeiras, mais de mil títulos de periódicos, além de troféus, quadros, esculturas e outros objetos recebidos pelo escritor como forma de homenagem. Difícil porque Verissimo ainda está em pleno exercício produtivo. E também porque não pretende morrer tão cedo.
“Eu acho que o acervo devia ser apenas de obra acabada, o que evidentemente não é o caso. Então, digamos que seja um meio acervo de um autor meio vivo”, brinca Verissimo com sua ironia contumaz. Formalizado na última quarta-feira, 13, o acervo irá ocupar a partir de agora, segundo Verissimo, “um cantinho” da biblioteca da Unisinos e estará disponível para consulta por estudantes, pesquisadores e público em geral.
Com recorrentes problemas de saúde desde meados de 2013, que lhe renderam algumas semanas em UTIs e muitas horas em salas de cirurgia, o escritor continua sagaz e extremamente crítico, especialmente com os rumos do Brasil.
Elegante e discreto, diz que sua demissão da RBS – depois de uma ruidosa homenagem pelos seus 80 anos, comemorados em 2016 – foi uma decisão administrativa. Mas sabe que, na prática, foi o último laço profissional que o ligava ao Rio Grande do Sul – descoberto pela L&PM, há anos ele publica seus livros pelo selo Cia. das Letras. “Hoje, a única relação do pai com o Rio Grande do Sul é apenas morar em Porto Alegre”, lamenta a filha Fernanda, que junto com a esposa Lucia ajuda a cuidar do acervo do cronista.
A demissão da empresa que ajudou a revela-lo nacionalmente e se tornar um best-seller acabou determinando a interrupção de projetos que tomavam tempo demais do escritor, como as tiras semanais da Família Brasil e os textos semi-ficcionais publicados aos domingos no jornal O Estado de São Paulo. “Eu realmente estava trabalhando com coisa demais, então foi só para trabalhar menos. Como fui demitido da Zero Hora, não tinha mais sentido manter só para um jornal”, diz nesta entrevista para o ExtraClasse, realizada na sexta-feira, 15, no escritório intocado que foi do pai, o romancista Erico Verissimo.
Na conversa, Verissimo relatou um pouco sua relação com a escrita, as preocupações com a onda reacionária que toma conta do país e o arrependimento de não ter seguido a carreira de músico – o escritor é um saxofonista amador desde os 16 anos. “Eu lamento não ter me aprofundado na música porque hoje eu preferiria ser músico do que qualquer outra coisa”, confessou. Divertido, paciente, com sua conhecida parcimônia com a palavra falada, Verissimo chegou inclusive a revelar qual livro seu poderia ser queimado em praça pública pelo MBL – quando esse momento chegar.
Por que essa ideia de ceder seu acervo a uma instituição universitária?
A ideia do acervo é justamente essa: pesquisadores, estudantes e qualquer pessoa se informar sobre o autor, fazer pesquisa, essas coisas. Está ali para quem quiser ver. Então, o acervo vai ser um cantinho ali da biblioteca da Unisinos (no campus de Porto Alegre). Ficou simpático. Por enquanto reunimos material físico, mas é uma discussão que temos de ter. De vários anos para cá os textos são digitais, não há mais originais impressos. E muito material está só no formato digital, nunca foi para uma publicação física.
Começa em 1969?
Sim, com as primeiras publicações na Zero Hora. Algumas coisas de publicidade, também, muitos anúncios publicados, com autoria. Roteiros da TV Pirata, da Comédia da Vida Privada. E vai para lá também um exemplar de cada primeira edição, as traduções em russo, inglês, francês, italiano, coreano, sérvio. Tem troféus, presentes.
Os horóscopos não?
Não, acho que não (risos). Tem muita ilustração, também. Campanhas da Ipiranga, da época da (agência) MPM. Coisas que a Lúcia guardou ao longo do tempo. Tem muito rascunho, muitos papéis avulsos. Frases. Muitos desenhos, geralmente de figuras humanas. Mas nada feito para usar em textos, é só passatempo mesmo. Enquanto se está pensando sobre que escrever, vou desenhando. Nesse caso, apelo muito para o jogo da paciência também. Mas isso não está indo para o acervo (risos). A tesoura da Lúcia é incrível.
Era hora de fazer isso?
Sim, estava na hora. Todo esse material estava guardado aqui em casa, numa catalogação caseira, doméstica. A ideia da Unisinos, desde o início, há cerca de dois anos, era que o acervo ficasse em Porto Alegre. Viesse junto com a abertura do novo campus, o que acabou ocorrendo. A ideia é de o acervo ser usado por diferentes áreas, o que me agrada.
Qual é a sensação de virar um acervo?
Eu acho que o acervo devia ser a obra acabada, o que evidentemente não é o caso (risos). A minha biblioteca pessoal naturalmente não vai para lá, o que é um elemento importante de pesquisa, saber quem me influenciou, o que eu li. Então, digamos que seja um meio acervo de um autor meio vivo (risos). Mas não vou reclamar, não.
Teus livros têm anotações? Ou páginas dobradas nos cantinhos
Anotações não. Mas páginas dobradas nos cantinhos têm bastante. Só que às vezes, como não tem anotação, esqueço por que marquei aquela página. (risos)
Como lidar com um volume tão extraordinário de informação, necessário ao teu ofício?
O grande problema é que esse ofício, de escrever sobre o que está acontecendo de fato, não me permite mais ler livros, literatura de ficção. Faz anos, nem sei quantos, que não leio um livro de ficção inteiro. Apenas trechos esparsos. O prazer de ler, que me levou a esse caminho, ficou de lado. Leio muita revista, muito ensaio, jornais estrangeiros.
Isso te incomoda?
Sim, porque perdi o prazer da leitura descompromissada. Estou perdendo muita literatura boa, de novos autores. Conheço muito pouco do que se produz atualmente. E lamento muito não ter esse tempo para autores novos.
Tu achas que a tua primeira crônica (publicada em abril de 1969) já era uma credencial do que serias dali para a frente? As tuas características principais já estão ali.
Eu acho que sim. Eu comecei muito tarde, então já tinha lido muito durante toda a juventude. Nunca tinha escrito nada mas, como tinha lido bastante, sabia como se fazia. Quando comecei eu já sabia, estava formado.
Nunca ensaiaste nada? Nunca escreveste para ti mesmo?
Não, nunca. Nunca me vi como escritor, nem como jornalista. Tinha apenas algumas traduções, publicadas na (revista) Mistério Magazine. Nem lembro os autores, mas basicamente americanos e ingleses, de suspense, terror. Mas o fato de sempre ter sido um leitor voraz, quando comecei já conhecia os truques todos.
E os cartuns?
Sempre gostei muito de quadrinhos, então comecei a variar entre texto e cartum. Especialmente nas colunas de segunda-feira, em que eu fazia a crônica do futebol do domingo em desenho. Bonequinhos dialogando sobre os jogos do domingo.
Quem te influenciou nessa área?
Principalmente Saul Steinberg (1914-1999). Meu desenho era muito rudimentar, não tinha acabamento. Fazia com canetinha mesmo, em qualquer papel. Cheguei a fazer um curso de desenho com o Glênio Bianchetti (1928-2014), desenho, pintura, trabalhávamos com modelo vivo, essas coisas. Por um ano mais ou menos. Mas não passou disso. Nunca fiz uma tela.
E o fim da Família Brasil?
Pois é. Eu realmente estava trabalhando com coisa demais, então foi só para trabalhar menos. Como fui demitido da Zero Hora, não tinha mais sentido manter só para um jornal (O Estado de São Paulo).
Como foi esse episódio?
Foi um processo normal. Apenas deixei de ter vínculo com a empresa, agora eles compram meu material da Agência Globo. Foi uma decisão administrativa, estão fazendo muito isso com os velhos, que têm salários mais altos. Mas não ficou nenhum trauma, não.
Tem algum livro novo sendo organizado?
A Cia das Letras está organizando um volume de crônicas que estão sendo selecionadas pela (roteirista e escritora) Adriana Falcão, que deverá sair até o final do ano. Basicamente com as crônicas mais ficcionais, publicadas aos domingos no Estadão. As crônicas sobre política atualmente perdem a atualidade com muita rapidez.
Como estás acompanhando a conjuntura política?
A novidade é essa nova direita, que sempre existiu mas está mais evidente agora. É uma onda de reacionarismo que me preocupa muito. Imaginar um cara como o Bolsonaro com os índices de intenção de votos que ele tem é realmente preocupante.
Já foste alvo de alguma agressão ou ameaça?
Recebo muita carta desaforada, dizem para eu viver em Cuba, me chamam de comunista, uma vez até me mandaram viver na Coreia do Norte! Seria uma experiência muito boa. Quer dizer, boa não sei, mas pelo menos diferente (risos). Eu não dou bola, é claro.
Alguma ameaça?
Só na candidatura do Collor (em 1989). Me mandaram uma carta ameaçando meus filhos, que sabiam da rotina deles, iam atacar e tal. Mas não fizeram nada. O tom de agressividade subiu nos últimos meses, é verdade, mas não chega ao extremo da ameaça violenta.
Qual livro teu colocaria à disposição dessa nova direita para que seja queimado em praça pública, quando chegar o momento?
(risos) Tem um livro meu com crônicas bem políticas, A Versão dos Afogados (L&PM, 1994), que imagino que eles gostariam de queimar. Está meio desatualizado, mas acho que isso não fará muita diferença (risos).
E a tua relação com a ficção?
A quase totalidade de meus romances foi feita por encomenda, só Os Espiões (2009) que partiu de uma ideia própria, achei que era hora e fiz. Ficou direitinho. Mas meu preferido é Borges e os Orangotangos Eternos (Cia.das Letras, 2000), que é um pouco melhor do que os outros. Não tenho, de verdade, grandes pretensões literárias.
Por escrever entretenimento?
É, acho que sim. No Brasil é uma literatura considerada não muito respeitável, por isso os autores relutam em se dedicar a ela. Como não busco respeito… (risos). Mas é um gênero que precisa existir, até para a sobrevivência do mercado editorial.
Como esperas contribuir para que novos leitores entendam esse período da história brasileira?
Meu trabalho é testemunho desse tempo, isso pode ser lido em todos os cronistas. Quem quer saber como era o Brasil nos anos de 1960 vai ler Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Antônio Maria. Se eu puder fazer isso também, estará bom.
Que tipo de testemunho acha que deste?
Nós falamos há pouco sobre essa nova onda reacionária, coisas que hoje são preocupantes que há algum tempo, pouco tempo, não eram. Apesar desse conflito social no Brasil ser permanente. O que mudaria no meu jeito de ver a realidade seria um crescimento nesse jeito de ação reacionária evidente e preocupante.
Na tua opinião, não para por aí?
Acho que não para. Principalmente por essa desmoralização crescente do Congresso e da política em geral, isso motiva as pessoas que imaginem a solução num governo de força. Não sei se é inevitável, mas é uma ameaça real. Um perigo. Quando se poderia esperar tanta nostalgia da ditadura, mesmo sabendo de tudo que aconteceu? Isso é surpreendente. Comecei em plena ditadura, no governo do general Médici, então a gente já sabia dos limites. Sabia quem citar e quem não citar. A censura era implícita, havia autocensura, e eu tentava escrever nas entrelinhas mas às vezes nem eu entendia o que queria dizer. (risos)
Temes a volta da censura?
Acho que isso é possível, sim. Eu me preocupo com isso. Há uma ameaça e uma tendência possível de ser notada aí.
E o que achas do MBL?
Começa com a ironia do próprio nome: Brasil Livre. Livre de quê? É só uma das manifestações do que pode nos esperar no futuro. Esse tipo de pressão, esse tipo de censura, tem até características paramilitares, o que preocupa até a imprensa internacional.
O brasileiro deixou de ser aquele homem cordial do Sergio Buarque de Holanda?
Quando a gente fala no perigo desse crescimento da direita está se referindo a isso, que não sei aonde vai nos levar. Certamente está havendo uma mudança no caráter do brasileiro, na personalidade comum do brasileiro. Estamos nos transformando, para continuar na comparação que você fez, no brasileiro selvagem. Acho que estamos ficando mais intolerantes.
Por quê?
Em parte em razão desse desencanto com a política, culminando no desencanto com o PT. Foi uma promessa que apareceu mas que, no entanto, degringolou. Não sei se é para a gente perder a esperança no PT ou ainda não, se esse partido pode nos dar algum tipo de esperança, mas o fato é que houve um acúmulo de desencanto que culminou no que estamos vivendo.
Tu és um desencantado com o PT?
Um pouco, sim. Nunca fui um ativista, um militante, mas tinha simpatias que nunca escondi. Mas nunca fui personalista com o Lula, por exemplo, embora reconheça que é uma figura admirável.
Como te defines politicamente?
Eu me defino como um humanista. Meu pai se definia como um socialista democrático, o que me parece adequado para mim também: contra qualquer tipo de totalitarismo, inclusive de esquerda.
Quando começaste, em 1969, imaginavas ter a carreira que teve no jornalismo e na literatura?
De forma nenhuma, foi tudo acontecendo, sem planejamento. Como minha escrita: quando começo a pensar em um assunto, muitas vezes descubro o que penso sobre ele ao longo da escrita.
É muito difícil?
Varia muito. Mais difícil é começar. Estabelecer um tom. Uma amarrada final também é difícil. Mas às vezes vem com facilidade, não tem muita regra.
Usas muito o senhor Google?
Uso bastante. Eu sempre parto do princípio de que ele sabe o que está dizendo, então eu confio nele. Temos uma relação saudável. (risos)
Tens metodologia?
Escrevo sempre para ser publicado, nunca para deleite próprio. Só com esse foco. Nunca fiz isso, de escrever para mim. A diferença é que eu escrevia muito mais no passado, tinha mais volume. Não sei se fiquei mais conciso ou mais preguiçoso, mas meu texto diminuiu bastante. (risos)
Então, não há prazer em escrever?
Concordo com o que diz o Zuenir Ventura, que não gosta de escrever, gosta de ter escrito. O ato em si não é muito prazeroso, não. Ás vezes, não se tem a mínima ideia do que escrever, mas é necessário, é um modo de vida. Nesse sentido, não é uma coisa que dê muito prazer. Mas ler o que escrevi e gostar do que escrevi compensa, mostra que valeu a pena.
E a música?
Quando aprendi a tocar saxofone, com 16 anos, minha ideia era brincar com o instrumento. Nunca pensei em me profissionalizar, apesar de ter aprendido a tocar com partitura e tudo mais. Com o tempo esqueci, embora tenha eventualmente tocado em conjuntos profissionais. Eu até lamento não ter me aprofundado na música porque hoje eu preferiria ser músico do que qualquer outra coisa.
É mesmo? Por quê?
É. Um pouco pela minha admiração pelo jazz, por tudo que o jazz proporciona, a improvisação, a criação instantânea. Me parece bem mais completo que a criação literária. Mas em algum momento da vida perdi a oportunidade de me aprofundar, de dominar o instrumento. O que me deu mais prazer nesse tempo todo foi, com certeza, a música.
Na tua opinião, para onde vai a literatura com essa tendência de textos cada vez menores?
Para falar a verdade, não tenho a menor ideia! (risos)
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O brasileiro está mudando de caráter. Entrevista com Luis Fernando Verissimo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU