27 Julho 2017
Cada vez mais vozes denunciam que o sistema científico se tornou um monstro que se retroalimenta e oferece resultados inúteis ou irreprodutíveis. Ainda que algumas críticas pequem como catastrofistas, talvez sejam um bom ponto de partida para buscar novos enfoques.
A análise é de Antonio Martínez Ron, jornalista e divulgador científico, em artigo publicado por Vozpópuli, 26-07-2017. A tradução é do Cepat.
Há algum tempo, algo está se movendo nas entranhas da ciência e os sinais se tornam cada vez mais evidentes. Nos últimos dias, por exemplo, quatro ilustres prêmios Nobel manifestaram abertamente sua oposição ao sistema de publicação científica das revistas e o fator de impacto. “É uma grande perda de tempo”, expressa Peter Doherty, em um vídeo da academia sueca. “As instituições não deveriam confiar nas revistas e em três ou quatro revisores”, insiste o laureado Paul Nurse. “Se você ama a ciência, precisa defendê-la, e para isso é necessário ser crítico”, afirmava o pesquisador Andrea Saltelli, em uma entrevista recente no Observatório Social de La Caixa. “Contudo, muita gente prefere ocultar o problema, porque, segundo dizem, se atacar a ciência, colocará em risco seu financiamento. Por que devemos pagar uma ciência de má qualidade?”.
As críticas dos prêmios Nobel vão na linha da declaração de San Francisco de 2012, na qual se colocava em questão o denominado Fator de Impacto (FI), o método que rege a avaliação dos trabalhos científicos e, portanto, boa parte do sistema de pesquisa. Este indicador, criado em 1995, foi pensado inicialmente para distinguir as publicações e trabalhos mais relevantes, mas se tornou o motor que move o trabalho de milhões de cientistas, a quem suas instituições valorizam pelo número de ‘papers’ que conseguem nessas publicações. O problema é que chegar a sair em Nature ou Science não significa necessariamente que seu trabalho seja melhor. De fato, cada vez está menos clara essa relação entre impacto e qualidade. “Eu posso publicar um artigo e não me importar errar”, afirma Saltelli. “Quanto mais elevado for, mais brilhante serei. Sendo assim, o que interessa para mim é publicar muitos artigos, ainda que sejam errôneos”.
O assunto é ainda mais perverso quando se conhecem os detalhes econômicos do sistema. Há algumas semanas, The Guardian revelava o lucrativo negócio de ter os cientistas a seu serviço, pagando para publicar e revisando o trabalho de outros gratuitamente. “Nós, cientistas, somos escravos dos grandes editoriais de revistas científicas”, escreveu Francis Villatoro para descrever a situação. “Trabalhamos de graça para elas, apenas para sobreviver no ecossistema científico. Um negócio redondo com ingressos anuais superiores a 22 bilhões de euros e uma margem de lucros próxima a 40%, muito superior a da Apple, Google ou Amazon”. Os números são em si mesmos monstruosos. Só a Elsevier publica cerca de 420.000 artigos, escritos por aproximadamente 14 milhões de cientistas. Todo um exército pago em boa parte com dinheiro público, mas que limita o acesso ao conhecimento e deixa os lucros nas mãos privadas.
Para além da exploração, a carga de profundidade destas denúncias é que o sistema está minando a credibilidade e a qualidade da produção científica. “Boa parte da literatura científica, talvez a metade, pode ser que simplesmente seja falsa”, denunciava Richard Horton, editor da histórica revista The Lancet. “Recheada de estudos com mostras pequenas, efeitos diminutos, análises inválidas e flagrantes conflitos de interesse, e unida à obsessão em acompanhar modas e tendências de duvidosa relevância, a ciência deu uma guinada à obscuridade”. Um dos primeiros a dar a voz de alarma foi John Ionnidis, que em 2005 escreveu: Why Most Published Research Findings Are False (Por que a maior parte dos achados publicados em investigação são falsos), e também a encontrar dezenas de debilidades nas publicações biomédicas. Em 2015, em um novo trabalho, denunciou que continua sendo impossível reproduzir a maioria dos resultados que são dados como bons na literatura científica.
Outro dos grandes críticos do sistema é o pesquisador estadunidense Daniel Sarewitz, que afirma que “a ciência acadêmica se tornou uma empresa onanista, digna de Swift ou Kafka”, e que os cientistas estão atuando “como grupos de poder não muito diferentes dos agricultores ou dos executivos”. Esta última afirmação escreveu em Nature, há uma semana, onde argumentava que a queda da qualidade dos estudos, o estado de concorrência permanente e a bolha de resultados se devem a uma situação permitida de fato pelos cientistas sob uma premissa: “deem-nos o dinheiro, deixem-nos sós e resolveremos os problemas do mundo”. Em um artigo muito mais extenso, publicado em The New Atlantis, Sarewitz atribui o nascimento deste “mito” ao influente e poderoso engenheiro Vannevar Bush que, em 1945 – em seu artigo Science, The Endless Frontier (Ciência, a fronteira infinita) –, estabeleceu a ideia de que investindo em ciência básica e deixando os cientistas caminharem por sua própria curiosidade, todos os problemas de uma sociedade próspera seriam resolvidos.
Na opinião de Sarewitz, aquela ideia fundacional do sistema científico estadunidense foi um erro e o tempo demonstrou, segundo ele, que foram as pesquisas dirigidas e controladas pelo Departamento de Defesa as que realmente prosperaram e deram seus frutos frente a bagunça de ideias estagnadas que seria o sistema de pesquisa de universidades e centros de pesquisa. “A indústria de publicação científica existe não para difundir informação valiosa, mas para permitir a um número crescente de pesquisadores que publiquem mais papers e assim poder avançar profissionalmente”, sustenta. Um sistema no qual o editor, o revisor e o autor competem pelos mesmos fundos e estão motivados pelos mesmos incentivos, criando uma espécie de círculo vicioso com “muitas bocas para alimentar”, insiste, e no qual, como afirma a neurocientista Susan Fitzpatrick, é criada “a ilusão de que estamos ganhando conhecimento, quando não estamos fazendo isto”.
Esta pesquisadora se tornou conhecida por denunciar que o modelo de pesquisa biomédica com ratos é uma via morta no que se refere a enfermidades relacionadas ao cérebro. As diferenças entre o modelo animal e o humano são tão grandes que, em sua avaliação, as conclusões não são extrapoláveis. “Ao final, o que estudamos é o modelo, e não a doença humana”, denunciava em New Scientist. “É um erro essencial, necessitamos de uma nova aproximação”. Para Sarewitz, este é um dos muitos exemplos que demonstram que a ciência, de alguma maneira, perdeu o norte e se centra mais em uma perseguição interminável do “como”, do que em encontrar as soluções. “As perguntas que são feitas costumam ser muito diferentes, se sua meta é resolver um problema concreto, mais do que em apenas avançar no seu entendimento”, escreve. Por isso, defende uma ciência tutelada, da qual sejam exigidos resultados, frente ao sistema que se auto-organiza para, segundo ele, quase sempre não chegar a nada.
Há alguns anos, a Coalizão Nacional contra o Câncer de Mama (NBCC, em sua sigla em inglês) lançou uma iniciativa para colocar uma data limite para curar este tipo de câncer. A Breast Cancer Deadline 2020 é um chamado aos políticos e pesquisadores para fixar o dia 01 de janeiro de 2020 como a data para acabar com a doença. Em 2015, a revista Nature dedicou um editorial ao tema, explicando que as doenças não compreendem datas limite e denunciava que a iniciativa colocava “em risco a confiança do público na ciência, fazendo promessas que não é possível cumprir”. Para os promotores da NBCC, a resposta era uma demonstração das “desculpas que os cientistas apresentam para não prestar contas” e se queixavam que, após milhões de dólares investidos, o fato de acabar com o câncer não podia ser questão de esperar que alguém fizesse uma descoberta inesperada.
O problema, e o que é difícil de ser compreendido para uma parte da sociedade, é que em boa medida, sim, é questão de esperar que, de repente, surja algo novo. Ou, nas palavras da jornalista Christie Aschwanden, “o problema é que a ciência é extremamente difícil” e “não é uma varinha mágica” que resolve todos os problemas humanos com um só toque. O debate entre ciência básica e aplicada é muito velho. No extremo mais “aplicacionista” estão aqueles como Sarewitz, que colocam a prioridade nos resultados, mas a opinião majoritária é a de que as grandes descobertas surgem nas tarefas mais insuspeitas do conhecimento, o que justifica o investimento de recursos em tão ampla variedade de campos.
Quando o espanhol Francis Mojica, há algumas décadas, pesquisava as bactérias das salinas de Santa Pola, muitos pensavam que sua pesquisa era uma perda de tempo. Hoje, o mecanismo que descobriu e que batizou como CRISPR é a melhor e mais promissora técnica de edição genética que temos. A mesma coisa quando o japonês Osamu Shimomura inspecionava as medusas que encontrava na praia, nos anos 1960. Hoje, possui um prêmio Nobel e devemos a ele a descoberta da proteína verde fluorescente, um gene que é utilizado como marcador e que serviu para investigar dezenas de doenças e apresentar medicamentos. Soa à fábula do doutor Fleming e a penicilina, mas, em termos gerais, é assim a forma como se chega, muitas vezes, a novos conhecimentos.
Buscando colocar ordem neste eterno debate, o professor de política da Universidade de Princeton, Donald Stokes, criou uma nova taxonomia dos ramos da ciência, em função de se estas buscam o conhecimento puro ou aplicado. E para isto usa alguns exemplos. No extremo da pura compreensão estaria a descoberta do modelo atômico de Bohr e no mais prático a invenção da lâmpada incandescente de Thomas Edison. Entre os dois territórios se inventou um termo médio e desejável ao qual chamou o “quadrante de Pasteur”, pois as descobertas do pesquisador francês salvaram milhares de vidas, a partir do estudo de algo aparentemente abstrato e teórico como a microbiologia. Talvez a ciência que devamos promover se mova justamente nesse caminho, entre a abstração e o prático, delineia.
Contudo, tais ponderações possuem uma falha profunda, posto que graças aos avanços em aparência “puramente teóricos”, como os de Bohr, dispomos do conhecimento que permitiu desenhar novas ferramentas e pelo qual hoje desfrutamos, por exemplo, de scanners ou ressonâncias magnéticas que, desde então, são quase tão determinantes em nossa saúde como foram as descobertas de Pasteur. Ou seja, nem tudo se ajusta às casinhas conceituais que desejamos inventar, nem a realidade da pesquisa é tão preta ou branca como pretendem algumas análises. Entre o reducionismo e o catastrofismo, como acontece entre a ciência aplicada e a teórica, asseguro que há muito espaço a percorrer.
Ainda assim, não acredito que seja necessário descartar visões críticas como as de Sarewitz, por exageradas que nos pareçam (chega a dizer que é a tecnologia o que mantém a ciência honesta), posto que alguns aspectos da realidade lhe dão razão e há motivos para a crítica. Há provas de que a ciência se afundou em alguns âmbitos e retroalimenta a si mesma com o sistema de publicações. Chama a atenção, por exemplo, a quantidade volumosa de trabalhos para certificar que está ocorrendo o aquecimento global e proporção visivelmente menor de estudos que propõem soluções e esforços. Talvez, por pura sobrevivência, seria necessário revisar as prioridades. Se dirá que neste assunto a gestão política é primordial, e este é outro dos fatores que está desvirtuando, passo a passo, o sistema de pesquisa científica (veja na Espanha a não aplicação da Lei da Ciência, apesar de ter sido aprovada na sede parlamentar).
Também há uma visível mercantilização da ciência, como adverte o historiador Philip Mirowski, em seu livro Science-Mart. Privatizing American Science, no qual denuncia que a ciência se tornou uma espécie de supermercado. O episódio mais recente, e que sangra, é a resolução sobre as patentes do sistema CRISPR, que privatiza o esforço coletivo de milhares de pesquisadores pagos, muitas vezes, com fundos públicos e que poderia criar um gargalo no desenvolvimento de terapias em humanos. Ou a recente revelação de que, durante anos, a indústria açucareira pagou os cientistas para apresentar a gordura como culpada.
Um dos terrenos onde a ciência está perdendo credibilidade a olhos nu é o das recomendações sobre a saúde. As indústrias, como denunciamos aqui, investem grandes somas de dinheiro para perverter o sistema a seu favor. No entanto, o problema também é institucional. As classificações arrevesadas e confusas da OMS sobre o que é cancerígeno e o que não é deveriam ser seriamente revisadas, pois um critério de funcionamento interno serve para fomentar o alarmismo entre setores claramente desinformados, que gritam aos quatro ventos que a wi-fi provoca câncer ou que comer um filé de carne é tão prejudicial como fumar um pacote de Winston.
Quando de um dia para o outro a opinião pública descobre que o demonizado café não era tão ruim, ou que as gorduras saturadas não mereciam tão má fama, a paulada que a ciência recebe ressoa na cabeça de milhões de cientistas que tentam fazer seu trabalho da maneira mais honesta possível. Os esforços para convencer a sociedade de que a ciência é escrupulosa e trabalha para o bem coletivo vão por água abaixo por ter gerado toneladas de evidências mal fundamentadas sobre um assunto tão escorregadio como a nutrição.
Por sorte, os cientistas não estão olhando para outro lado. O debate sobre para onde os esforços devem ser dirigidos está em aberto dentro da própria comunidade. As grandes iniciativas europeia e estadunidense para investigar o cérebro humano são um dos melhores exemplos destas disputas. Na Europa, o projeto Human Brain Project (HBP), que tenta reproduzir a complexidade do cérebro humano em silício, recebeu duras críticas por comportamentos de nepotismo e estreiteza de visão. Nos Estados Unidos, o projeto BRAIN, auspiciado pela administração Obama, enfrenta acusações de reducionismo e de “ter esquecido que o cérebro humano tem proprietários”. Fascinados por suas maquininhas e suas ferramentas de análise de dados (o famoso Big Data), alguns cientistas parecem ter esquecido o verdadeiro objetivo da pesquisa, que é ajudar a curar pessoas. Ao viés da confirmação (dar prioridade aos resultados que favorece nossa hipótese de partida) parece também ter se somado o do martelo: se você possui um martelo, todas as coisas parecem pregos ou, como disse Sarewitz, o viés daquele que perde as chaves de casa na escuridão e que a procura onde há faróis, porque é o único lugar onde há luz.
Há sinais de que a ciência está se autocorrigindo (a criação de páginas webs que reúnem revistas científicas, o auge de sistemas alternativos ao das insaciáveis editoras de revistas científicas, para apresentar dois exemplos), mas há muito a fazer para restabelecer a confiança da sociedade na ciência e para que não se torne outra vítima a mais da era das pós-verdades. Investiu-se milhares de euros no estudo de doenças como o câncer ou o Alzheimer e a sociedade quer respostas, já cansada da fórmula “não veremos os avanços no prazo de dez anos”. Se me perguntam, diria que a máquina da ciência segue funcionando e avançando com passo firme, mas talvez necessite de uma afinação. Frente às críticas mais duras, a resposta não pode ser somente que a ciência é maravilhosa: deve-se revisar o motor da nave e o rumo da direção, para não ficarmos na mão ou bater algum dia contra as rochas.
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A máquina de fazer ciência está quebrada? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU