21 Agosto 2017
Ataques e ofensas do tipo estão aumentando na maioria dos Estados americanos, de acordo com pesquisas feitas após a eleição presidencial, em novembro de 2016.
A reportagem é de Valeria Perasso e publicada por BBC Brasil, 20-08-2017.
"Ei, idiota... a eleição acabou... você perdeu de todos os lados", dizia a carta que chegou à caixa de correio de John Gascot. Também acusava ele e seu marido de viverem em uma "casa gay", decorada com uma bandeira de arco-íris para "provocar estranhos". A correspondência era anônima.
"Eu estava com raiva (do resultado da votação). Minha primeira reação foi pintar a minha casa com as cores do arco-íris. Foi um ato de covardia", diz Gascot, que é artista e membro ativo da comunidade LGBT no Estado americano da Flórida.
Três anos atrás, ele se mudou com seu companheiro de 20 anos para o bairro onde vivem em São Petersburgo, na Flórida, e sempre sentiu que "as pessoas eram muito acolhedoras com os vizinhos". Apesar disso, a "carta de ódio" anônima recebida em dezembro, poucas semanas após a eleição de Donald Trump à Presidência dos Estados Unidos, os deixou em alerta.
"(A carta) era de um vizinho, alguém que nos vê diariamente, porque detalhava a que horas nossas luzes se acendiam e se apagavam, quando nós levávamos nosso lixo para fora, quando colocávamos a decoração de Natal", diz Gascot. Na época, o casal ainda tinha um poster "Vote em Hillary Clinton" no jardim. "Nós queremos viver com medo dos nossos vizinhos? Há definitivamente um elemento de medo. Nós consideramos nos armar para nos proteger".
A história do casal é apenas uma de muitas. São Petersburgo é lar de uma comunidadde LGBT vibrante, e estão se multiplicando ameaças relacionadas à discriminação. Na verdade, atitudes desse tipo estão se tornando mais frequentes em todo o país, somando 11% de todos os "crimes de ódio".
Muitos - tanto observadores como vítimas - culpam o clima político atual nos Estados Unidos por essa escalada do ódio. "Desde as eleições, as pessoas sentem-se encorajadas a manifestar seu ódio ou desagrado", diz Gascot. "(Os republicanos) fizeram uma campanha baseada no medo. Então, como algo assim não iria ocorrer?
No fim de semana passado, confrontos em uma manifestação de supremacistas brancos em Charlottesville, na Virgínia, chocaram os Estados Unidos - e o mundo - em um dos episódios recentes mais violentos no país. Uma mulher foi morta quando um carro avançou sobre pessoas que participavam de um protesto anti-racista.
Crimes de motivação ideológica estão em destaque nos Estados Unidos desde a vitória de Trump, em novembro de 2016. Um estudo do Centro para Estudo de Ódio e Extremismo, da California State University, aponta um aumento de dois dígitos no número de casos em muitas regiões metropolitanas no ano passado - uma tendência que parece continuar em 2017.
Na cidade de Nova York, foi de 24%, o maior em mais de uma década. Em Chicago, 20%. Na Filadélfia, 50%. Em Washington, 62% - o mais acentuado entre as 25 maiores cidades pesquisadas.
A lista de ocorrências vai de ataques físicos a grafites racistas, depredação de sinagogas e cemitérios judeus, insultos contra imigrantes e afro-americanos. Abusos contra muçulmanos, lésbicas, gay, bissexuais e transgêneros contribuem muito para esse crescimento.
Apesar das conclusões do estudo serem preliminares e parciais - alguns Estados não forneceram dados -, elas permitem vislumbrar uma tendência que também foi observada por outras pesquisas.
A Liga Anti-Difamação relata, por exemplo, que o número de incidentes anti-semitas quase dobraram no primeiro trimestre de 2017. Outros especialistas falam em um aumento de 106% nos episódios de ódio nas escolas.
Ânimos inflamados durante a campanha presidencial, que foi marcada por temas raciais, bem como uma disposição das vítimas de não recuarem podem estar por trás do aumento, segundo pesquisadores.
Ao destacar temas como raça, religião e nacionalidade, o tom da última campanha presidencial americana pode ter influenciado os crimes de ódio, levando à ação "indivíduos de motivações diversas, desde fanáticos hardcore até aqueles que apenas buscam uma emoção", opina o diretor do Centro de Estudo do Ódio e Extremismo, Brian Levin.
O pesquisador não está sozinho ao apontar uma relação entre as explosões de violência e a retórica polarizada de Trump - apesar de não haver prova estatística de uma correlação entre os dois fatores.
"Ódio e extremismo ganharam muita atenção", escreve Benjamim Henning, professor de Geografia da Universidade da Islândia e pesquisador da Universidade de Oxford, no Reino Unido. "A eleição de Trump também se deve a sua retórica, que aproximou extremistas de direita dos Estados Unidos".
Um estudo realizado três meses após o dia da eleição americana oferece mais evidências de uma espécie de "efeito Trump". O Southern Poverty Law Center (SPLC), organização que monitora extremistas nos Estados Unidos, contabilizou 1.094 incidentes de ódio entre novembro de 2016 e fevereiro de 2017, como parte do projeto #ReportHate (denuncie o ódio, em inglês).
Destes, 37% se referiram abertamente a Trump, seus slogans de campanha ou políticas. Outro esforço de rastreamento do site de notícias ThinkProgress aponta que esse número seria de 42%. O fato de que diferentes organizações americanas sentem que há uma necessidade de uma base de dados de crimes de ódio é um sinal dos tempos.
O SPLC foi fundado por advogados de direitos humanos para monitorar grupos supremacistas brancos como a Ku Klux Klan, mas depois ampliou seu alcance. Agora, mapeou todos os grupos de ódio nos Estados Unidos: eram 917 em atuação no país em 2016. Dois anos antes, eram 784. O Estado da Califórnia (79) tem o maior número, seguido pela Flórida (63).
O SPLC também está construindo um mapa de crimes de ódio, no qual Califórnia, Nova York e Texas concentram o maior número de incidentes.
Os crimes de ódio são difíceis de rastrear. O FBI, que deveria acompanhar essas ocorrências, computa certa de 6 mil casos anualmente. Mas um relatório do Escritório de Estatísticas de Justiça, de junho, estima 250 mil. Por que essa diferença?
Uma das razões, dizem os especialistas, é que as agências legais não têm de se reportar ao FBI. Então, os números do FBI podem estar desatualizados. Além disso, 46% das vítimas não procuram a polícia.
"Incidentes de ódio não parecem seguir um padrão único, todas as minorias são afetadas", afirma Heidi Beirich, diretor do Projeto Inteligência do SPLC. Alguns tipos de crimes, Beirich afirma, estão mais subestimados que outros.
Em um ambiente polarizado, não chega a ser uma surpresa que alguns desses números sejam contestados e que algumas vozes críticas rejeitem a ideia de que exista um pico de crimes de ódio nos Estados Unidos de Trump.
Eles argumentam que a proliferação de grupos de ódio é um fenômeno que começou antes da candidatura do atual presidente - na virada do século, motivada em parte pela rejeição da imigração latina e por projeções demográficas que mostravam que os brancos deixarão de ser maioria nos Estados Unidos a partir de 2040.
Consequentemente, afirmam, não se pode afirmar que um aumento nas taxas de crimes de ódio resultem do discurso inflamado da campanha de Trump.
Na verdade, os números atuais de grupos de ódio em atuação, medidos pelo SPLC, estariam abaixo do recorde registrado em 2011.
Além disso, o SPLC tem sido criticado por ter ido longe demais na classificação de grupos e indivíduos como extremistas. E também por não ter dados históricos suficientes que mostrem se a tendência de crescimento apresentada é de fato sólida.
Outros dizem que os ataques contra minorias têm ocorrido em grandes números há muito tempo - sem que ninguém estivesse observando ou contando. O movimento ativista "Black Lives Matter" (vidas negras importam), por exemplo, afirma que os negros são vítimas "regularmente, diariamente".
"Enquanto o presidente (Trump) e seus conselheiros contribuem significativamente para a falta de segurança que os negros vivenciam e são responsáveis por incríveis danos infligidos em comunidades negras, há sintomas de que a supremacia branca e a xenofobia são inimigos muito maiores do que um governo", escreveu o movimento em um post no Facebook, depois dos confrontos violentos em Charlottesville, sábado passado.
Então, se trataria apenas de uma maior cobertura da mídia sobre os crimes de ódio? Alguns acreditam que sim: vozes conservadoras acusam a mídia tradicional, bem como organizações à esquerda, de estarem "exagerando".
"Os chamados crimes de ódio são, em muitos casos, exagerados e até mesmo falsificados por indivíduos e uma mídia cúmplice", escreveu o controverso jornal American Free Press, que já foi criticado por ter conteúdo racista e ultranacionalista.
O pesquisador Brian Levin não concorda. "Eu não acho que a gente possa explicar o aumento (no número de crimes de ódio) pelo aumento da cobertura da mídia", afirma.
Mais numerosos e mais visíveis, os crimes de ódio também têm inspirado uma contra-reação na sociedade. Redes de apoio cresceram em alguns bairros de minorias. O SPLC publicou um "guia de resposta da comunidade", com alguns conselhos práticos: pegue o telefone, assine uma petição, pesquise sobre seus direitos...
O artista John Gascot sentiu a necessidade de "transformar algo feio em algo legal", depois de receber a carta de ódio anônima. Decidiu realizar um workshop gratuito para jovens LGBT, para oferecer um espaço seguro para estudantes que geralmente são marginalizados e têm medo de se expressar.
"A arte ajuda, mas não se trata apenas de arte. Se trata de ajudá-los a se sentirem confortáveis a serem quem são, oferecendo às gerações futuras aquilo que nós não tivemos", comenta Gascot. "Essa eleição tirou muita gente da complacência. E isso é positivo, apesar de tudo".
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'Tenho medo do meu vizinho': crimes de ódio em alta nos EUA de Trump têm minorias como alvo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU