10 Julho 2017
Edir Macedo Bezerra colocou seu melhor terno. Cabeleira e barba suavam "com o calor do abafado salão" – o galpão de uma antiga funerária no subúrbio do Rio, preenchido por bancos de madeira "comprados em prestações a perder de vista". Há 40 anos, um sábado, o pastor de 32 anos liderava o primeiro culto da Igreja Universal do Reino de Deus, como rememorou na autobiografia "Nada a Perder".
A reportagem é de Anna Virginia Balloussier, publicada por Folha de S. Paulo, 09-07-2017.
A perder de vista, nas décadas seguintes, era o empenho da Universal em erguer seu império num país onde a expansão evangélica veio a galope. Naquele 1977, nove em dez brasileiros se diziam católicos, e cerca de 6%, evangélicos. Corta para 2017: o primeiro grupo despencou para 50%, enquanto o segmento de Macedo quintuplicou para 30%, segundo pesquisa Datafolha.
A Universal percorreu um longo caminho do suado começo na periferia à chegada ao metro quadrado mais caro do país, com a abertura em abril de uma sede no Leblon –"lugar onde sempre sonhamos entrar e nunca conseguimos, mas para o nosso Deus nada é impossível!!!", como definiu um convite virtual para a inauguração.
O Reino de Deus hoje, em estimativas da igreja: 320 bispos e 14 mil pastores em ação (para comparar, há 24 mil padres assessorando 103 milhões de católicos). Essa trupe conduz 7.157 templos para 7 milhões de seguidores no Brasil. Outros 2.857 estão à disposição de dois milhões de fiéis em mais de cem nações, da Rússia aos Emirados Árabes.
O que também multiplicou foi a vontade interna de "desconstruir a imagem caricata do cristão associada à pessoa fanática, imersa em dogmas e preconceitos", diz o professor de sociologia da USP Ricardo Mariano. "A Universal tem se reinventado como organização cristã focada na autoajuda e no empreendedorismo."
Vide o lançamento, em 2013, da campanha "Eu Sou a Universal", que "representa o cristão batalhador e confiante, uma 'pessoa independente' e com 'opinião própria'", afirma Mariano sobre a peça publicitária que traz do sushi chef Matsumoto ao surfista Piruca.
Para Mariano, "a campanha procurou dissociar a imagem da igreja à dos estratos de baixa renda e escolaridade, por meio de fiéis com perfis de classe média bem-sucedidos profissionalmente, ocupando variadas posições na sociedade".
A autoajuda transborda em projetos como Godllywood. Sob guarda de Cris Cardoso, filha de Macedo, o grupo de mulheres evangélicas se insurge contra "os valores errados que a nossa sociedade tem adquirido através de Hollywood".
O empreendedorismo à moda Universal norteia a "palestra motivacional para o sucesso financeiro", tema dos cultos de segunda-feira no Templo de Salomão, réplica paulista da construção bíblica (há um mote para cada dia, como a "terapia do amor" às quintas).
A Folha foi à reunião das 22h da última segunda (3), quase lotada (a capacidade no templo é para 10 mil pessoas). Ouviu propostas de ter o "currículo abençoado" e ganhar, em troca do dízimo, a unção com um "azeite consagrado na Praça dos Três Poderes".
"Os piores demônios estão lá", disse o bispo sobre o perímetro em Brasília que reúne as sedes do Executivo, do Judiciário e do Legislativo. "Você sabe que a crise maior não é a econômica, mas a dos três poderes." Um panfleto pregava a "grande consagração dos empregadores e empregados".
"Historicamente, as igrejas evangélicas atingiram mais significativamente as classes D e E. Com a ascensão social dos últimos anos, boa parte do público da Universal é a classe C", diz o pesquisador da Unicamp Carlos Gutierrez, autor de uma tese sobre a igreja.
"Muitos atribuem a transformação em suas vidas à fé evangélica. Diversas igrejas têm adotado linguagem não necessariamente religiosa, mas sim pautada em saberes como motivação empresarial, manuais de administração etc. Assim, cultos tornam-se 'palestras' e 'terapias'", afirma.
Em "Deus, o Demônio e o Homem: A Igreja Universal do Reino de Deus", coescrito com o teólogo sueco Anders Ruuth, o antropólogo Donizete Rodrigues vale-se do conceito de "igreja de supermercado", extraído da sociologia do francês Pierre Bourdieu.
"A religião é bem de consumo num altamente competitivo mercado simbólico-religioso, daí o eficiente marketing da Universal", afirma Rodrigues.
O poder da igreja tem dois poderosos troncos. Um deles é o midiático, com a compra da Record em 1989. Macedo lembrou da transação em seu blog: "O representante de Silvio [Santos, então sócio da emissora] disse o valor. Respondi na fé: 'Não tem problema. Negócio fechado!'".
"Mais recentemente, as novelas bíblicas da Record têm criado um espaço que visam se opor à dramaturgia de outros canais", diz a professora da UFPR Karina Belloti, que estuda evangélicos e mídia. Campeã de audiência, "Dez Mandamentos" virou filme homônimo, que ultrapassou "Tropa de Elite 2" como maior bilheteria do cinema nacional.
Outro braço é o político, com o PRB. A Universal nega vínculo com o partido, que contudo tem vários bispos licenciados em seu alto escalão e emplacou na Prefeitura do Rio um deles, Marcelo Crivella, sobrinho de Macedo e ex-ministro de Dilma Rousseff.
Em "Plano de Poder" (2008), Macedo diz que "a potencialidade numérica dos evangélicos como eleitores pode decidir qualquer pleito eletivo". No livro, o bispo defende que apenas um presidente evangélico poderia criar um Estado laico, "sem privilégios à Igreja Católica", destaca o pesquisador Carlos Gutierrez.
Para a igreja, a expansão assusta e faz dela alvo de uma campanha difamatória amplificada pelas redes sociais. A Universal chegou a criar um blog para desbaratar "fraudes sórdidas". Algumas: pastores ungem vassouras para vender, uma campanha ataca a crença dos católicos na hóstia, o "pão do mal", e a prefeitura de Crivella financia a cinebiografia do tio Macedo.
No censo de 2010, a presença nacional da igreja é mais tímida do que os autocomputados 7 milhões de fiéis: 1,9 milhão de adeptos, 228 mil menos do que uma década antes.
A contração pode ser em parte explicada pelo contingente que, ao IBGE, não especifica que congregação segue, só se diz evangélico. Há ainda a concorrência de "igrejas clones" formadas por ex-bispos da Universal – como a Mundial do Poder de Deus, do apóstolo que usa chapéu de caubói, Valdemiro Santiago.
Por isso a necessidade de explorar novos nichos, diz o professor da UFRJ Eduardo Refkalefsky, autor de uma tese sobre marketing religioso. "A Universal hoje está mais light, falando em prosperidade. A de antigamente podemos chamar de Universal raiz."
7 Universal abre seu primeiro templo, num galpão onde funcionava uma antiga funerária, no subúrbio carioca
0 Lança 'Orixás, Caboclos e Guias: Deus ou Demônios?'. O livro chegou a ter a venda suspensa por ordem judicial, acusado de degradar religiões afro, mas um tribunal superior reverteu o veto. Segundo Edir, traz 'apenas traz a verdade cristalina' sobre 'os espíritos malignos'
9 Compra a Record, que tinha Silvio Santos como um dos donos
2 Passou 11 dias na prisão, acusado de ser 'charlatão, curandeiro e estelionatário', como narra em sua autobiografia. 'Para quem me odiava, bispo Macedo era sinônimo de bandido'
5 Em programa da Record, um bispo da igreja polemiza ao chutar a imagem de Nossa Senhora Aparecida (evangélicos não cultuam santos). Macedo criticou o ato 20 anos depois, no SBT: 'Foi um chute no estômago, para não dizer num lugar mais baixo'
8 Surge a Igreja Mundial do Poder de Deus, de Valdemiro Santiago, ex-bispo da Universal que virou concorrente direto da igreja
5 Criação do Partido Republicano Brasileiro (que ganhou este nome em 2006, por sugestão do ex-vice-presidente José Alencar). A sigla é tida como braço político da Universal
4 Com Dilma e Temer, inaugura o Templo de Salomão, com 74 mil m² de área construída (3,2 vezes maior que a Basílica de Aparecida)
6 Sobrinho de Macedo, Marcelo Crivella (PRB) é eleito prefeito do Rio
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Igreja Universal faz 40 anos e realiza sonho de alcançar classe média alta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU